“Eu é que sou o campeão anticorrupção!” (I)

  • Paulo Saragoça da Matta
  • 28 Junho 2024

Qual o fundamento racional, normativo e até ético de ser declarada a perda de bens de alguém a favor do Estado, no quadro de um processo-penal justo e dentro do esquema constitucional que ainda temos?

Presenteou-nos o Governo da República, na passada semana, com pompa e circunstância, conferência de imprensa, televisões, rádios e jornais, com uma “Agenda da Corrupção”. Depois dos pacotes anticorrupção dos Governos socialistas, temos agora uma Agenda anticorrupção…

Esta agenda assenta em 4 pilares, cuja prioridade, sequência e importância relativa se desconhece, embora pareça, graficamente, que o Governo começa pela punição efectiva, passando para a celeridade processual, daí para a protecção do sector público, e terminando na prevenção. “Lógica” esta que será interessante ver ser defendida por S.Exa. a Ministra da Justiça no “Lugar da Esperança”, assim crismado por S.Exa. Assunção Esteves, “Senhora dos Inconseguimentos”.

Além dos 4 pilares, desenvolve-se a Agenda por promessas (ou serão ameaças?) de medidas legislativas em 31 questões problemáticas. Não 1, não 10, não 20… mas 31 questões problemáticas. Nesta coisa de medidas legislativas anunciadas em início de ciclo, espanta, apenas, não serem 100 ou 150 medidas.

Decidimos respigar aqui apenas seis dessas questões, por falta de tempo, seguindo o critério de serem as mais perigosas possível, no momento actual de florescimento dos extremismos, para a tutela dos direitos, liberdades e garantias das pessoas suspeitas ou investigadas em processo penal. Pessoas essas, suspeitas ou investigadas, que pode ser qualquer de nós, qualquer um de vós, que aqui me ledes.

Até porque as demais ou são “mais do mesmo”, ou terão eficácia nula se implementadas, ou são meras “parole, parole” para que tudo mude, garantindo que tudo fique na mesma, ou são a afirmação, precisamente, do oposto do que desde sempre fizeram todos os Governos de todos os Partidos desde a instauração desta IIIª República (assim a medida de aumentar a proactividade na disponibilização de informações e documentos do Estado – quando sabemos que as entidades de Estado são totalmente avessas a tornarem públicos documentos que a si mesmo respeitam, desde logo o dos valores efectivos recebidos pelos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos; assim a medida visando um maior recurso a assessorias jurídicas públicas, “fugindo” das assessorias privadas a grandes, médias ou pequenas, sociedades de advogados, quando não a jurisconsultos em prática privada; passando pela medida de criação de mecanismos totalmente inúteis, como os planos de prevenção de corrupção para os órgãos de Estado, quando sabemos que o crime de branqueamento de capitais – insitamente ligado à corrupção hodiernamente – está pensado como não podendo ser praticado através de entidades do Estado).

Pelo que, de modo absolutamente tópico e sintético, veremos um “pacotinho” de apenas seis medidas, e o que as mesmas significarão se esta infeliz Agenda não soçobrar às mãos do Presidente da República e/ou do Tribunal Constitucional (o que fervorosamente esperamos aconteça).

Sim, porque se depender da Assembleia da República serão aprovadas estas e ainda outras medidas anticorrupção, como a tortura física, a forca em pelourinho, senão mesmo a morte pelo fogo em piras no Terreiro do Paço. Tudo porque entre Partidos no Parlamento gerar-se-á uma competição de “um dizer mata e outro dizer esfola”, todos na competição para alcançar o prémio do maior paladino anticorrupção.

Assim:

Medida 9. Criar um “novo paradigma” de Perda Alargada de Bens a favor do Estado.

Só quem nunca viveu num processo criminal a utilização pelo MP e pela PJ (GRA – Gabinete de Recuperação de Activos) do mecanismo da perda alargada pode entender que é uma medida não suficientemente demolidora da vida de um suspeito, de um arguido, ou mesmo de um condenado.

