“Cura para o burnout não é autocuidado. É cuidarmos uns dos outros nos locais de trabalho”

Progresso na carreira não deve acontecer à custa do bem-estar dos profissionais, acredita a responsável pela área de sustentabilidade humana da Deloitte. E os líderes devem dar exemplo, diz ao ECO.

Aos 40 anos, Jen Fisher teve de lutar contra um cancro, mas esse nem foi o momento mais desafiante da sua carreira. “Por mais louco que possa parecer, penso frequentemente que o cancro foi mais fácil de lidar do que o burnout“, conta a hoje responsável pela área de sustentabilidade humana da Deloitte.

É que, enquanto o cancro deixa marcas bem visíveis, o esgotamento nem tanto. E “muitos continuam a acreditar que pode ser resolvido com umas férias ou uma aula de ioga“. “E se tratássemos o burnout no local de trabalho de forma tão séria como tratamos o cancro?”, propõe a responsável, numa Ted Talk em que se debruça sobre o futuro do trabalho.

Agora em entrevista ao ECO, Jen Fisher adianta que a cura para o esgotamento é “cuidarmos uns dos outros nos locais de trabalho“, criando uma cultura na qual os profissionais não se limitem a sobreviver, mas, antes, prosperem.

“Temos uma oportunidade única de mudar o mundo do trabalho“, alerta ainda a responsável, que irá participar no Happiness Camp 2024, uma conferência europeia dedicada à felicidade no trabalho que decorre esta terça-feira, 17 de setembro, no Porto.

Jen Fisher acredita que é possível criar um futuro no qual o sucesso das pessoas e o sucesso dos negócios andam de mãos dadas, de modo sustentável.

Temos havido uma consciencialização crescente de que o bem-estar no trabalho vai além dos benefícios. Tem que ver com a forma como trabalhamos e com as lideranças. É sobre criar uma cultura na qual as pessoas prosperam, em vez de apenas sobreviverem.

A discussão sobre o bem-estar no trabalho tem ganhado fôlego nos últimos anos, especialmente desde a pandemia. A ideia de que o bem-estar nos locais de trabalho são aulas de ioga gratuitas ou festas com pizza continua presente ou está de saída?

É surpreendente, mas essa ideia ainda está viva em muitos locais de trabalho. Ainda que aulas de ioga e as festas com pizza não sejam más, não são a solução para o burnout. O burnout é um problema sistémico que exige soluções sistémicas. A Organização Internacional de Saúde e vários investigadores já confirmaram que o burnout não resulta da incapacidade individual de lidar com o stress, mas, antes, está ligado à cultura do trabalho e às expectativas. A cura para o burnout não é o autocuidado, é cuidarmos uns dos outros nos locais de trabalho. Tem havido uma consciencialização crescente de que o bem-estar no trabalho vai além dos benefícios. Tem que ver com a forma como trabalhamos e com as lideranças. É sobre criar uma cultura na qual as pessoas prosperam, em vez de apenas sobreviverem.

O que podem, então, fazer as empresas para garantir que os seus trabalhadores estão bem?

As empresas precisam de passar de soluções rápidas para mudanças sistémicas. Por exemplo, estruturar o trabalho de modo a que apoie o bem-estar, em vez de o minar. Investir em líderes que percebam e apoiem o bem-estar. Estabelecer limites claros nos horários e nas expectativas. Monitorizar indicadores de bem-estar, e não apenas de produtividade. Envolver os trabalhadores no desenvolvimento de soluções para o seu bem-estar. O objetivo é criar uma cultura na qual as pessoas possam prosperar a longo prazo.

Na sua Ted Talk, confessa que, a certo ponto, pensava que não podia admitir que não estava bem, porque temia que as pessoas pensassem que não pertencesse naquele ambiente e função. Podem as políticas de bem-estar ser eficazes se não quebrarmos esse estigma?

Não, as políticas de bem-estar não podem ser totalmente eficazes, se tivermos estigmas em torno de admitir que não estamos bem. Precisamos de uma mudança de cultura, e isso começa nos líderes. Precisar de apoio não é um sinal de fraqueza, é uma parte normal de ser humano. As empresas precisam de comunicar ativamente que usar as políticas e os recursos de bem-estar é encorajado e respeitado.

Jen Fisher dedicou a sua Ted Talk ao futuro do trabalho.

Disse que quebrar o estigma começa nos líderes. Pode detalhar? Como se quebra o tabu ainda associado à saúde mental no trabalho?

É uma jornada. Os líderes devem ser abertos sobre as suas próprias dificuldades. Temos de normalizar as conversas sobre stress e saúde mental. Temos de falar em integração da vida pessoal e profissional, em vez de equilíbrio. Temos de celebrar as vitórias de bem-estar. Temos de disponibilizar formação sobre saúde mental e bem-estar. Temos de incluir o bem-estar nas métricas de desempenho. E temos de criar espaços seguros onde os testemunhos podem ser partilhados.

Quanto aos líderes, qual é o maior desafio que encontram ao tentarem ser exemplos a seguir, na questão do bem-estar?

