Segurança Social perde 83 milhões de euros por ano com descontos na TSU
Isenções e taxas contributivas mais favoráveis para incentivos à contratação ou em setores como a agricultura levou o sistema previdencial a prescindir de mais de mil milhões de euros em 13 anos.
O sistema previdencial da Segurança Social, destinado a pagar pensões e subsídios de desemprego e de doença, perdeu 83 milhões de euros por ano com a atribuição de descontos sobre a Taxa Social Única (TSU) que incidiu sobre as remunerações de 1,73 milhões de trabalhadores, segundo a versão mais atualizada do livro verde sobre a sustentabilidade do sistema previdencial, enviada esta semana aos parceiros sociais, a que o ECO teve acesso. Nos 13 anos analisados, entre 2009 e 2022, os cofres da Segurança Social abdicaram de um total de 1.077,5 de milhões de euros em contribuições que não foram cobradas, de acordo com o relatório.
“O valor acumulado da parcela de receitas cessantes não financiada pelos Orçamentos do Estado desde 2009 nos termos da lei, tendo em conta os valores disponíveis na Conta da Segurança Social relativos àquele período, ascendia em 2022 a 1.077,5 milhões de euros”, lê-se no mesmo relatório. Dividindo aquele valor pelos 13 anos, chegamos a cerca de 83 milhões de euros que não entraram na Segurança Social por via das contribuições sociais.
“Estas receitas cessantes financiam políticas públicas cuja finalidade extravasa a proteção social, dando assim continuidade a uma tradição que há muito existe em Portugal de utilização das receitas da Segurança Social para outros fins”, alerta a Comissão Independente para a Sustentabilidade da Segurança Social, coordenada por Mariana Trigo Pereira.
Os últimos dados fornecidos pelo livro verde mostram que, “em 2021, estavam abrangidos por regimes com taxas mais favoráveis cerca de 1,6 milhões de trabalhadores por conta de outrem, 447 mil trabalhadores independentes e 12,4 mil beneficiários do seguro social voluntário”. “Ao todo, correspondem a cerca de 2,05 milhões de trabalhadores, ou seja, 39% do total. Destes beneficiários que contribuíram para o sistema previdencial, 1,73 milhões estão abrangidos por taxas que geram uma perda de receita para o sistema, uma vez que a redução da taxa não resulta de uma redução do âmbito material”, de acordo com o relatório.
Ou seja, o sistema previdencial deu isenções ou aplicou taxas mais baixas às remunerações de 1,73 milhões de trabalhadores, mas o custo associado a esses funcionários com prestações sociais do sistema contributivo como pensões ou subsídio de desemprego não baixou.
A Taxa Social Única (TSU), que, entretanto, passou a denominar-se oficialmente Taxa Contributiva Global (TCG), foi introduzida pelo decreto-Lei n.º 140-D/1986, de 14 de junho, fruto da unificação das contribuições para a Segurança Social e para o Fundo de Desemprego. Inicialmente, o seu valor foi fixado em 35,5%, cabendo 24,5% à entidade patronal (incluindo 0,5% de taxa destinada ao financiamento do risco de doença profissional) e 11% ao trabalhador. Em 1995, a taxa baixou 0,75 pontos percentuais (p.p.) para 34,75%, tendo beneficiado as empresas, que passaram a suportar 23,75% das contribuições. O desconto dos trabalhadores manteve-se nos 11%. Em contrapartida, foi criado o IVA social, ou seja, foi aumentado em 1 p.p. a taxa normal para 23%, sendo a receita correspondente consignada ao sistema previdencial.