Este mecanismo significa que todo o património de uma determinada pessoa pode ser declarado perdido a favor do Estado, ainda que nada desse mesmo património tenha nada que ver, nem de perto nem de longe, com qualquer alegado crime em que a pessoa investigada tenha participação. Seja o suspeito de ser agente do crime, seja um qualquer alegado mero cúmplice. I.e., mesmo todo o património ganho ao longo de uma vida antes da data da prática do suposto crime, pode ser perdido a favor do Estado; e não só o do suspeito, mas ainda o património que esteja na esfera dos filhos, da mulher, dos pais, dos sogros, dos tios, ou de qualquer outra pessoa, bastando que para tal o Tribunal “suspeite” que o “suspeito” teve auxílio de qualquer pessoa para na esfera destes ocultar o património.

Expliquemo-nos, para todos entenderem do que se está a falar: Este mecanismo significa que todo o património de uma determinada pessoa pode ser declarado perdido a favor do Estado, ainda que nada desse mesmo património tenha nada que ver, nem de perto nem de longe, com qualquer alegado crime em que a pessoa investigada tenha participação. Seja o suspeito de ser agente do crime, seja um qualquer alegado mero cúmplice. I.e., mesmo todo o património ganho ao longo de uma vida antes da data da prática do suposto crime, pode ser perdido a favor do Estado; e não só o do suspeito, mas ainda o património que esteja na esfera dos filhos, da mulher, dos pais, dos sogros, dos tios, ou de qualquer outra pessoa, bastando que para tal o Tribunal “suspeite” que o “suspeito” teve auxílio de qualquer pessoa para na esfera destes ocultar o património.

Acaba por ser um jogo de suspeitas, que impõe uma inversão do ónus da prova absoluto, em processo criminal (pois a perda de bens a favor do Estado não é uma medida cível, mas criminal, prevista em Lei penal e para cujo decretamento nenhum Tribunal tem competência material senão um Tribunal Criminal): caberá aos afectados pelas apreensões que visam a perda de bens, a final do processo e após condenação, demonstrarem a origem de todo o património que detêm. Ainda que sejam bens recebidos por herança de Pais, Avós, Bisavós, ou mesmo de uma linhagem de 10 gerações de propriedade (tantas vezes indocumentável).

Ouvido sobre a constitucionalidade deste tipo de medida, o augusto Tribunal Constitucional Luso sempre se pronunciou no sentido de ser constitucionalíssimo… (!). Mesmo apesar do princípio da presunção de inocência, mesmo apesar do princípio da proibição da inversão do ónus da prova em sede criminal (e a CRP e a Lei não dizem que é apenas para a pena de prisão e/ou de multa, mas para todas as consequências jurídicas do crime, o que o TC parece ter esquecido), mesmo apesar do princípio da protecção do Direito à propriedade privada.

Então o que significa o novo paradigma com que o Governo ainda mais ameaça estes princípios que sempre foram considerados quase sagrados?

Significa que durante o processo e antes da condenação final transitada em julgado, i.e., antes de haver seja que certeza for sobre a efectiva responsabilidade e grau de culpabilidade do suspeito nos actos investigados, o Estado não terá de se limitar a arrestar ou apreender os bens: poderá declarar os bens perdidos a seu favor, deles se apropriar, vender, destruir, oferecer, etc.

E, portanto, em última análise, os suspeitos ou arguidos perderão efectivamente (de facto et de iure) todo o património de que sejam titulares (ainda que na esfera de quaisquer terceiros), mesmo “correndo-se o risco” de virem a ser absolvidos. E se vierem a ser absolvidos, “paciência”, o Estado terá de os indemnizar… obviamente… e seguramente os indemnizará como indemniza as expropriações por utilidade pública (i.e., “ao preço da uva mijona”), ou como indemnizou as nacionalizações e expropriações do período revolucionário de ‘74 (muitas nunca indemnizadas, até hoje, ou objecto de “macaqueações” de indemnizações – do que tivemos experiência profissional profunda, como poucos Advogados da nossa geração tiveram).

Certo é que logo apareceram uns quantos Magistrados Egrégios, e até alguns Advogados Sábios, a afirmar que “afinal” o que o Governo anunciava como “novo paradigma” já existia, aparentemente numa lógica de degradar a iniciativa governamental.

