#2. O fim da Era Salgado

Há dez anos tinha início do fim de uma Era em Portugal. Ricardo Salgado e a família eram afastados do BES. O processo foi atribulado: teve golpes de Estado, lutas de poder, alianças e traições.

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O dia 20 de junho de 2014 não deverá figurar nos livros de história, mas neste dia, há precisamente dez anos, tinha início do fim de uma Era em Portugal. Sob pressão do Banco de Portugal, uma das mais poderosas famílias do país estava de saída da gestão executiva do BES, banco cujo controlo havia recuperado na década de 1990. Ricardo Salgado, que até então parecia intocável, um semi-deus, o “Dono Disto Tudo”, também estava fora da nova administração anunciada pela Espirito Santo Financial Group, o acionista de controlo do banco.

Embora a notícia tenha surpreendido o país, a saída de Ricardo Salgado do comando do grupo já era discutida no seio da família há muito tempo.

O processo teve todos os ingredientes de uma novela: tentativas de golpe de Estado, traições, lutas de poder, alianças, vencedores e vencidos.

Acabou por imperar a vontade do supervisor. Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, via as mudanças na administração e governação do BES como essenciais para garantir a sobrevivência do banco face ao avolumar dos problemas das empresas do grupo que estavam cada vez mais perto da rutura.

Mas as alterações não chegaram a tempo. Ricardo Salgado saiu da liderança do BES apenas a 13 de julho. Poucas semanas depois o banco colapsou.

Este é o segundo episódio da série “O fim do BES, dez anos depois” que o ECO vai publicar sobre os cinco dias que contam os momentos finais do BES até à derradeira medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal a 3 de agosto de 2014.

Ricardo Salgado, antigo presidente do BES Mário Cruz / EPA

Um golpe de Estado falhado

Os ventos de mudança na liderança do Grupo Espírito Santo (GES) e do banco começaram a soprar mais forte no final de 2013.

Por esta altura, já a família — ou alguns membros — tinham sido surpreendidos pelo “aumento inusitado” da dívida da Espírito Santo Internacional: 1,2 mil milhões de euros tinham sido ocultados do passivo da holding de topo do grupo que se encontrava na iminência da insolvência.

A liberalidade que Ricardo Salgado recebeu do construtor José Guilherme e o envolvimento do antigo presidente do BES na operação Monte Branco também faziam levantar o sobrolho aos restantes membros da família.

Por detrás do movimento que pretendia mudanças no grupo havia um rosto principal: José Maria Ricciardi. Primo de Ricardo Salgado e representante de um dos cinco ramos da família, há muito que pugnava por alterações profundas na organização. Não gostava da forma como os destinos do grupo estavam a ser conduzidos por Ricardo Salgado.

Quando foi ouvido na comissão de inquérito para apurar as circunstâncias da queda do BES, Ricciardi não poupou nos adjetivos para criticar o estilo de liderança do primo.

“Achava que tínhamos de passar de uma gestão absolutamente discricionária, centralizadora, ditatorial, autoritária, sem delegação, sem colegialidade, sem escrutínio, sem os checks and balances, para uma administração — que foi sempre a cultura do Grupo Espírito Santo até esta geração — que sempre foi colegial, participada por todos, com escrutínio”, disse.

Achava que tínhamos de passar de uma gestão absolutamente discricionária, centralizadora, ditatorial, autoritária, sem delegação, sem colegialidade, sem escrutínio, sem os checks and balances, para uma administração — que foi sempre a cultura do Grupo Espírito até esta geração — que sempre foi colegial, participada por todos, com escrutínio.

José Maria Ricciardi

Ex-CEO do BES Investimento

Para avançar com as mudanças no grupo, José Maria Ricciardi — ou Zé Maria, como era chamado — apresentou um plano de sucessão aos outros membros do conselho superior do GES, a cúpula da família. Mas sem o conhecimento do primo.

“Neste protocolo não estava a propor propriamente demitir Ricardo Salgado. Estávamos a propor que Ricardo Salgado tomasse a iniciativa de se afastar, de sair. Nós achávamos que quanto mais civilizada e organizadamente isto fosse feito, melhor. Qualquer saída intempestiva é sempre perturbante pelas responsabilidades no BES”, explicou Ricciardi no Parlamento.

