BRANDS' ADVOCATUS A imigração e o risco da incapacidade do Estado

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  • 15 Julho 2024

Filipe Lobo d’Avila, Advogado, Country Manager Rödl & Partner, partilha a sua opinião sobre a extinção do SEF e o desempenho da AIMA.

Nos últimos tempos, o tema da imigração entrou no debate político e multiplicaram-se os comentadores especialistas numa realidade demasiadas vezes descrita a preto e branco, numa divisão entre humanistas e racistas ou entre tolerantes e xenófobos. Num tema em que reconhecidamente são fáceis as catalogações, os casos recentes de criminalidade também acabam por contribuir para o surgimento de discursos mais securitários ou divisionistas que não ajudam a abordar o tema naquele que deve ser o seu contexto.

A imigração não é um caso de polícia, mas é também verdade que a criminalidade mais ou menos organizada não tem exclusivo de nacionalidades.

No meio desta realidade, o processo de extinção do SEF podia correr mal e podia correr mal no pior momento possível. Era previsível e deveria ter sido antecipado por quem teve tempo mais do que suficiente para antecipar os problemas e reunir os recursos indispensáveis.

Não foi o que aconteceu e nem a escolha pessoal do novo responsável da AIMA (alguém do universo socialista, habituado a desafios exigentes) conseguiu salvar um processo gerido a passo de caracol e com um desfecho que politicamente era por demais evidente.

Vamos então por partes.

Por uma questão ideológica (e por causa de um caso isolado inadmissível) decidiu-se aplicar a pena máxima de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, ignorando prémios, reconhecimentos e procedimentos essenciais da responsabilidade do SEF.

Há muito tempo que algumas forças políticas, incluindo do centro-direita, queriam acabar com o SEF. Não sendo propriamente uma novidade, no tempo de Passos Coelho essa foi a única clivagem nos membros da coligação do Ministério da Administração Interna.

Depois veio o PS e o fim do SEF foi pré-anunciado, pré-anunciado novamente, anunciado, e dado a um processo de morte lenta. Sem prazo, sem método e sem conforto para inspetores, técnicos de imigração e funcionários envolvidos.

Um Serviço invejado por todos os serviços correligionários europeus, pelos prémios de excelência atribuídos, pelas evoluções tecnológicas, pela qualidade dos seus inspetores e colaboradores, mas também pela eficiência na sua ação (de análise documental, fiscalização e investigação criminal) era colocado em morte lenta.

Ao contrário da tese que se procura afirmar para justificar o injustificável, o modelo organizacional do SEF sempre foi invejado por todos os Países Europeus por se tratar de um serviço dotado de todas as vertentes relacionadas com imigração e estrangeiros. Um serviço completo e que, também por isso, sempre foi motivo de inveja, mesmo internamente. Um dos poucos serviços públicos que exportava, em simultâneo, conhecimento e tecnologia.

Quando a máxima que tantas vezes impera é a do “não te rales, mas não te enganes”, um serviço público com este dinamismo e com estas características nunca estaria imune a invejas, pressões ou tentativas de fusão por incorporação.

Ao abrigo destas teses, têm sido ditas algumas afirmações que causam enorme perplexidade.

Recentemente, um antigo Ministro da Administração Interna socialista dizia que o cidadão imigrante não podia ser exposto a um agente policial ao pretender tratar da sua regularização documental. Simplificando, uma coisa seria o tratamento da papelada, outra coisa seria o exercício de funções policiais. Isto até poderia ser assim, pelo menos do ponto de vista teórico ou doutrinário, se estes mesmos responsáveis políticos garantissem que a comunicação entre as duas componentes permanecesse inalterada, sem perturbações, sem interrupções e sem consequências absolutamente desastrosas. Conseguimos hoje garantir que a comunicação entre estas duas componentes subsiste?

Por outro lado, a natureza do procedimento nunca foi condicionada pela qualidade do agente público. Bem pelo contrário. A qualidade do agente nunca ditou a natureza do procedimento. A coberto de uma tese de acolhimento humanista e de não exposição do cidadão estrangeiro a um polícia desmantelou-se finalmente o SEF e criou-se a nova Agência, a AIMA.

Também a coberto da mesma tese, abriu-se uma caixa de pandora de muito difícil resolução (e que naturalmente alimenta – e alimentará – discursos mais extremistas, que vão encontrando na realidade percecionada pelos portugueses fundamentos de adesão).

A realidade é hoje demasiado complexa, com praticamente 400 mil processos pendentes, sem referir eventuais pedidos de reagrupamento familiar (os quais facilmente multiplicariam por duas vezes ou mais os números de candidatos à regularização em Portugal), com falhas graves de recursos humanos e com funções fundamentais do Estado deixadas ao abandono.

Filipe Lobo d’Avila, Advogado e Antigo Secretário de Estado da Administração Interna

O problema da opção ideológica e política da criação da AIMA não é apenas uma questão de “recursos e tempo”, como diria recentemente outro responsável socialista. É um problema de recursos, é um problema de tempo, mas é também um problema objetivo de competências que têm que ser exercidas e que deixaram de o ser.

Houve um abandono de determinadas funções que, hoje – e a prazo -, terão consequências gravíssimas. Basta perceber que ao longo da última década foram regularizadas cerca de 2,5 milhões de pessoas e que nem metade (será que um terço?) está já em Portugal.