E logo esgrimiram estonteantes argumentos no sentido de demonstrarem a razão do que afirmavam. Vejamos: Quando houver prescrição, diziam uns, o Tribunal não pode condenar numa pena, mas poderá declarar os bens perdidos a favor do Estado – o que seria a primeira evidência da inutilidade do proposto pelo Governo; diziam outros, que se o Agente do Crime morrer, a responsabilidade criminal não poderá efectivar-se, mas obviamente que a perda de bens a favor do Estado poderá ter lugar, e terá, efectivamente – e esta seria a segunda evidência de que ninguém precisaria de preocupar-se, pois ficaria tudo “como estava d’antes”.

Ora, como é óbvio para quem saiba ler “leis” (não para os estigmatizados com iliteracia jurídica, que lêem normas jurídicas como se fossem receitas de cozinha), esses dois exemplos claríssimos, não depõem nada sobre a suposta irrelevância das medidas agora preconizadas na Agenda da MJ… e que de irrelevante nada têm, daí serem intoleráveis (como intoleráveis são, já hoje, as interpretações apresentadas pelos corifeus das construções jurídicas que atrás resumimos, principalmente se se estiver a fazer interpretação conforme à Constituição – para aqueles que interessa que percebam esta asserção, julgo que está percebido, mesmo sendo meia palavra).

Será que é inequívoco que um Tribunal, na economia do sistema normativo penal e processual-penal português (que integra leis, códigos, normas constitucionais e normas internacionais condicionadoras da admissibilidade das leis e códigos lusos), pode declarar um Crime prescrito, absolver o Arguido da acusação que lhe foi movida, e ainda assim condená-lo à “consequência jurídica do crime” de perda de todo o património a favor do Estado (prevista para os casos de condenação criminal)?

Claro que não só não é inequívoco, como, a nosso modesto ver, não é sequer admissível tal construção à luz dos mais básicos princípios jurídicos da justiça, da lógica, da proporcionalidade e até dos fins das consequências jurídicas dos Crimes. Para já não falar do impedimento emergente da estrutura constitucional dos Direitos, Liberdades e Garantias, também face à Justiça Penal do Estado.

Senão vejamos, também:

Será que é inequívoco que um Tribunal, na economia do sistema normativo penal e processual-penal português (que integra leis, códigos, normas constitucionais e normas internacionais condicionadoras da admissibilidade das leis e códigos lusos), pode declarar um Crime prescrito, absolver o Arguido da acusação que lhe foi movida, e ainda assim condená-lo à “consequência jurídica do crime” de perda de todo o património a favor do Estado (prevista para os casos de condenação criminal)?

Claro que não só não é inequívoco, como, a nosso modesto ver, não é sequer admissível tal construção à luz dos mais básicos princípios jurídicos da justiça, da lógica, da proporcionalidade e até dos fins das consequências jurídicas dos Crimes. Para já não falar do impedimento emergente da estrutura constitucional dos Direitos, Liberdades e Garantias, também face à Justiça Penal do Estado.

Desde logo porque na tal economia do sistema, ninguém pode ser condenado pela prática de um crime se se tiver verificado a prescrição do procedimento criminal – como qualquer aluno de primeiro ano de Faculdade de Direito sabe, a Segurança é um valor prosseguido pelos sistemas jurídicos, a par do valor da Justiça. E se não há condenação pela prática do crime, lógica, jurídica, legal, constitucionalmente, não pode haver lugar à consequência de tal condenação, i.e., à verificação daquilo que se baptizou de consequência jurídicas do crime…

E isto é assim, e tem que ser assim, seja para os que entendem que a perda alargada tem uma natureza mista (entre consequência penal e indemnização cível) – assim um terço da jurisprudência e da doutrina –, seja para os que a vêem com natureza de medida de segurança – assim outro terço das mesmas jurisprudência e doutrina –, seja ainda para aqueles a quem “tanto lhes faz” a natureza da medida, desde que permita arrecadar património para a esfera pública (estes são os que acham que nunca vão ser fulminados com tal medida) – assim para o terceiro terço da jurisprudência e da doutrina.

