“Não podemos olhar apenas quantitativamente para o problema da igualdade de género”

Quotas para mulheres ainda são precisas, mas escondem "componentes qualitativas" relevantes, como o trabalho que elas continuam a fazer em casa. Quem o diz é a responsável pela equidade da Nova SBE.

Elas até podem chegar aos cargos de liderança. Mas a que custo? A pergunta é atirada por Daniela Afonso para chamar a atenção para as componentes qualitativas que as quotas não cobrem, nomeadamente o trabalho que elas continuam a fazer em casa e as responsabilidades parentais que assumem. Em entrevista ao ECO, a responsável pelas áreas da diversidade, equidade e inclusão da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) defende, assim, que as quotas ainda são necessárias, mas estão longe de ser suficientes.

A Nova SBE aproveitou o Dia da Mulher para arrancar uma iniciativa alargada sobre disparidade de género. Até ao próximo ano, todos os dias 8 de cada mês serão dedicados a este tema, através de diversas iniciativas: o lançamento de um estudo, novas ofertas formativas, programas de mentoria e podcasts, detalha Daniela Afonso.

Em entrevista, a responsável fala, portanto, do papel das universidades nesta luta pela igualdade entre eles e elas, deixando claro que a mudança precisa de ser sistémica.

 

Disse recentemente que o problema da desigualdade de género não pode ser resolvido, simplesmente, pela implementação de quotas. Começamos por aí. Apesar das críticas, que avaliação faz desse mecanismo e da sua aplicação, nomeadamente, aos cargos de topo?

Existem ainda graves problemas de disparidade, seja a nível salarial, seja a nível do acesso a cargos de liderança, quer no setor privado ou público. As quotas são um instrumento necessário. São um mal necessário para um fim que deveria ser vivermos numa sociedade em que não precisamos de quotas.

As quotas obrigam a repensar, mas não são suficientes. Desde que foi implementada a lei da paridade, a promoção das mulheres que tem sido feita tem sido muito lenta, e sempre em menor proporção face à progressão dos homens. Não podemos olhar apenas quantitativamente para o problema da igualdade de género, mas também qualitativamente.

Quer concretizar?

As quotas trazem um peso psicológico mental às mulheres. As mulheres são tipicamente menos confiantes. Quando existe um anúncio de um trabalho, se não cumprirem todos os pontos, não se candidatam. Uma mulher sentir que está num lugar por causa de uma quota ainda reforça mais esse estereótipo negativo que a mulher tem de si mesma.

Somos líderes, mas a que custo? Temos de trazer toda a componente de níveis de exaustão, de cansaço, que também não estão a ser avaliados quando estamos a falar de quotas.

Daniela Afonso

Head of diversity, equity & inclusion na Nova SBE

E sente que esse estereótipo também existe vindo de fora? Os pares também ganham margem para atirar que a mulher só lá está por causa da quota?

Sim. Não é só connosco mesmas, mas também dos nossos pares e também das nossas equipas. É preciso ver até que ponto existe uma liderança de confiança que assegura, depois, a prosperidade desta mulher dentro da organização. E também em casa. Existem muitas horas dedicadas por parte das mulheres a trabalho não pago em casa. Somos líderes, mas a que custo?

Temos de trazer toda a componente de níveis de exaustão, de cansaço, que também não estão a ser avaliados quando estamos a falar de quotas. Por isso, as quotas por si só não se têm mostrado efetivas nesta transição para uma paridade, mas também estão a esconder outras componentes qualitativas que não estão a ser trabalhadas.

Necessárias, mas não suficientes. Que outras medidas podemos adotar para que a mudança sistémica aconteça?

A Nova está muito focada nisso e é parte do nosso trabalho ao longo deste ano. A primeira das iniciativas é termos um estudo sistémico e percebermos exatamente quais são os fatores que estão a perpetuar o papel desigual das mulheres na sociedade e que soluções existem, para além dos instrumentos legais. Além disso, temos instrumentos educativos para as mulheres. Há três anos que as nossas alunas de mestrado têm à sua disponibilidade um curso que foi criado em Harvard, e está aplicado em mais de 20 países.

As alunas encontram um espaço seguro em que podem partilhar os seus desafios e também perceber que a liderança também é para elas, e como é que elas podem ter esse papel. Trabalhamos uma série de temas num bootcamp imersivo, que tem sido mesmo espetacular.