O chamado protocolo acabou por ser assinado por seis dos nove membros do conselho superior do GES a 29 de outubro de 2013. Aparentemente, José Maria Ricciardi não estava sozinho. Havia mais membros da família que exigiam mudanças na liderança.

O plano saiu furado quando Ricardo Salgado descobriu o que estavam a preparar nas suas costas. Alguém havia traído José Maria Ricciardi.

“Nos princípios de novembro, alguém desses subscritores do protocolo que eu propus foi comunicar a Ricardo Salgado que eu — qual jovem turco — estava a fazer um documento para propor a saída dele. (…) Que eu estava a organizar — para usar o termo dele — um golpe de Estado”.

Em resposta à conspiração orquestrada pelo primo, Ricardo Salgado convocou uma reunião do conselho superior do GES no dia 7 de novembro para assegurar que contava com o apoio de todos os ramos da família e encostar José Maria Ricciardi à parede.

As discussões dos encontros da família acabaram por sair para a praça pública. Salgado pedira aos outros membros para guardarem os telemóveis. Ainda assim houve quem tivesse gravado a conversa.

“Aquilo que eu pergunto e vou perguntar ao nosso presidente é se querem dar uma moção de confiança ou uma moção de desconfiança. Mas se não há uma moção de confiança eu não vou para a frente. E outra coisa que preciso ter garantido é que não há mais falatório sobre o que se passa na sucessão da gestão. Tenho 69 anos e vou desaparecer a qualquer altura. Mas nesta altura, com o mar turbulento que temos, estar a mudar o piloto da embarcação é um convite a irmos todos para o charco.”

Na contagem de espingardas venceu Ricardo Salgado.

Um a um, os membros da família acabaram por lhe dar o voto de confiança que pedira, incluindo aqueles que tinham acabado de assinar o protocolo de sucessão.

José Maria Ricciardi manteve a palavra:Eu não vou dar moção nenhuma de confiança e também não dou de desconfiança. Estou em reflexão, vou ver o que vou fazer, mas neste momento não estou em condições de dar uma moção de confiança”.

Salgado respondeu depois: “Eu faço questão que isto fique claro, que isto tem de sair para o público, que há um voto de confiança no presidente da comissão executiva do BES”.

Quatro dias depois, com a cisão no seio da família a fazer manchetes nos jornais, o conselho superior voltou a reunir-se. A discussão foi novamente quente.

Desta feita, Ricardo Salgado irritou-se com José Maria Ricciardi depois de um comunicado divulgado para os jornais referir que o seu ramo da família apoiava uma sucessão na liderança do grupo.

“O comunicado do dr. José Maria diz aqui: ‘O signatário, na sua qualidade de acionista do grupo, limitou-se a não dar ao dr. Ricardo Salgado o voto de confiança por ele solicitado para continuar a liderar os interesses do grupo por razões que dispensa de revelar’. Se não dá o voto de confiança o que é que dá? Isto é possível, ficar um elemento com estas características dentro de uma comissão executiva? Não é. Totalmente impossível. Não posso aceitar isso. Ou a família está unida ou a família perde o banco. Primeiro a família tem de estar coesa e depois não pode haver esta trapalhada nos jornais”.

Ricciardi explicou-se diante da família: “Quando vejo que eu tinha tentado fazer o golpe de Estado para afastar o dr. Ricardo Salgado e que tinha perdido e sido humilhado e que tinha de me ir embora, eu tive que dizer que não era essa a verdade e por isso fiz o comunicado”.

Salgado pediu ao primo para emendar o erro, pois fragilizava a sua posição: “Nós não podemos estar 24 horas com este comunicado no ar. Ou o dr. José Maria assume que, de facto, isto foi eventualmente um lapso de precipitação de comunicação, um mau entendimento com o jornalista, qualquer coisa, mas que tem confiança na administração e na gestão do dr. Ricardo Salgado ou não aceito outro tipo de adiamento”.

