A Alemanha vai evitar uma guerra comercial UE-China?

As tarifas sobre os veículos elétricos fabricados na China ainda são temporárias e os economistas acreditam que não vão motivar uma escalada que resulte numa guerra comercial entre os dois blocos.

Se comprar um painel solar para instalar na sua habitação, a probabilidade de o aparelho ser fabricado na China é altamente elevada. Os preços estão a cair a pique em todo o mundo, num mercado controlado em cerca de 80% pelos fabricantes chineses, que estão a esmagar a concorrência devido à produção muito acima da procura e subsídios estatais de Pequim que apostou forte nesta indústria. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), a oferta vai atingir 1.100 gigawatts no final deste ano, o que supera a procura global em cerca de três vezes.

Os painéis solares custam atualmente 11 cêntimos de dólar por watt, metade do registado há um ano e muito longe dos valores praticados em 2012 (acima de 1 dólar). Como noticiou o Financial Times, a saturação da oferta neste mercado é tão grande que os painéis solares já estão a ser utilizados para vedações de jardins em países como a Alemanha e Países Baixos, apesar da captação de energia solar ser bem mais baixa do que nos telhados das casas.

A Europa teve uma boa oportunidade para combater o domínio chinês nesta indústria, mas uma divergência na Comissão Europeia no início da década passada bloqueou a intenção de aplicar tarifas aos painéis solares fabricados na China. A iniciativa até poderia ser ineficaz para travar a ofensiva chinesa nos painéis solares, mas o colapso desta indústria na Europa serve agora de referência numa altura em que Bruxelas está a tentar travar o avanço da China numa indústria ainda mais relevante.

Depois de uma investigação iniciada em novembro do ano passado, a Comissão Europeia avançou com a imposição temporária de tarifas de até 37,6% aos veículos automóveis elétricos fabricados na China, além da taxa de 10% que já incide sobre estes produtos importados do país asiático. Só no ano passado, a União Europeia avançou com 47 medidas contra a China por violar as regras justas do comércio mundial, investigando produtos como o biodiesel e dióxido de titânio. Já este ano tornou definitivas, por cinco anos, as tarifas de até 24,2% sobre tereftalato de polietileno (PET, na sigla em inglês).

Europa dividida em altura de negociações

Tal como no caso dos painéis solares, a iniciativa de Bruxelas está longe de recolher unanimidade entre os países da União Europeia e há ainda um caminho a percorrer até que se tornem definitivas. O primeiro teste aos méritos de Bruxelas mostrou uma Europa dividida, gerando maiores incertezas sobre o desfecho deste processo. A votação que decorreu em meados de julho mereceu o apoio de 12 países da UE e quatro votos contra, enquanto 11 países optaram pela abstenção. Esta votação foi secreta e não vinculativa, ao contrário da que acontecerá em novembro, altura em que os países da UE serão chamados a pronunciar-se sobre a proposta de Bruxelas.

Se receber “luz verde”, a Comissão Europeia deverá tornar as tarifas definitivas por um período de cinco anos, elevado a disputa com Pequim para outro nível. Para bloquear a iniciativa de Bruxelas, será necessário o voto contra de uma maioria qualificada de 15 países que representem 65% da população da UE. Segundo a Reuters, a França, Itália e Espanha estão entre os países que votaram a favor das tarifas; Alemanha, Suécia e Finlândia optaram pela abstenção; enquanto Hungria, Chipre e Eslováquia votaram contra.

A Alemanha é dos países da UE que mais têm a perder com uma guerra de tarifas com a China e a indústria automóvel do país tem um peso determinante na maior economia do mundo, pelo que Berlim tem sido das capitais mais vocais nos alertas contra o impacto das tarifas aos veículos elétricos fabricados na China. A China é há vários anos o maior parceiro comercial da Alemanha e as fabricantes alemãs têm no país do Oriente um importante mercado, com a instalação de fábricas que também serão penalizadas pelas tarifas.

