O presidente da UTAO considera que há margem para acomodar novas medidas que impliquem mais despesa e salienta que os decretos-lei apresentados pelo Governo não estão sujeitos à norma travão.
Retificativo ou não? Para o presidente da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), Rui Baleiras, a equação é simples. “Não é plausível um Orçamento retificativo por quatro razões de cálculo político”, afirma, em entrevista ao ECO. Risco de chumbo e antecipação do embate de outubro com o Orçamento do Estado para 2025, prazo reduzido para o implementar e retorno diminuto para o Governo, existência de folga para novas medidas e preparação do Programa de Estabilidade são os motivos elencados pelo responsável pela entidade que funciona junto da Comissão parlamentar de Orçamento e Finanças.
A dúvida sobre a necessidade de um Orçamento retificativo, que pairava em cortina de fundo, sem o PSD se querer comprometer publicamente com uma decisão, foi empurrada para a arena principal pelo secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, quando admitiu que viabilizaria uma proposta de revisão orçamental apresentada pela Aliança Democrática, a coligação de PSD, CDS e PPM que venceu as eleições, para aprovar aumentos salariais para a Função Pública, designadamente para forças de segurança, docentes e profissionais da saúde.
O presidente do PSD, Luís Montenegro, reagiu logo a seguir, afirmando que registou “com satisfação o sentido de responsabilidade” demonstrado pelo PS. Mas, mais uma vez, não respondeu à questão se apresenta ou não um retificativo, um recuo face à tomada de posição de há cinco meses, quando garantiu que “com certeza” iria apresentar uma proposta de revisão orçamental.
Para o coordenador da UTAO, “não será provável a apresentação de uma correção parlamentar ao Orçamento em vigor”, porque o “o PSD e o CDS terão vantagem em adiar o tira-teimas com o Chega e o PS para novembro, a fim de tentarem ganhar quota de popularidade até esse momento”, altura da votação do Orçamento do Estado para 2025, afirma em entrevista ao ECO.
Há ou não necessidade de Orçamento retificativo?
Depende da dimensão financeira das novas medidas de política que o futuro Governo queira introduzir e das possibilidades de as encaixar no Orçamento de Estado que temos em vigor, fazendo uso, enfim, das regras de flexibilidade que ele permite, sem ir à Assembleia da República para ser alterado.
Então não há necessidade de um Orçamento retificativo?
Teoricamente, e da forma abstrata como coloca a pergunta não é necessário, pode não ser necessário. Ser ou não ser, depende do casamento entre a ambição financeira das novas medidas de política e a capacidade de as financiar, recorrendo, digamos, às possibilidades de alteração do Orçamento em vigor, que sejam da competência exclusiva do Governo. O que posso adiantar mais é se eu acho plausível que seja apresentado uma alteração ao Orçamento. E aí eu diria que não. Como observador externo, interessado obviamente na matéria, por razões profissionais, eu diria que não.
É possível então acomodar o subsídio para os polícias, o plano de emergência para a saúde e o descongelamento da carreira dos professores como promete Luís Montenegro?
Essas despesas eu não sei quanto é que valem. E também não sei se o novo Governo tem já bem quantificado o impacto em 2024 e nos anos seguintes dessas medidas. Mas deixe-me explicar as razões pelas quais eu acho que não será provável a apresentação de uma correção parlamentar ao Orçamento em vigor. Em primeiro lugar, só uma correção técnica: o Orçamento retificativo é uma linguagem do senso comum, mas não é correta. A Lei de Enquadramento Orçamental designa por proposta de Lei de Revisão Orçamental ao documento legislativo, por iniciativa do Governo, que visa alterar no Parlamento a Lei do Orçamento de Estado em vigor.
Não é então plausível a submissão de uma proposta de lei de alteração orçamental?
Não é plausível, porquê? Basicamente por quatro razões de cálculo político por parte do Governo. Teremos na Assembleia da República um Governo suportado pelos votos dos deputados do PSD e do CDS com uma posição contra de todos os partidos à esquerda e ambiguidade na posição do grupo parlamentar do Chega. Os quatro argumentos de análise política de custo benefício são os seguintes. Primeiro, eu julgo que há um custo esperado de conflito parlamentar precoce sobre um pacote de medidas de política caso o Governo avance com essa proposta de revisão parlamentar do Orçamento de Estado. É sabido que eu sou muito crítico do processo legislativo orçamental que temos em Portugal, porque mistura alhos com bugalhos, isto é, mistura medidas de política com as traves mestras contabilísticas do Orçamento de Estado, quando a lei do Orçamento se deveria limitar apenas a esta segunda parte. A lei do Orçamento de Estado é a lei mãe das medidas de política em Portugal. É, por isso, que o processo é muito conflituoso e, sobretudo, neste contexto novo político-partidário que vamos viver. E, portanto, se o Governo avançar com uma proposta dessas agora, nas próximas semanas, em abril, princípio de maio, seria inevitável o primeiro grande confronto político com as outras bancadas parlamentares e a antecipação, para junho, do risco de chumbo da proposta de lei, ao invés de adiar esse risco até novembro, que é a época da votação do Orçamento do Estado para 2025.