Ao aperceber-se de que estava a ser atirado para fora do grupo, Ricciardi explode:

Não me encostam à parede, não me encostam à parede. A reação que vocês estão a ter é extraordinária. Vão-me pôr fora do grupo. Sim senhor, eu saio do grupo, sem problema nenhum. Não aceito um conselho de administração do BES em que me retiram… E dizem-me que me dão meia hora para eu fazer figura de parvo a dizer que me enganei naquilo que disse. Tenham paciência!

José Maria Ricciardi durante a sua audição na Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão do BES e do Grupo Espírito Santo, na Assembleia da República em Lisboa, 09 de dezembro de 2014. António Cotrim/Lusa 9 dezembro, 2014

“Se governador tivesse pedido para sair, era na hora”

No Banco de Portugal a novela no conselho superior do GES estava a ser acompanhada com atenção redobrada.

Contou Ricciardi no Parlamento: “Nós tivemos uma reunião, penso que foi em novembro ou dezembro. Fomos todos ao Banco de Portugal e o senhor governador virou-se para o dr. Salgado, à nossa frente de todos, e disse: ‘A governance do BES vai ter de mudar’. Que o Banco de Portugal tinha uma vontade de mudar a governance do Banco Espírito Santo, não tenho qualquer dúvida.

Entre janeiro e julho de 2014, o supervisor liderado por Carlos Costa enviou três dezenas de cartas ao BES.

Uma a cada três dias, segundo revelou Ricardo Salgado na comissão de inquérito ao banco.

No final de março, o próprio Ricardo Salgado entregou uma carta ao governador a propor aquilo a que chamou de “solução construtiva” para o futuro do banco.

“Quero dizer claramente a vossa excelência que estou inteiramente disponível no quadro de um saudável e cooperante relacionamento com o Banco de Portugal para encontrar uma solução construtiva de governance, com forte incidência numa maior profissionalização e independência executiva do banco. Não serei eu pôr qualquer motivo pessoal que dificultará essa desejável evolução”.

Ricardo Salgado admitiu no Parlamento que teria sido muito fácil afastá-lo do BES se assim o Banco de Portugal o desejasse: “Se o senhor governador alguma vez me tivesse dito que eu tinha de sair, eu saía na hora, mas é que era na hora”.

Se o senhor governador alguma vez me tivesse dito que eu tinha de sair eu saía na hora, mas é que era na hora.

Ricardo Salgado

Ex-Presidente do BES

Mas não eram esses os sinais que chegavam ao Banco de Portugal. Nem José Maria Ricciardi acreditava nas palavras do primo.

“Eu, da parte de Ricardo Salgado, nunca detetei a mínima disponibilidade para qualquer alteração na governance nem na sua demissão do BES. Se ele a teve não me apercebi dela”, referiu Ricciardi.

Carlos Costa lembrou as cartas que recebera do BES com um tom grave. “Há uma carta que está na posse da comissão de inquérito onde nos é dito: ‘vocês podem causar um tsunami se fazem uma sucessão precipitada‘. Há outra carta que nos dizem: ‘vocês são loucos porque estão a pedir o impossível‘”.

Na comissão de inquérito ao BES, os deputados perguntaram diversas vezes ao governador por que razão o Banco de Portugal demorou tanto tempo a afastar Salgado do banco.

Se me perguntar: se pudesse, faria? Digo-lhe: há muito tempo. Não podia sob pena de ter três questões. Um processo de litigação com responsabilidade extracontratual patrimonial decorrente do facto de estar a perturbar uma instituição. O facto de se tratar de uma instituição de grande dimensão podia introduzir um problema de confiança pública. Já nas últimas semanas de julho se verificou isso em matéria de confiança pública. E, por último, podia introduzir uma questão de não ter sucesso, o que seria desvantajoso para o supervisor.”

Aos poucos, o cerco do Banco de Portugal foi apertando. Em abril, Ricardo Salgado percebeu que o seu tempo à frente do BES estava a chegar ao fim. O seu nome tinha sido rejeitado para a administração do BESI, o banco de investimento do BES.