13,6% das exportações extracomunitárias da Alemanha em 2023 tiveram a China como destino, o peso mais elevado entre todos os países da UE. Será a Alemanha capaz de travar as tarifas aos automóveis elétricos chineses? Alicia Garcia Herrero, economista-chefe do Natixis na Ásia, considera “improvável” que a Alemanha “compre uma guerra” com a Comissão Europeia, pelo que acredita que as tarifas serão confirmadas em novembro. Seria “um grande, grande acontecimento” Berlim opor-se à entidade europeia liderada por Ursula von der Leyen, que ajudou a reeleger, assinala ao ECO a economista, que também integra do thinktank Bruegel.

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Inga Fechner, economista do ING especialista em comércio global, também não considera provável que a Alemanha lute contra as tarifas através do voto desfavorável, até porque “se outros países grandes não alinharem” na oposição a Bruxelas, “não será suficiente para reverter a decisão da UE”. Acrescenta que tendo em conta os “diferentes interesses dos Estados-membros da UE e os setores sob investigação (retaliatória) da China, visando cada membro de forma bastante diferente, não será fácil encontrar um terreno comum”.

Não querendo dividir a UE nesta matéria, a Alemanha está a apostar as fichas nas negociações que iniciaram após Bruxelas ter anunciado em junho que iria mesmo avançar com as tarifas temporárias. “Na perspetiva do Governo alemão, é agora crucial encontrar uma solução rápida e amigável com a China”, assinalou o ministério da Economia do executivo liderado por Olaf Scholz, destacando que está a fazer parte das negociações sem assumir qualquer compromisso.

“O facto de a China e a União Europeia terem iniciado negociações concretas em junho é um sinal de que ainda existe espaço para um acordo”, diz Inga Fechner ao ECO, acreditando que as conversações serão determinantes para moldar as tarifas finais. Tendo em conta que a investigação da UE, ao contrário do que é habitual, não teve origem numa queixa da indústria, a economista adverte que existe o risco de a imposição de tarifas resultar “mais da aplicação de interesses políticos, do que por razões económicas puras”. Até podem existir algumas concessões, “mas resta saber se serão suficientes para evitar as tarifas na globalidade”.

A Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC) considera que “se existir ponderação e racionalidade, as partes deverão sentar-se à mesa das negociações para que a escalada não se verifique e possa ser revertida”. Neste sentido, a UE deve atuar “no interesse do bem-estar dos seus cidadãos, que efetivamente é o referencial de legitimidade da ação de quem nos representa”.

Em vez de “transportar a culpa da estagnação europeia para terceiros”, a Europa “deveria antes focar-se nos seus interesses e necessidades, nomeadamente o desenvolvimento das suas próprias indústrias”, adverte a CCILC, salientando que a decisão de impor tarifas “prejudica o consumidor final, que somos todos nós, além de ser contraditória com as políticas de descarbonização e transição energética prosseguidas pela UE”.

China está à espera de que a Europa inverta caminho após a provável vitória de Donald Trump nas eleições. Será uma questão de tempo e a China não vai penalizar a Europa com uma grande retaliação.

Alicia Garcia Herrero, economista-chefe do Natixis na Ásia

Guerra comercial pouco provável

Apesar de as tarifas serem ainda temporárias e ainda decorrerem negociações, as autoridades chinesas já iniciaram a retaliação com o lançamento de investigações a vários produtos exportados pela União Europeia, agravando os receios de uma guerra comercial entre os dois blocos. Para já, o alvo incidiu sobre produtos específicos e que afetam sobretudo os países que estão a impulsionar a aplicação de tarifas aos veículos elétricos chineses. É o caso da carne de porco (Espanha) e brandy (França).

Os economistas consideram pouco provável que do atual conflito resulte uma guerra comercial em larga escala e é aqui que o papel da Alemanha pode ser fundamental. Pequim compreende que a Alemanha não tem margem para bloquear as tarifas aos veículos e elétricos, pelo que deverá “evitar recorrer a uma forte guerra comercial”, considera Alicia Garcia Herrero. A economista do banco francês acredita que a China está à espera de que a Europa “inverta caminho após a provável vitória de Donald Trump” nas eleições de 5 de novembro nos Estados Unidos. “Será uma questão de tempo” e a China “não vai penalizar a Europa com uma grande retaliação”. Mesmo sem Trump na Casa Branca, os Estados Unidos já impuseram tarifas de 100% sobre os veículos elétricos chineses.

