Há exatamente dez anos, o BES concluía um aumento de capital de mais de mil milhões de euros para reforçar a solidez. Mas os problemas do Grupo arrastaram o banco para a falência dois meses depois.
“O aumento de capital foi muito importante ser feito. Infelizmente, e agora olhando para a situação atual, não deveríamos ter feito o aumento de capital. Mas foi o Banco de Portugal que impôs o aumento de capital pela carta de 25 de março. Tivemos de cumprir de acordo com as instruções do Banco de Portugal, como sempre procurámos cumprir”.
As palavras são de Ricardo Salgado, em plena comissão parlamentar de inquérito, em dezembro de 2014, quatro meses depois da queda do BES.
O aumento de capital a que o antigo presidente do BES se referia tinha sido realizado dois meses antes do colapso do banco.
Mas aquilo que parecia ser uma boia de salvação de um dos maiores bancos em Portugal, transformou-se num pesadelo para milhares investidores. Num abrir e fechar de olhos, mil milhões de euros evaporaram-se para sempre. Quem teve culpa?
Este é o primeiro episódio de uma série de cinco dias que contam os momentos finais do BES até à derradeira medida da resolução aplicada pelo Banco de Portugal no dia 3 de agosto de 2014.
O aumento de capital de 1.045 milhões de euros foi concluído a 11 de junho daquele ano, cumprem-se agora precisamente dez anos.
O supervisor bancário obrigou o BES a reforçar o seu capital depois de considerar que a garantia do Estado angolano não era válida para cumprimento dos rácios e depois de se ter detetado perdas significativas e ocultadas no grupo da família Espírito Santo, nomeadamente na Espírito Santo Internacional, a holding de topo que controlava os ramos financeiro e não financeiro.
Havia o receio de os problemas da ESI contaminarem o banco, o que levou o regulador liderado por Carlos Costa a exigir um reforço das almofadas financeiras, como explicou na comissão de inquérito que investigou as causas da queda do BES:
“O crédito que tinha o BES sobre a ESI estava em risco e por isso tinha de haver o cálculo de uma imparidade. Além disso determinámos que houvesse uma provisão para cobrir o papel comercial que tinha sido colocado na rede de retalho emitido pela ESI que não sendo responsabilidade do BES tinha, no entanto, um impacto reputacional”.
Infelizmente, e agora olhando para a situação atual, não deveríamos ter feito o aumento de capital. Mas foi o Banco de Portugal que impôs o aumento de capital pela carta de 25 de março.
A injeção de dinheiro permitiria ao banco reforçar a sua solidez financeira, repor os chamados rácios de capital, tendo até em vista os testes de stress a que iria ser submetido no final do ano. Mas tudo se precipitou a partir daqui.
O aumento de capital saiu para o mercado, mas a muito custo. Poucos dias depois de enviar a tal carta ao BES, como referido por Ricardo Salgado, o Banco de Portugal reuniu a 4 de abril com a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários para dar conta de que exigira um aumento de capital ao banco.
Caberia à CMVM, enquanto regulador da bolsa, aprovar o prospeto do aumento de capital do banco depois de o requerimento ter dado entrada nos serviços a 23 de abril. O processo revelou-se complexo e bastante atribulado, para nervosismo do banco e dos seus assessores, que tinham pressa em avançar com a transação.
O BES haveria de enviar à CMVM mais de três dezenas de versões do prospeto. Carlos Tavares, na altura presidente da CMVM, contou no Parlamento que se a aprovação do prospeto se arrastou durante várias semanas, mais do que o habitual neste tipo de operações: “Há um mês de discussão com a CMVM desde a entrega da primeira versão do prospeto a 24 de abril. Dizem que houve mais de 30 versões deste prospeto porque a CMVM fez aquilo que lhe competia: exigir que toda a informação estivesse no prospeto. (…) Este processo foi relativamente longo porque o emitente, neste caso – e acontece muitas vezes – não quer por a informação toda ou não quer por com toda a clareza”.
O primeiro draft que nos chegou… o mínimo que podemos dizer é que não era verdadeiro. A CMVM impôs como condição para aceitar a informação se ela fosse validade pelos auditores. Só que os auditores não a validaram.
O prospeto do aumento de capital acabou por ser publicado a 21 de maio. O documento final trazia uma alteração de última hora para incorporar a informação relativa aos problemas na ESI, falando mesmo em “irregularidades materialmente relevantes” que colocam a empresa numa “situação financeira grave”.
Carlos Tavares: “Foi-os proposto um fator de risco adicional. Porque não sendo uma informação diretamente relativa ao BES, o emitente e os seus representantes até acharam que não tinham de divulgar esta informação relativa à ESI, porque não era informação relativa ao BES, mas a um acionista seu. Nós entendemos que sendo acionista de controlo, se alguma coisa de mal acontecesse na ESI, ainda para mais gerido pelas mesmas pessoas, não poderíamos excluir que algo de mal acontecesse na ESI tivesse implicações quer sobre o preço das ações do BES, quer em relação aos seus efeitos reputacionais do grupo e das pessoas que geriam a ESI e o BES”.
Os “dias horríveis” de Salgado
O aumento de capital arrancou finalmente a 27 de maio, mas os fogos no seio do Grupo Espírito Santo multiplicavam-se.
A ESI estava na iminência do incumprimento. A Rioforte também se encontrava pressionada pelo reembolso de dívida que teria lugar dali a poucos dias. A Espirito Santo Financial Group enviou um comunicado na bolsa de Lisboa a adiantar que também estava em muitos apuros.