Os líderes definem o tom da organização toda. Quando os líderes priorizam o seu próprio bem-estar, estão a dar “permissão” para que todos os outros o façam. Os líderes que o priorizam são melhores. São mais presentes, empáticos e capazes de dar apoio às suas equipas. Mas há desafios. Muitos líderes foram recompensados por terem colocado o trabalho acima de tudo e sentem, frequentemente, que serão vistos como menos comprometidos, se priorizarem o bem-estar. Há também a pressão da responsabilidade e o desafio da consistência. Muitos líderes sentem que estão a desiludir as suas equipas, se não estiverem sempre disponíveis.

Mas como pode um líder obter os melhores resultados possíveis da sua equipa, ao mesmo tempo que garante que os esforços são sustentáveis? É possível ter o melhor dos dois mundos?

Têm de ser focar nos resultados, não nas horas de trabalho. Encorajar as pausas e o tempo de descanso. Ser implacáveis na definição de prioridades e promover a autonomia. Criar uma cultura de feedback. Respeitar os limites e celebrar tanto as conquistas como o esforço. Um alto desempenho sustentável não é estar sempre a levar as pessoas ao limite. É criar um ambiente no qual as pessoas possam fazer o seu melhor trabalho de forma consistente e a longo prazo.

Estas tendências [quiet quitting e acting your wage] refletem anos de uma cultura excessivamente focada em resultados à custa do bem-estar humano. Estão a forçar um debate necessário sobre o que valorizamos nos locais de trabalho.

Os últimos anos ficaram marcados pela chegada da geração z ao mercado de trabalho e por tendências como o quiet quitting e o acting your wage [ambas encorajam os trabalhadores a não irem além do estritamente previsto nas suas funções]. São o reflexo de anos de um mercado focado em resultado e de um burnout coletivo?

Absolutamente. Estas tendências refletem anos de uma cultura excessivamente focada em resultados à custa do bem-estar humano. Têm que ver com o estabelecimento de limites e com a recusa de trabalhar para lá da compensação. Estas tendências estão a forçar um debate necessário sobre o que valorizamos nos locais de trabalho.

Mas priorizar o bem-estar não pode vir a prejudicar os progressos na carreira das gerações mais jovens?

Acredito que quem prioriza o bem-estar está a criar condições para um sucesso mais sustentável. Há menor probabilidade de entrarem cedo em burnout, ao mesmo tempo que tomam melhores decisões e são frequentemente mais criativos. A chave é encontrar locais de trabalho alinhados com estes valores. O progresso na carreira não deve acontecer à custa do bem-estar. Os dois podem e devem andar de mão dada.

Para terminar, olhemos para o impacto da tecnologia nestas dinâmicas. Poderá a inteligência artificial aliviar o stress dos trabalhadores humanos?

A tecnologia tem sido uma faca de dois gumes. Tem permitido o trabalho flexível, mas criou uma cultura em que se está sempre disponível. Precisamos de ser intencionais no uso da tecnologia, definindo limites claros e usando-a a favor do bem-estar. A inteligência artificial tem potencial para reduzir o stress, ao assumir tarefas repetitivas, mas não é uma solução mágica. O seu impacto depende da forma como a implementamos e gerimos. Precisamos de usar a inteligência artificial de forma ponderada, com o bem-estar humano em mente, e de modo a assegurar que aumenta, em vez de substituir o trabalho humano.

E a semana de trabalho de quatro dias, tem futuro?

Pode ser fazível em muitas organizações, mas não é apenas sobre trabalhar menos. É sobre trabalhar de forma mais inteligente. As organizações precisam de repensar o trabalho e focarem-se nos resultados, em vez de nas horas trabalhas.

A Deloitte, a par das demais big four, tem associada a ideia de horas de trabalho muito longas. A sustentabilidade humana, como lhe chama, é possível em ambientes de tão alto desempenho?

Trabalhar nas big four pode ser bastante intenso, mas são ambientes que estão a evoluir e tem havido maior reconhecimento da importância do bem-estar e da sustentabilidade. A sustentabilidade humana não é apenas possível em ambientes de alto de desempenho, é necessário. Temos de redefinir a imagem do alto desempenho. Não tem que ver com quem trabalha mais horas, mas com quem consegue resolver melhor problemas complexos.

Tudo somado, que passos devem tomar as empresas no imediato para garantir que são sustentáveis, em termos humanos?

Redefinir o sucesso e não glorificar o trabalho em excesso. Priorizar o bem-estar no desenvolvimento das lideranças. Pensar no trabalho com os humanos em mente. Estabelecer limites claros. Focar nos resultados, não nas horas. Criar segurança psicológica. Investir em recursos de saúde mental. Encorajar o tempo de descanso. Criar soluções com os trabalhadores. Medir o bem-estar a par do desempenho. Temos uma oportunidade única para transformar o mundo do trabalho. Não será fácil, mas, se começarmos agora, podemos criar um futuro do trabalho verdadeiramente sustentável para os negócios, as pessoas e a sociedade como um todo.

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