Nas parcas estatísticas existentes e publicamente consultáveis alguém consegue descortinar onde estão essas pessoas? Os imigrantes que tanto poderiam ajudar hoje a economia nacional em determinadas áreas de atividade económica – e que já regularizámos – onde estão? A verdade é que a maioria destes imigrantes regularizados já não está em Portugal. A verdade é que Portugal tem sido uma plataforma de entrada para outros destinos. E esse é o primeiro problema que temos que ter consciência e que não podemos ignorar.

O segundo problema é naturalmente de recursos e de gestão de recursos.

O SEF tinha um corpo de inspetores altamente especializado na ordem das 7 a 8 centenas, os quais se encontravam territorialmente distribuídos, assumindo funções multidisciplinares (por exemplo: de tratamento documental, de fiscalização, natureza inspetiva, assim como de investigação criminal). A maioria destes quadros superiores de excelência transitou naturalmente para a Polícia Judiciária, como era obrigação política de antecipar e colmatar.

Nada contra a ideia de que quem trata de papelada não deve ser um polícia, mas se assim é não deveria isto também ter sido igualmente antecipado?

É óbvio para qualquer autoridade medianamente informada sobre a matéria que as funções anteriormente assumidas pelo SEF não poderiam ser satisfatoriamente asseguradas pela AIMA e que a escassez de recursos seria mais do que previsível, seria inevitável. Bastaria este facto relacionado com o corpo de inspetores para o perceber e nem o milagreiro socialista o poderia evitar.

Com tudo isto, houve funções e atividades que foram pura e simplesmente interrompidas ou mesmo abandonadas. Muitas das atividades de fiscalização e de natureza inspetiva eram anteriormente desempenhadas por estes inspetores do SEF e hoje são assumidas por quem? Sabendo-se que a PJ é uma polícia de investigação e que a PSP está sobretudo concentrada nos postos de fronteira e essencialmente em tarefas de segurança interna e de policiamento de proximidade, quem fiscaliza empresas, obras ou lojas? Estamos em condições de assegurar que estas tarefas inspetivas continuam a ser cumpridas?

Parece impossível e, não querendo também acreditar nisso, tudo indica que não houve um decréscimo de atividades, mas sim um abandono de uma parte muito significativa da atividade inspetiva. Não será isso relevante num Estado de Direito democrático que pretende ser humanista e que pretende assegurar a melhor integração possível, sem exploração laboral e com respeito pela dignidade da pessoa humana?

O modelo do SEF permitia agilizar a comunicação. Permitia uma consulta rápida e atual das bases de dados. Permitia que essas mesmas bases de dados permanecessem atualizadas. E, naturalmente, permitia uma ação pronta, caso fosse necessária. O modelo da AIMA é o oposto.

Procurando explicar melhor:

Se um inspetor do SEF se deparasse com um imigrante com um mandato de detenção europeu emitido em seu nome, esse mesmo inspetor tinha os instrumentos necessários para atuar de forma imediata. Ao invés, se um funcionário da AIMA estiver hoje perante a mesma situação o que é que faz? Chama as autoridades? Pede ao cidadão para aguardar enquanto chama as autoridades policiais?

Mas mais.

Como é que se explica que hoje não existam praticamente processos de expulsão administrativa ou de afastamento administrativo? Deixaram de existir cidadãos nessas circunstâncias ilegais ou pura e simplesmente o Estado não consegue detetar em tempo e atuar? Ou por uma questão antiga de oposição à figura do “retorno” – de uma determinada esquerda – foi mais fácil pura e simplesmente acabar com ela?

Se um Tribunal decretar uma pena de expulsão a um cidadão estrangeiro e se for necessário executar a decisão (como é normal que, por vezes, possa acontecer), qual é a autoridade que hoje trata do processo concreto de expulsão? Quem é que do ponto de vista operacional cumpre a pena de expulsão? Que aptidões e conhecimentos têm para o fazer?

Se um cidadão documentado com um passaporte falso for confrontado com o facto na fronteira de entrada em Portugal e em simultâneo solicitar asilo no País, o que sucede? Que tipo de procedimento é seguido? Há notícia do crime de falsificação documental? O cidadão requerente de asilo fica instalado provisoriamente – e em liberdade – onde? Por quanto tempo?

Quando se fez a reforma dos Governos Civis houve o cuidado de alterar 44 diplomas legais e de se atribuir mais de 220 competências a entidades concretas, num trabalho minucioso competência a competência. Alguém fez um levantamento de todas as competências do SEF e garantiu continuidade nas funções e atribuições com os meios necessários?

Este processo de extinção do SEF foi um total desastre e, se não abrirmos os olhos em tempo, atrevo-me a dizer que restarão sempre os mais extremistas para falar daquilo que infelizmente se começa a tornar óbvio para todos os portugueses: a incapacidade do Estado em garantir humanismo na integração, adequação nas condições de vida, no trabalho e na segurança de todos nós, incluindo daqueles que nos procuram como destino para uma nova vida.

Temos a responsabilidade de o evitar.

Filipe Lobo d’Avila, Advogado e Antigo Secretário de Estado da Administração Interna

 

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