A 2 de junho, numa reunião do Conselho Superior do GES, a cúpula da família, José Manuel Espírito conta aos restantes membros que aqueles dias “têm sido absolutamente impossíveis”. Ricardo Salgado desabafa mesmo que está a “viver o dia-a-dia com uma intensidade horrível”, segundo descreve o Ministério Público na acusação sobre a queda do BES.
Segundo o mesmo relato, durante a reunião, Ricardo Salgado telefonou ao governador do Banco de Portugal para “dar uma palavrinha ao Presidente da Caixa Geral de Depósitos” para o banco público conceder um empréstimo à Rioforte para evitar o default. Um incumprimento de uma empresa do GES poderia arruinar o aumento de capital que estava em curso.
Em cima da mesa estaria um empréstimo da Caixa na ordem dos 2,5 mil milhões. Na altura, o antigo presidente do BES também havia falado com o primeiro-ministro Passos Coelho e outros membros do Governo e ainda com o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, no sentido de obter ajuda. Sem sucesso.
Ainda assim, a 11 de junho de 2014, Ricardo Salgado respira de alívio. Apesar de todos os problemas, o seu banco conclui com sucesso o aumento de capital de mais de mil milhões de euros.
A procura foi tanta que o sindicato de bancos que se comprometeu a comprar as novas ações caso não houvesse interesse não teve de meter qualquer dinheiro.
O reforço de capital foi assegurado por cerca de 470 investidores institucionais. Outros 23 mil pequenos investidores aplicaram 80 milhões de euros.
Para Salgado, foi uma prova de que o mercado acreditava no banco: “Eu pergunto aos senhores deputados e ao senhor deputado Pedro Nuno Santos se considera ou não que havia uma enorme confiança no BES para conseguir ter o sucesso que teve”.
A bolsa também mostrava sinais positivos em relação ao futuro do banco. As ações valorizaram quase 20% nas semanas do aumento de capital, valendo mais de 1 euro cada.
Ainda assim, tudo estava preso por arames. A partir deste momento, uma a uma, as empresas do grupo começaram a cair. Até o próprio banco sucumbir dois meses depois.
Reguladores passam culpas
Quem perdeu dinheiro no aumento de capital do BES ainda hoje se deve perguntar sobre o papel dos reguladores no meio deste processo.
Se a queda do BES veio expor a falta de coordenação entre os supervisores financeiros, a comissão de inquérito transformou-se num lavar de responsabilidades de quem tem a missão de vigiar os bancos e a bolsa.
“Chamo a atenção que a aprovação do prospeto não é da responsabilidade do Banco de Portugal, mas isto não constitui nenhuma censura à CMVM”, disse Carlos Costa quando foi ouvido pela comissão de deputados pela primeira vez a 17 de novembro de 2014.
Carlos Tavares passou a batata quente para o outro lado: “A CMVM não aprova aumentos de capital. A CMVM aprova a informação relativa aos aumentos de capital. (…) No caso de instituições financeiras, o supervisor prudencial tem de ser pronunciar sobre o aumento de capital”.
O governador foi chamado por uma segunda vez à comissão. E foi com a deputada Mariana Mortágua que teve esta interação insólita a propósito do aumento de capital e do papel dos reguladores no processo:
Disse Carlos Costa: “Nós somos o cardiologista que verifica que há um problema cardíaco. Depois constatámos que havia um problema na anca. Pedimos a um especialista para ir ver o que se passava. Constatámos que era um problema relevante. Chamámos a entidade que se ocupa do problema da anca e dissemos: ‘Olhe, por favor, venha cá, porque o problema não é só nosso’. É tão simples quanto isso”.
Segundos depois, enquanto pensava numa resposta ao seu estilo, Mariana Mortágua atirou:
“Senhor governador, no dia em que eu for a um ortopedista e ele me descobrir um problema no coração, espero que ele diga ao cardiologista mais perto e que não ande a guardar informação sobre o meu coração porque nesse dia eu terei grandes problemas”.
Senhor governador, no dia em que eu for a um ortopedista e ele me descobrir um problema no coração, espero que ele diga ao cardiologista mais perto e que não ande a guardar informação sobre o meu coração porque nesse dia eu terei grandes problemas.
O presidente da CMVM explicou que “à face da lei europeia e das diretivas e de alguma maneira do nosso código, o responsável pelo prospeto é o emitente: se ele mentir e disser coisas erradas, ele é o responsável e os investidores podem processá-lo ou questioná-lo por isso”.
O que veio mesmo a acontecer. Oito anos depois do aumento de capital, a CMVM condenou Ricardo Salgado e outros quatro membros da administração do BES a coimas no valor de 2,7 milhões de euros.
O antigo presidente do banco foi condenado a uma multa de um milhão de euros – a maior de todas neste processo — e ainda uma pena acessória de impedimento do exercício de atividade na banca durante cinco anos.
Para o regulador do mercado, o banco e administração enganaram os investidores: não incluíram toda informação que já sabiam na altura do aumento de capital sobre os problemas no BES e no GES no prospeto.
Para os investidores de pouco valerá esta condenação. Mil milhões de euros evaporaram em dois meses.
O FIM DO BES, DEZ ANOS DEPOIS
Passam dez anos sobre o colapso do maior grupo financeiro português. São cinco episódios com os cinco dias decisivos do fim do BES.
#1. Como perder mil milhões em dois meses 11 de junho
#2. O fim da Era Salgado 20 de junho
#3. Rei morto, rei posto 14 de julho
#4. O buraco de 3,5 mil milhões 30 de julho
#5. O dia da capitulação 3 de agosto
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#1. Como perder mil milhões em dois meses
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