E não tardou a apresentar um plano de sucessão, que aconteceu a 14 desse mês. Uma semana antes, numa carta enviada ao governador, Ricardo Salgado já assumia o seu destino.

“Venho assumir perante vossa excelência (…) o compromisso de logo a seguir ao closing do aumento de capital social do BES promover a convocação e a realização de uma assembleia geral do BES com vista às alterações estatutárias que se afiguram necessárias na alteração da governance adotando o modelo que venha a ser previamente consensualizado com o Banco de Portugal. Sinto que dei o meu melhor, o melhor da minha vida de trabalho a esta instituição e tenho orgulho no trabalho realizado ao longo deste período tão difícil por que passou o GES desde a nacionalização em 75. Ninguém mais do que eu deseja que o grupo continue a dar uma contribuição valiosa para a economia de Portugal”.

O fim de uma Era

19 de junho de 2014: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) suspende a negociação de ações do BES depois de uma notícia avançar que Ricardo Salgado se preparava para abdicar da liderança do banco.

O BES tinha acabado de realizar um aumento de capital de mil milhões de euros e o artigo do jornal apanhou de surpresa o regulador da bolsa porque essa informação tinha sido ocultada dos investidores.

Nesse dia, o Banco de Portugal havia chamado os membros do conselho superior do GES para comunicar a decisão de afastar a família Espírito Santo da administração do banco, segundo as palavras de Ricardo Salgado na comissão de inquérito.

Tudo se precipitou a partir daqui. No dia seguinte, e sob pressão da CMVM e dos investidores, o banco foi forçado a anunciar as mudanças.

Ricardo Salgado contou a pressão nesse dia 20 de junho de 2014:

“Eu tento entrar em contacto com o senhor governador. Insisto, contacto telefónico, não consigo. Às 12:27, com as ações suspensas, eu mandei este e-mail ao senhor governador: Excelentíssimo senhor governador, mais uma vez, venho pedir-lhe com urgência a autorização para darmos a indicação de Amílcar Morais Pires como próximo CEO. Há bancos a suspenderem as linhas interbancárias, os advogados que apoiaram a transação de aumento de capital estão a pedir esclarecimentos e clarificação sobre o mesmo assunto. Investidores institucionais importantes como o Blackrock Capital e outros estão insistentemente a perguntar qual é a posição. O João Moreira Rato manifesta grande preocupação sobre o potencial impacto no mercado. Desta forma, acredito ser essencial indicar ao mercado a proposta da ESFG para a assembleia geral de 31 de julho para a nomeação de Amílcar Morais Pires como CEO.

A resposta do governador veio cerca uma hora depois:

“Senhor presidente da comissão executiva do BES, prezado dr. Ricardo Salgado, tomei boa nota do email que teve a gentileza de me remeter. Como já tive oportunidade de referir, o Banco de Portugal não está em condições de validar um nome proposto por um acionista de referência para a presidência da comissão executiva sem avaliar o preenchimento dos requisitos de idoneidade”.

Ainda nesse dia, a Espirito Santo Financial Group comunicou ao mercado que ia propor o nome de Amílcar Morais Pires para presidente executivo do banco. Avançou ainda com a criação de um conselho estratégico que seria liderado por Ricardo Salgado.

As mudanças iriam ser aprovadas numa assembleia geral extraordinária que iria ter lugar a 31 de julho. Nada disto veio realmente a acontecer.

Com o fim de um grupo que passou por várias gerações, terminou uma Era que marcou o país durante duas décadas.

O FIM DO BES, DEZ ANOS DEPOIS

Passam dez anos sobre o colapso do maior grupo financeiro português. São cinco episódios com os cinco dias decisivos do fim do BES.

#1. Como perder mil milhões em dois meses Publicado a 11 de junho
#2. O fim da Era Salgado 20 de junho
#3. Rei morto, rei posto 14 de julho
#4. O buraco de 3,5 mil milhões 30 de julho
#5. O dia da capitulação 03 de agosto

  • Diogo Simões
  • Multimédia
  • Tiago Lopes
  • Social Media Editor

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