Hugo Amaral/ECO

A 8 de março a Nova SBE deu início a uma iniciativa sobre paridade de género, que se vai estender até ao próximo ano, em todos os dias 8 de cada mês. O que podemos esperar?

Vamos ter vários tipos de iniciativas, não só a partilha do estudo, mas também o lançamento de novas ofertas educativas ou de mentoria para mulheres, bem como uma série de podcasts, nos quais já começamos a trabalhar com professores internacionais. Com dois objetivos: traduzir o que os professores estão a estudar, em termos de investigação, para prática, e colocarmos à disposição gratuitamente esse conhecimento.

Por exemplo, a 8 de abril o que podemos esperar?

Estamos a limar algumas arestas, mas eventualmente acho que o podcast estará pronto e será lançado.

A propósito do Dia da Mulher, algumas das entrevistas feitas pelo ECO acabaram por apontar para a importância dos programas de mentoria para a promoção da igualdade de género. A Nova SBE tem alguma iniciativa nesse sentido?

A mentoria é fundamental. No dia 8 de março, uma das nossas atividades foi desenvolver uma ideia prática. Uma das ideias que surgiu foi haver um programa de mentoria em finanças. Foi sugerido por uma aluna nossa, que diz que faltam role models e que não sabe se este é o seu lugar. Olho para a indústria financeira e é um setor dominado pelo género masculino, mas é um trabalho que pode ser feito por qualquer pessoa. O curso que referi há pouco, por exemplo, tem um programa de mentoria. Além disso, vamos também trabalhar em sponsorships.

Hugo Amaral/ECO

Numa espécie de patrocínio entre profissionais?

Exatamente. Não basta termos mentores, é preciso termos as pessoas certas nas organizações que nos fazem crescer. Portanto, não é só um mentor de aconselhar e de mostrar que também é o lugar para elas, mas é um sponsor que percebe a organização por dentro.

Voltando à questão da capacitação, que papel é que as universidades podem ter na luta pela igualdade de género?

Em primeiro lugar, a desconstrução. Temos de continuar a levar este conhecimento do que é a paridade de género nos diversos setores não só à nossa comunidade interna, mas também enquanto plataforma para o mundo. Para conseguirmos que os nossos futuros líderes saiam da Nova SBE com essa consciência. A nossa licenciatura hoje tem uma ação obrigatória de diversidade e inclusão. Estamos a desconstruir a noção de privilégio e as diferenças visíveis e invisíveis. Nos mestrados, também já temos uma professora a lecionar sobre diversidade e inclusão.

Os estudos dizem que os salários das mulheres podem ser mais baixos por dois grandes motivos: por não terem tempo, disponibilidade ou oportunidades para continuar a crescer, ou porque não estão nos setores que normalmente têm melhores salários.

Daniela Afonso

Head of diversity, equity & inclusion na Nova SBE

Tem ideia da percentagem de alunos da Nova SBE que são do género feminino?

Os nossos mestrados ainda não têm todos a igualdade de género. Temos três mestrados em que até temos mais mulheres do que homens, mas existem outros, como o de finanças, o de finanças internacionais, e o de business analytics, que estão aquém.

E nas licenciaturas?

O problema agrava-se à medida que vamos subindo na carreira educativa. Nas licenciaturas, conseguimos ter paridade.

Tradicionalmente, as mulheres ganham menos. O facto de terem salários menores impacta a sua capacidade de avançar na carreira académica?

Ou vice-versa. Os estudos dizem que os salários podem ser mais baixos por dois grandes motivos: por não terem tempo, disponibilidade ou oportunidades para continuar a crescer, ou porque não estão nos setores que normalmente têm melhores salários.

Hugo Amaral/ECO

Vamos, então, à tecnologia. Como disse, as mulheres ainda têm uma menor presença em setores como este. Os avanços tecnológicos podem, portanto, agravar a desigualdade de género, já que os melhores empregos ficarão, por isso, para os homens?

É um ótimo ponto. Acho que há que continuar a trabalhar. Se deixarmos a sociedade funcionar como tem vindo a funcionar, as mulheres vão continuar a ficar de fora. Temos de perceber como é que vamos trazer as mulheres para estas áreas. Desde já incluir este tema na conversa, e na Nova também estamos a fazer isso.

  • Diogo Simões
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