Desde então a taxa manteve-se inalterada, apesar das duas tentativas falhadas de a fazer baixar ainda mais. Em 2012, durante o período de resgate financeiro da troika, o Governo de Pedro Passos Coelho tentou descer a TSU das empresas dos 23,75% para 18% e, em contrapartida, aumentar a contribuição dos trabalhadores de 11% para 18%. A medida acabou por cair depois da grande manifestação de 15 de setembro que levou milhares de portugueses à rua. Em 2017, o primeiro Governo minoritário de António Costa fechou um acordo de concertação social com patrões e a UGT para aumentar o salário mínimo nacional que previa, como moeda de troca, a redução da TSU em 1,25 pontos. O decreto até passou pelo crivo do Presidente da República, mas PCP e BE conseguiram depois chumbar a descida da taxa, através de um pedido de apreciação parlamentar do diploma, com ajuda do PSD, já com Passos Coelho na oposição.
1,73 milhões estão abrangidos por taxas que geram uma perda de receita para o sistema, uma vez que a redução da taxa não resulta de uma redução do âmbito material.
Apesar da TSU estar fixa em 23,75% para empresas e 11% para trabalhadores, há várias situações em que é possível aplicar isenções ou taxas mais favoráveis. “O princípio geral da adequação da taxa contributiva, definido no artigo 54.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRC), determina que se apliquem a categorias de trabalhadores ou situações específicas taxas diferentes da TCG, as quais são fixadas por referência ao custo de proteção social de cada uma das eventualidades garantidas, tendo em conta as parcelas que compõem o respetivo custo”, refere o mesmo relatório.
Por exemplo, as remunerações dos membros dos órgãos estatutários sem funções de gerência são taxadas a 29,6%, ficando 20,3% a cargo da entidade empregadora e 9,3% sob a responsabilidade do trabalhador. No caso dos recibos verdes aplica-se uma contribuição de 21,4% sobre 1/3 do rendimento relevante. De igual modo, os membros das igrejas (taxa de 23,8% ou 28,3%), os trabalhadores domésticos (28,3% ou 33,3%) ou os desportistas profissionais (33,3%) beneficiam de taxas mais baixas. Estas exceções existem porque o sistema considera que tem um menor custo com “eventualidades garantidas”, isto é, com pensões, subsídios de desemprego ou de parentalidade, em relação a este tipo de profissões.
Para além disso, há outros casos em que “a entidade empregadora ou o trabalhador beneficiam de taxas contributivas mais favoráveis, fixadas com base no custo das eventualidades protegidas e na relação custo/benefício das mesmas”, indica o relatório. “As situações em que isso é possível incluem as atividades exercidas por entidades sem fins lucrativos ou em setores de atividade economicamente débeis, como a agricultura ou as pescas, bem como por razões ligadas à política de emprego, quando se pretende estimular o aumento dos postos de trabalho ou apoiar a criação de emprego para trabalhadores com dificuldades de inserção no mercado de trabalho”, detalha.
O livro verde lembra ainda que “podem ser estabelecidas medidas excecionais e temporárias, que assumem a forma de isenção ou diferimento contributivo, total ou parcial”. “Tais medidas são fixadas por decreto-lei se tiverem por objetivo o incentivo ao emprego, ou por portaria, se visarem a redução de encargos não salariais em situação de catástrofe, de calamidade pública ou de fenómenos de gravidade económica ou social, nomeadamente de aleatoriedades climáticas”, de acordo com o mesmo estudo.
O grande número de trabalhadores abrangidos por tais situações condiciona negativamente a capacidade de as receitas contributivas exercerem a sua função de financiamento das prestações sociais abrangidas pelo sistema previdencial.
O decreto-lei de 2007, que define o financiamento da Segurança Social, “determina que a perda ou diminuição de receita associada à fixação de taxas contributivas mais favoráveis seja objeto de financiamento por transferências do Orçamento de Estado”. Porém, “quando essa perda, as chamadas ‘receitas cessantes’, decorre de medidas de estímulo ao emprego e ao aumento de postos de trabalho, o encargo é repartido, sendo financiado em 50% por transferências e o restante pelas receitas do sistema previdencial. No caso das medidas excecionais e temporárias no contexto da pandemia, os diplomas legais estabeleceram o seu financiamento integral por transferências”, explicam os peritos da comissão independente.
