O Papel Crucial do Setor Segurador na Transformação da União Europeia

  • Nuno Oliveira Matos
  • 12 Setembro 2024

Nuno Oliveira Matos, Sócio da Carrilho & Associados, SROC, analisou a Relatório Draghi e sintetiza as linhas mestras do que poderá devolver competitividade à Europa.

O relatório de Mario Draghi, apresentado no passado dia 9 de setembro, diagnostica os problemas que a União Europeia (UE) tem enfrentado, as causas que lhe estão subjacentes e, bem assim, potenciais soluções.

Um crescimento anémico desde o início do século, conduziu a uma diferença significativa no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre a UE e os Estados Unidos da América (EUA), principalmente devido ao crescimento mais lento da produtividade na UE. Tal facto resultou em padrões de vida mais baixos dos europeus, com o rendimento disponível real per capita a crescer quase o dobro nos EUA, em comparação com a UE, no primeiro quarto deste século.

O ecossistema que apoiou o crescimento económico da UE mudou. O crescimento do comércio mundial abrandou e a UE perdeu o seu principal fornecedor de energia barata, a Rússia. Além disso, a UE tem vindo a perder o comboio da transição digital para os EUA e para a China.

Como Mario Draghi bem aponta, o problema não é que a UE careça de ideias ou de ambição, pois tem muitos investigadores e empreendedores talentosos a registarem patentes. Falhamos em traduzir a inovação em valor acrescentado e riqueza, ou seja, na comercialização.

Mario Draghi sugere três áreas principais de ação:

  • Catch-up da Inovação: A UE precisa focar-se na transição digital e em tecnologias avançadas para fomentar a sua produtividade, o que passa por aumentar o investimento em investigação e inovação e reduzir as barreiras regulatórias internas;
  • Descarbonização e Competitividade: A UE deve coordenar as suas políticas climáticas para garantir que os esforços de descarbonização são aliadas da produtividade e da competitividade;
  • Redução de Dependências: A UE precisa de uma política económica externa coesa para garantir cadeias de abastecimento de matérias-primas e tecnologias críticas. Isso inclui construir reservas estratégicas e fomentar parcerias industriais.

Segundo o relatório, para atingir estes objetivos, é necessário um investimento adicional anual mínimo entre €750 e €800 mil milhões (entre 4,4% e 4,7% do PIB da UE em 2023). É verosímil aumentar impostos e/ou a dívida pública nesta dimensão? O financiamento privado tem então um papel a desempenhar!

As instituições de crédito da UE estão geralmente mal equipadas para financiar empresas inovadoras, pois têm dificuldades em avaliar o respetivo colateral, que é em grande parte intangível. As instituições de crédito da UE também não contam com titularizações com a frequência e a dimensão dos EUA. A emissão anual de titularizações na UE foi de 0,3% do PIB em 2022, enquanto nos EUA ascendeu a 4%. A titularização torna os balanços das instituições de crédito mais flexíveis, permitindo-lhes transferir risco para os mercados de capitais, libertando capital para empréstimos adicionais.

Uma alternativa de financiamento das empresas da UE devia ser o mercado de capitais, mas estes permanecem fragmentados, com regulação e fiscalidade díspares, não existindo uma União dos Mercados de Capitais.

Adicionalmente, os fluxos de poupança para os mercados de capitais na UE, sobretudo através dos planos de pensões, são exíguos. Em 2022, o nível de ativos sob gestão por parte dos fundos de pensões na UE era de apenas 32% do PIB, enquanto nos EUA os ativos sob gestão ascendiam a 142% do PIB e no Reino Unido a 100%. Tal justifica-se pelo facto das pensões serem geridas pelos sistemas de segurança social dos Estados-Membros, não existindo verdadeiramente pilares alternativos.

Para desbloquear o capital privado, Mario Draghi refere que a UE deve construir uma União dos Mercados de Capitais, complementada por um forte sistema de fundos de pensões.

O relatório de Mario Draghi também sugere que a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) deve passar de um órgão que coordena os reguladores nacionais para o regulador comum único, semelhante à Securities and Exchange Commission dos EUA. Um passo essencial para transformar a ESMA numa agência deste tipo é modificar a sua governança e os processos de tomada de decisão serem semelhantes aos do Conselho do Banco Central Europeu, afastando-os o máximo possível dos interesses nacionais dos Estados-Membros da UE. Harmonizar os quadros de insolvência também será crucial para remover a fragmentação criada por diferentes hierarquias de credores, enquanto a UE deve continuar a eliminar os obstáculos fiscais ao investimento transfronteiriço no seu seio. Estas medidas, por sua vez, facilitariam a centralização da compensação e liquidação de valores mobiliários. O relatório sugere ainda que a UE deve aspirar a criar uma plataforma única de contraparte central e um único depositário central de valores mobiliários, para todas as negociações de valores mobiliários.

Não menos importante, segundo o relatório, a UE também deve canalizar melhor as poupanças das famílias para investimentos produtivos. A maneira mais fácil e eficiente de fazer isso é através de produtos de poupança de longo prazo, nomeadamente e sobretudo as pensões. Para aumentar o fluxo de fundos para os mercados de capitais, a UE deve incentivar a oferta de planos de pensões, assentes no desenvolvimento do segundo pilar da segurança social, replicando os exemplos bem-sucedidos dos EUA e do Reino Unido.

O relatório convida ainda a medidas conducentes à revitalização da titularização e a completar a União Bancária.

Se é certo que o setor segurador terá um papel crucial no fortalecimento da indústria dos fundos de pensões, pessoalmente entendo que o setor segurador deveria ter ainda um papel adicional, semelhante ao que se pretendeu com a reforma de Solvência II no Reino Unido. De facto, um dos poucos benefícios que o Brexit trouxe ao Reino Unido foi a reformulação do quadro regulatório de Solvência II, desde logo uma redução significativa da burocracia. As reformas afetaram ainda o cálculo dos requisitos de capital de solvência (SCR), que convidam agora ao desenvolvimento de modelos internos, aprovados pelo regulador, em detrimento da fórmula-padrão. No Reino Unido, prevê-se um impacto muito positivo na economia, decorrente da reforma de Solvência II, sobretudo em resultado de um realinhamento das estratégias de investimento e do binómio revisto risco/rentabilidade das seguradoras britânicas. Porventura a UE deveria avaliar a possibilidade de replicar a reforma britânica, pois as seguradoras podem claramente ser aliadas do investimento público reprodutivo e de elevado valor acrescentado. Isto é particularmente relevante quando a UE está a considerar expandir-se para a Ucrânia, sorvedora dos fundos estruturais comunitários, face às necessidades massivas de reconstrução.

Igual que no Reino Unido, a manutenção de boas práticas de gestão de riscos, sustentadas em modelos de perda máxima provável com nível de confiança de 99,5%, é fundamental para evitar quaisquer riscos sistémicos para o sistema financeiro da UE.

As seguradoras podem proporcionar dimensão e diversificação aos mercados de capitais, apoiando o crescimento económico e o bem-estar social. Uma outra vantagem é que as seguradoras, juntamente com as instituições de crédito, são atores privilegiados na efetivação do green finance e, inerentemente, da implementação dos objetivos ESG (Ambiente, Social, Governo) da UE.

Com uma abordagem coordenada e reformas estratégicas, a UE pode transformar os desafios em oportunidades, garantindo um futuro de crescimento sustentável, inovação e prosperidade para todos os seus cidadãos. O setor segurador desempenhará um papel fundamental neste processo de transformação!

  • Nuno Oliveira Matos
  • Sócio da Carrilho & Associados, SROC

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