Tendo a Alemanha como potencial aliado para conter os danos, Pequim não vai querer comprometer aquele que é o segundo maior mercado, só atrás da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). O mercado chinês também é importante para a UE, representando 8,7% das exportações extracomunitárias em 2023.

“Tendo em conta uma potencial escalada comercial entre os EUA e a China, mas também uma intensificação dos EUA em relação à UE, os laços comerciais entre a UE e a China poderão, em última análise, aproximar-se novamente”, estima Inga Fechner, considerando “improvável” uma escalada da política comercial com a China ao estilo dos EUA. “Provavelmente, seremos capazes de evitar uma grande escalada comercial” entre a UE e a China, refere a economista do ING, “assumindo que não haverá lugar a retaliações em áreas económicas mais sensíveis, como é o caso das exportações de automóveis de grande cilindrada”.

Tendo em conta uma potencial escalada comercial entre os EUA e a China, mas também uma intensificação dos EUA em relação à UE, os laços comerciais entre a UE e a China poderão, em última análise, aproximar-se novamente.

Inga Fechner

Economista do ING especialista em comércio global

Portugal sai prejudicado, mas também pode ganhar

Pequim já fez saber que esta retaliação está em cima da mesa, estando a equacionar agravar as tarifas sobre os automóveis com motores acima de 2,5 litros. Uma medida que atingiria em larga escala a indústria automóvel alemã. Os media chineses também avançaram que esta ameaça seria um incentivo para a Alemanha incrementar a oposição às tarifas impostas por Bruxelas, pois caso existisse um acordo entre as partes, Pequim poderia abolir as tarifas que existem atualmente sobre os automóveis mais potentes fabricados na Europa. A UE exportou 250 mil automóveis de elevada cilindrada para a China, sobretudo de marcas alemãs como a BMW e Mercedes-Benz.

Tal como a Alemanha, Portugal também pode ter impactos bem diferentes consoante o desfecho das tarifas à China. “Afeta as relações diplomáticas entre os dois países pois trata-se de uma discriminação com base no território chinês, em que Portugal alinha”, refere a CCILC, que sugere antes “incrementar a colaboração com as empresas chinesas mais competitivas, no sentido de trazer para a Europa centros de I&D, unidades de fabricação de ponta e, em contrapartida, abrir os nossos mercados”.

Se as negociações em curso derem frutos, “pode também constituir uma oportunidade para Portugal”, pois o país pode conseguir atrair “os investidores chineses que certamente vão procurar abrir unidades de manufatura, à semelhança do que recentemente aconteceu com o México para servir o mercado norte-americano”. Caso seja este o desfecho, “é importante alertar para o facto de Portugal ir competir com países diligentes nesta frente de atração de investimento chinês, nomeadamente a Espanha, França, Alemanha, Grécia”, acrescenta a CCILC, alertando para a importância de prosseguir “políticas de reforma da máquina burocrática, laboral e judicial portuguesa, essenciais para atrair IDE de qualquer geografia e não apenas da China”.

No cenário de escalada da guerra comercial, a CCILC considera que serão afetados os elevados investimentos que a China já efetuou em Portugal, bem como as diferentes indústrias nacionais que trabalham para o setor automóvel “se os carros a combustão forem alvos de tarifas”, ou existir um “alargamento a mais produtos do setor agroalimentar”.

Portugal e China têm vindo a reforçar os laços comerciais ao longo dos últimos anos, embora tenham ainda um peso diminuto. As exportações de mercadorias para a China aumentaram 22,3% em 2023 para 769 milhões de euros, o que representa apenas 3,3% das vendas das empresas portuguesas para fora da UE. As importações da China desceram 6,4% para 5,2 mil milhões de euros, o que equivale a 20% das compras efetuadas a companhias extracomunitárias.