Ou seja, os mais de mil milhões de euros que o sistema previdencial perdeu numa década em descontos na TSU, e que o livro verde refere, não foram cobertos por transferências do Estado. Perante esta evidência, a comissão chama a atenção que a maior fatia (20,21%) da taxa contributiva (34,75%) serve para pagar pensões de velhice.
“Existem atualmente numerosas situações de emprego que têm beneficiado de taxas contributivas reduzidas, quer porque correspondem a âmbitos reduzidos de proteção social, quer por uma variedade de outros motivos, nem sempre devidamente justificados ou identificados. Incluem-se neste conjunto as situações enquadradas por políticas de apoio ao emprego e à formação profissional. O grande número de trabalhadores abrangidos por tais situações condiciona negativamente a capacidade de as receitas contributivas exercerem a sua função de financiamento das prestações sociais abrangidas pelo sistema previdencial”, sumariza a Comissão independente.
Ainda assim, “as receitas contributivas do sistema previdencial têm evoluído em alta ao longo das duas últimas décadas”, salientam os autores. “Entre 2002 e 2022, o valor das receitas contributivas a preços correntes passou de 8.610 milhões de euros para 22.316 milhões de euros, um aumento de cerca de 160%, que implicou o aumento do respetivo peso no PIB de 6% para 15,7 %. Em preços constantes, o crescimento das receitas contributivas cifrou-se em 51%, a que corresponde uma taxa de crescimento média anual de 2,1 % em valores reais”, segundo o relatório.
Os peritos da Comissão independente para a Sustentabilidade da Segurança Social explicam que para estes resultados positivos contribui “o comportamento dinâmico do mercado de emprego”. Mas este “elevado grau de autofinanciamento diminui se o perímetro de análise incluir o conjunto dos regimes contributivos em virtude da situação altamente deficitária do regime de proteção social convergente”, isto é, da Caixa Geral de Aposentações (CGA), avisam os especialistas.
Peritos defendem redução da TSU e criação de uma nova taxa
Os peritos da Comissão independente defendem uma atualização da TSU, até porque “tanto o valor como a respetiva desagregação por eventualidades deveriam ser revistos quinquenalmente”, isto é, de cinco em cinco anos, “a partir da data de entrada em vigor do CRC, ou seja, 1 de janeiro de 2011, com base em estudos atuariais”.
“Não se conhece, porém, qualquer estudo oficial que forneça uma reavaliação do valor da taxa ou das suas componentes, levando em conta designadamente as modificações entretanto ocorridas no mercado de trabalho, na demografia e na legislação relativa à Segurança Social”, criticam.
Tendo em conta que 86% das receitas do sistema previdencial são provenientes de contribuições, a Comissão independente chama a atenção para a necessidade de reduzir “a dependência do financiamento da Segurança Social em relação a taxação do fator trabalho”.
Assim, “recomenda-se a substituição na base de incidência contributiva de uma parte das receitas obtidas com a Taxa Contributiva Global” suportada pelos patrões, “por receitas obtidas com uma Contribuição sobre o Valor Acrescentado Líquido (CVAL), sendo as respetivas taxas calculadas de modo a atingir a neutralidade fiscal”.
“A base contributiva da CVAL não poderá ser superior à que resultar da aplicação de um valor máximo, a determinar, do rácio do VAL sobre a massa salarial”, ressalva o estudo. E, “em princípio, a CVAL só se aplicaria às sociedades que são sujeitos passivos de IRC”, acrescenta.
Os peritos aconselham que “a implementação desta medida deverá ser precedida pela realização de um estudo de avaliação de impacto ex ante e deveria ser introduzida de forma gradual num período de um período de cinco anos”.
Com a criação da CVAL, conjugada com a descida da taxa contributiva, “espera-se atingir vários efeitos benéficos além, de um maior dinamismo do crescimento das receitas contributivas na medida em que passariam a evoluir a um ritmo mais próximo do PIB e menos dependente da massa salarial: mais e melhor emprego, melhoria da rentabilidade de atividades trabalho-intensivas, maior neutralidade fiscal em relação a escolha de tecnologias”, segundo a recomendação do Livro verde.
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