A questão radical, porém, é outra: Qual o fundamento racional, normativo e até ético de ser declarada a perda de bens de alguém a favor do Estado, no quadro de um processo-penal justo e dentro do esquema constitucional que ainda temos, se não houve uma condenação criminal, in casu porque o Estado não teve a diligência de averiguar e decretar essa mesma responsabilidade criminal dentro dos prazos que ele próprio, Estado, considerou serem suficientes a tal apreciação e decretamento?

Será o fundamento que subjaz a todo o fisco? De que tudo o que é do cidadão pode ser do Estado, se o Estado assim o decidir? Julgamos que a resposta fica evidente para quem quer que seja que esteja de boa-fé e deseje manter a sã consciência, não subvertendo o Estado de Direito.

Vejamos o outro exemplo usado por alguns como ilustração aparente de que, afinal, a perda alargada não pressupõe, já hoje, qualquer condenação criminal: se o agente do crime morrer, dizem esses, a responsabilidade criminal não poderá efectivar-se, mas “obviamente” que a perda de bens a favor do Estado poderá ter lugar, e terá, efectivamente, lugar.

Será que é assim? Será isto que diz a Lei vigente? Não, não é. Os que defendem esta (s.d.r., inconcebível) possibilidade legal partem do disposto no art.º 110º n.º 5 do CP (O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz). Ora, lendo com rigor essa norma, rigor que a leitura da lei penal exige a todos quanto a querem devidamente compreender, percebe-se que a situação de morte do agente, ou da sua declaração de contumácia, referidas nesta norma, não depõem em nada a favor da tese de que a perda pode ser declarada independentemente de o agente ter sido condenado.

A lei é clara, e rigorosa, na escolha daquilo que queria dizer, e que correctamente disse, à luz do art.º 9º do Código Civil: diz que a perda de produtos ou vantagens do facto ilícito típico (que é o modo de o Código Penal dizer, em vários momentos, “o crime”) tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto. O CP não fala em alguma pessoa determinada não ter sido “condenada pelo facto”… rigorosamente fala na não punição do facto ilícito típico, o que, de acordo com a lógica, as regras, os princípios, pressupõe a prévia condenação.

A lei é clara, e rigorosa, na escolha daquilo que queria dizer, e que correctamente disse, à luz do art.º 9º do Código Civil: diz que a perda de produtos ou vantagens do facto ilícito típico (que é o modo de o Código Penal dizer, em vários momentos, “o crime”) tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto. O CP não fala em alguma pessoa determinada não ter sido “condenada pelo facto”… rigorosamente fala na não punição do facto ilícito típico, o que, de acordo com a lógica, as regras, os princípios, pressupõe a prévia condenação. Precisamente por isso existe há muito uma querela sobre o que é o crime: se é um facto típico, ilícito, culposo e punível, ou se é só um facto típico, ilícito e culposo, sendo que a punição já está “de fora” da definição de crime, na medida em que constitui uma consequência jurídica desse mesmo crime.

Logo, sem mais esforço hermenêutico, é lógico e inequívoco que o actual regime da perda alargada não é aplicável independentemente de condenação criminal – ao invés, a Lei é clara ao afirmar que pressupõe a condenação criminal, por isso cria um regime para os casos em que apesar de ter havido condenação, não possa haver punição (i.e., efectivação do castigo), e enumera exemplificativamente duas situações:

A primeira é o caso de haver declaração de contumácia após a condenação (os casos de fuga antes do início da execução da pena fixada, ou os casos de evasão após o início dessa execução, como resulta, aliás, do art.º 352º CP de modo claro e indubitável); e a segunda são os casos de morte posterior à condenação (não, obviamente, a morte antes da condenação transitada em julgado, pois nesse caso, por definição não pode sequer haver condenação, pelo que o regime da perda não fica previsto na norma citada).

Aliás, é precisamente do regime da declaração de contumácia que resulta termos razão quando afirmamos que não pode haver generalizadamente perda de bens a favor do Estado sem condenação… Esse regime vem demonstrar, apenas, que a Lei prevê uma e única excepção à imperiosa necessidade de condenação prévia à declaração de perda de bens a favor do Estado. E, como se sabe, a excepção confirma a regra, nos casos não exceptuados.

E essa excepção surge quando, no art.º 335º n.º 5 do CPP, a Lei estatui que “A declaração de contumácia não impede o prosseguimento do processo para efeitos da declaração da perda de instrumentos, produtos e vantagens a favor do Estado”.