A Europa deveria antes focar-se nos seus interesses e necessidades, nomeadamente o desenvolvimento das suas próprias indústrias, o que se faz com investimento no desenvolvimento tecnológico e científico, que por sua vez gera ganhos de produtividade e competitividade internacional. Transportar a culpa da estagnação europeia para terceiros não vai seguramente resolver nenhum dos nossos problemas.

Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC)

China já lidera mercado global

A UE pode ter aprendido a lição com o caso dos painéis solares da década passada e visa agora proteger um setor considerado vital para a economia europeia. Segundo vários especialistas, o objetivo das tarifas representa uma oportunidade para a Europa obrigar as companhias chinesas a deslocarem parte da capacidade de produção para solo europeu, salvaguardando o desenvolvimento de uma indústria fundamental na transição energética e combate às alterações climáticas.

Bill Russo, fundador e CEO da consultora Automobility, destaca que a Europa está a “convidar as empresas chinesas a evitarem tarifas com a construção de fábricas mais perto do mercado de destino”. Holger Hestermeyer, professor da Vienna School of International Studies, destaca que “estamos a assistir a uma reestruturação completa” da indústria automóvel e se a “Europa não atuar de forma unida, vai perder o seu papel de liderança”.

Tal como aconteceu com a indústria dos países solares há mais de dez anos, a China está a apostar forte no setor automóvel, tendo já chegado em 2023 ao primeiro lugar do ranking dos maiores exportadores. Impulsionadas pelos veículos elétricos, as vendas de automóveis para o exterior dispararam mais de 50% no ano passado para cerca de 5 milhões de unidades, superando o Japão (4,42 milhões de veículos).

Ao nível da produção, que inclui o mercado doméstico, o domínio da China é mais evidente. Um em cada três automóveis produzidos em 2023 foi fabricado na China, bem acima da quota de 16% da Europa e dos 10% no Japão ou Estados Unidos. A BYD já lidera o mercado de veículos elétricos a nível mundial, tendo destronado a Tesla em 2023. As vendas da marca chinesa para fora do país dispararam 334,2% para 242.765 unidades no ano passado.

De acordo com dados da ACEA, a associação europeia do setor automóvel, no ano passado foram exportados para a UE 438 mil veículos elétricos fabricados na China, no valor próximo de 10 mil milhões de euros. A quota de mercado atingiu 21,7% em 2023, bem acima dos 2,9% de 2020, embora a fatia das marcas chinesas corresponda apenas a 7,6%. Estes dados mostram que são sobretudo as companhias estrangeiras que fabricam na China e exportam para a Europa que serão alvo das tarifas impostas pela Comissão Europeia.

A CPCA, associação automóvel da China, estima que as tarifas europeias vão cortar entre 20 a 30 pontos percentuais o crescimento das exportações de automóveis elétricos do país. O abrandamento já está a ser sentido, com as exportações a registarem um crescimento homólogo de 12,3% em junho, mas uma queda de dois dígitos face a maio.

Um estudo elaborado pelo instituto alemão IfW estima que a Europa vai reduzir as importações de veículos elétricos fabricados na China em 42% devido ao impacto das tarifas. A queda seria compensada pelo aumento das vendas dos produtores europeus e fabricantes de outras geografias, sendo que o impacto nos preços seria marginal e só sentido no longo prazo, até porque a União Europeia pode optar por eliminar as tarifas de 10% que aplica aos fabricantes dos países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ainda é cedo para saber qual vai ser o desfecho das tarifas aos veículos elétricos chineses, sendo que a Europa tentará uma solução que equilibre a proteção da indústria europeia e o acesso dos consumidores a soluções mais baratas para trocarem os automóveis a combustíveis fósseis por alternativas mais amigas do ambiente. Nos painéis solares as empresas produtoras foram as vítimas, um risco que desta vez Bruxelas não quer assumir.

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