Acho que o PSD e o CDS terão vantagem em adiar o tira-teimas com o Chega e o PS para novembro, a fim de tentarem ganhar quota de popularidade até esse momento, executando o que for possível de medidas simpáticas para parte do eleitorado, envolvendo ou não encargos financeiros. A segunda razão pela qual eu acho implausível uma alteração parlamentar ao Orçamento em vigor é o tempo demasiado reduzido que o futuro Governo terá para beneficiar de uma nova lei orçamental. Porque se todas as etapas no processo de construção da proposta de Orçamento de Estado e de discussão, negociação e votação no Parlamento decorrerem excecionalmente bem, muito depressa, mesmo assim, uma nova lei do Orçamento de Estado para 2024 só conseguirá entrar em vigor no mês de agosto, que é um mês de férias para a economia, para os agentes, para os políticos.
O PSD e o CDS terão vantagem em adiar o tira teimas com o Chega e o PS para novembro, a fim de tentarem ganhar quota de popularidade até esse momento, executando o que for possível de medidas simpáticas para parte do eleitorado, envolvendo ou não encargos financeiros.
Exceto para o turismo…
Exceto o turismo, mas desde que nós não carreguemos muito nos impostos sobre os turistas, esse setor não será afetado. Se essa lei, como é plausível, tiver medidas de política, porque é a infeliz tradição portuguesa, poderá ainda ser necessário gastar, depois de uma entrada em vigor da lei, um par de meses a regulamentar essas medidas, fazer o desenho das medidas e operacionalizá-las com os serviços, o que significa que, na prática, haverá três ou quatro meses, na melhor das hipóteses, de setembro a dezembro, para aplicar as medidas. E eu não sei se esse tempo será suficiente para dar dividendos reputacionais ao Governo, na discussão do Orçamento de Estado para 2025, a ponto de poder ir de peito feito, não receando o chumbo e depois a eventual dissolução do Parlamento.
A terceira razão de implausibilidade é a de que as traves mestras contabilísticas do Orçamento em vigor têm flexibilidade suficiente para acomodar e suportar uma troca de prioridades políticas. Nós temos um Orçamento em vigor e o teto de despesa tem crescido imenso nos últimos anos, mas nunca se gasta 100% do que foi aprovado. Nós temos um teto global de despesa efetiva, em contabilidade pública, que ainda na casa dos 124,4 mil milhões de euros contra 102,6 que nós tínhamos no Orçamento de Estado por duodécimos para 2022, que é talvez a situação que nós possamos comparar, quando também tivemos um orçamento que entrou em vigor a meio do ano. A restrição orçamental em 2024 tem mais flexibilidade para acomodar o financiamento de novas medidas, novas prioridades de despesa, quanto mais não seja porque um ano nunca encerra com taxa de execução a 100%, pelo que se tudo o resto é igual, o ano de 2024 fecharia com mais milhões de euros por executar do que qualquer ano anterior. E, depois, há uma série de argumentos técnicos que explicam que as alterações contabilísticas que o Governo pode promover sem a ação legislativa do Parlamento também contribuem para aumentar a capacidade de encaixar novas prioridades de despesa neste volume total de despesa.
As traves mestras contabilísticas do Orçamento em vigor têm flexibilidade suficiente para acomodar e suportar uma troca de prioridades políticas.
Via decretos-lei e sem prejudicar a norma-travão?
A norma travão não se aplica a iniciativas legislativas do Governo, só iniciativas legislativas propostas por outras partes. Mas o Governo pode transferir dotações de despesa dentro de um mesmo programa orçamental que basicamente corresponde a um ministério. Posso passar verba de subsídios ou transferências para despesas com pessoal e reforçar essas despesas. Posso também aumentar o teto global de despesa em programas orçamentais, incorporando os saldos de gerência do ano de 2023, que de maneira geral vão ser positivos.
Há folga orçamental…
Sim, mas isto tem uma consequência. É que se nós vamos incorporar saldos positivos do ano anterior, vamos ter menos dinheiro para amortizar a dívida pública antecipadamente. É também uma escolha política ao cuidado do próximo Governo. E é possível também aumentar a despesa orçamentada se entrarem mais receitas próprias do que aquelas que estão previstas inicialmente no Orçamento de Estado. Portanto, esta panóplia de instrumentos dá uma flexibilidade suficiente.
Refere-se a quê em concreto quanto a aumentar receitas próprias?
As famosas taxas e taxinhas, licenças. Tudo o que não é imposto. Tudo depende da calibragem das medidas, do desenho concreto das mesmas, da plurianualidade que o Governo escolher para as implementar. Em suma, é um problema de escolhas políticas. A verdade é que não se pode ter tudo e há uma restrição no fim do dia orçamental para respeitar e, finalmente, há o argumento das novas regras orçamentais europeias.