Nestes casos, obviamente, está a referir-se à declaração de contumácia mais comum, i.e., a contumácia no decurso do processo e prévia à condenação. Mas é a única excepção à regra geral de que a declaração de perda de produtos e vantagens do crime poderá ocorrer não tendo havido condenação mercê da fuga ou ausência do Arguido ao processo. E porquê? Faz sentido?

Faz todo o sentido, e, nesta sede normativa, a Lei cria esse regime punitivo para o contumaz não condenado, porque a própria contumácia é um instituto criado e desenhado de molde a compelir a comparência do visado no processo… é isso mesmo que resulta como filosofia geral subjacente ao instituto da contumácia, no art.º 337º n.º 3 CPP (“Quando a medida se mostrar necessária para desmotivar a situação de contumácia, o tribunal pode decretar a proibição de obter determinados documentos, certidões ou registos junto de autoridades públicas, bem como o arresto, na totalidade ou em parte, dos bens do arguido”).

Faz todo o sentido, e, nesta sede normativa, a Lei cria esse regime punitivo para o contumaz não condenado, porque a própria contumácia é um instituto criado e desenhado de molde a compelir a comparência do visado no processo… é isso mesmo que resulta como filosofia geral subjacente ao instituto da contumácia, no art.º 337º n.º 3 CPP (“Quando a medida se mostrar necessária para desmotivar a situação de contumácia, o tribunal pode decretar a proibição de obter determinados documentos, certidões ou registos junto de autoridades públicas, bem como o arresto, na totalidade ou em parte, dos bens do arguido”).

Por isto, e apenas por isto, esta norma está prevista no regime da contumácia, e não no regime da perda alargada… em situações de contumácia prévia à condenação, o prosseguimento do processo para declaração de perda de instrumentos, produtos ou vantagens do crime é em si mesma considerada como uma sanção, uma punição, tentado obrigar o contumaz a apresentar-se à Justiça. E tinha de estar especificamente prevista esta possibilidade, excepcional, posto que se o não estivesse, nunca poderia, seguindo-se o regime regra, atingir tal desiderato de compulsão do agente a apresentar-se.

Assim que, cessando a contumácia, porque o contumaz se fez presente a juízo, ainda que o processo estiver a ser tramitado para a declaração de perda, esta senda parará, e o processo visando o julgamento e eventual condenação retoma-se na sua integralidade e normalidade. Mesmo que se tenha estado em sede de julgamento na ausência. Tudo porque o objectivo do mecanismo penal e processual penal não é o confisco, mas o atingir de uma decisão criminal final, condenatória ou absolutória.

Seria ridículo afirmar que a declaração de perda alargada poderia ser tramitada até ao fim, e prosseguir até ao confisco, se no processo se concluísse pela absolvição do arguido (seja por que razão for). E, por isso, na sede da regulamentação da perda alargada, como vimos, o que se prevê é apenas a contumácia post condenação, tal como se prevê a perda alargada nos casos de se verificar a morte do condenado, que como o nome bem indica pressupõe a prévia condenação.

Por fim, se necessário fosse, resulta de vários normativos espalhados pelo Código que a declaração de perda de bens a favor do Estado, hoje, carece de prévia condenação, v.g.: art.º 7º n.º 1, 8º a 10º, em especial 11º n.º 3, 12º n.º 1 e também muito expressivamente 12º-A da Lei n.º 5/2002.

Assim sendo, propondo o Governo, neste por si desejado “novo paradigma”, admitir a declaração de confisco (perda alargada de instrumentos, produtos e vantagens a favor do Estado) independentemente de condenação, e passando essa a ser a regra, e não a excepção, temos um projecto de legiferação absolutamente novo, absolutamente inovador. E, o que mais é, totalmente contrário à arquitectura geral do nosso sistema de Direitos, Liberdade e Garantias, seja na Constituição, seja nos próprios diplomas legais que fomos referindo: a Lei n.º 5/2002, o Código Penal e o Código de Processo Penal.

Esta intenção é de rechaçar totalmente, por violação de todos os princípios e valores que deixámos enunciados.

  • Paulo Saragoça da Matta
  • Sócio da DLA Piper

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