O Programa de Estabilidade terá de ser entregue até o final de abril em Bruxelas, mas pode entretanto acabar. Certo?
E esse meu último argumento é muito importante porque, até 20 de setembro, muito provavelmente o Governo português, bem como os outros, terão a obrigação de entregar à Comissão Europeia um novo documento de programação orçamental de médio prazo. E isto é um trabalho novo e, portanto, eu acho que é neste novo trabalho que a nova equipa das Finanças e da Economia e os serviços se devem empenhar, até porque, tendo uma abrangência de médio prazo, deveria servir de chapéu para fazer o plano orçamental do ano seguinte, de 2025, para assegurar coerência e para que as pessoas possam perceber que o Orçamento de 2025 é parte de um puzzle maior, porque um grande defeito da política económica em Portugal é não ter perspetiva de médio prazo.
Mas o Programa de Estabilidade vai acabar já este ano, dando origem ao tal novo documento de programação orçamental?
Está em fase final de adoção por parte do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia um regulamento que vai alterar o modo de governação económica dentro da União Europeia e prevê o fim dos programas de estabilidade. Portanto, num ano de cruzeiro, deixa de haver Programa de Estabilidade e passa a haver um novo documento que se chama o Programa Nacional Orçamental Estrutural de Médio Prazo, mas que basicamente é um documento de planeamento de médio prazo, mas com conteúdos diferentes daqueles a que estamos habituados nos programas de estabilidade. E deixa de haver, portanto, os programas de estabilidade.
A dúvida neste momento é sobre o momento da entrada em vigor deste regulamento. Eu vi a versão de 4 de março que foi discutida e tem lá duas disposições transitórias importantes: uma que diz que é revogado o regulamento que estabeleceu os programas de estabilidade, no dia seguinte à aprovação deste novo regulamento. E a segunda é que tem essa cláusula que diz que, excecionalmente, em 2024, os tais programas nacionais orçamentais estruturais de médio prazo serão apresentados até 20 de setembro, com base em informação que a Comissão Europeia terá de entregar até três meses antes aos Estados membros. Portanto, as dúvidas que eu tenho neste momento e não consegui esclarecer para esta entrevista são duas: a versão do regulamento já foi alterada? Não tenho conhecimento. Segunda: Quando é que entra em vigor?
O regulamento ainda não foi aprovado pelo Parlamento Europeu?
Nem pelo Parlamento nem pelo Conselho. Há uma probabilidade, que eu acho ténue, de ser dispensada a entrega do Programa de Estabilidade este ano, se o regulamento for aprovado até ao final de março. E como os ministérios das Finanças estão envolvidos nesta negociação, sabem mais do que eu neste momento sobre a probabilidade de isso acontecer e portanto, estão a ajustar o seu trabalho interno, fazer ou não fazer o Programa de Estabilidade em função dessa expectativa. Mas, enfim, já estamos a menos de duas semanas dessa data e acho improvável que venha a acontecer. Mas se não for em 2024 será em 2025.
O ainda ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que já estava a preparar o Programa de Estabilidade 2024-2028 para o futuro Governo. Portanto, é provável que o futuro Executivo ainda tenha de entregar o Programa de Estabilidade até final de abril, o que é um prazo muito curto para Luís Montenegro.
Aliás, isto já aconteceu em 2022. Recordo que o novo Governo tomou posse nos primeiros dias de abril e o Governo anterior entregou na Assembleia da República, com grande surpresa, o Programa de Estabilidade, que veio a ser defendido por quem o não tinha feito. Mas a verdade é que o primeiro-ministro era o mesmo e a bancada que apoiava, incondicionalmente, os dois governos era a mesma. Hoje, a situação é completamente diferente. Desta vez, não será possível o Programa de Estabilidade, a ser feito assim, cumprir as formalidades exigidas pelo regulamento europeu, porque uma delas é que o plano tenha medidas de política explicadas e quantificadas para o ano corrente e os quatro anos seguintes. Ora, é evidente que um Governo que está de saída, com uma provável mudança ideológica na composição do Governo, não se vá atravessar, colocando medidas de política que sabe que não será ele que as vai executar. Se assim for, enfim, é um programa que valerá, quando muito, pela atualização do cenário macroeconómico e por uma estimativa de execução orçamental em 2024, mas não tem nenhum interesse do ponto de vista do planeamento do médio prazo das nossas finanças.
As medidas de política do Governo de Luís Montenegro como o plano de urgência para a saúde, por exemplo, devem estar, de alguma forma, plasmadas no Programa de Estabilidade?
Deveriam, mas eu acho que não vão estar. Porque não é esta maioria política que propôs as medidas e que sabe os detalhes.
Pode ver a entrevista na íntegra aqui.
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