Fed inicia ciclo de corte de juros com dilema até ao fim

É certo que o banco central dos EUA vai cortar os juros, falta saber a dimensão. A pouco habitual incerteza traduz o dilema da Fed na resposta aos sinais mais intensos de abrandamento da economia.

A Reserva Federal (Fed) cometeu o erro crasso de ter respondido demasiado tarde à escalada da inflação em 2021, que na altura classificava de movimento temporário. O atraso obrigou o banco central dos Estados Unidos a carregar a fundo no acelerador da subida de juros a partir de 2022. Apesar do agravamento da política monetária sem precedentes nos últimos 40 anos (mais de cinco pontos percentuais em ano e meio), a Fed conseguiu até aqui orquestrar uma “aterragem suave”, que nos mercados é conhecida por soft landing e traduz um abrandamento ordeiro da economia e alívio da inflação.

Três anos depois de ter atuado com complacência perante as pressões inflacionistas, a Fed quer evitar um novo erro de política monetária, confrontando agora o dilema sobre a intensidade da resposta aos sinais de abrandamento mais pronunciado da economia norte-americana. A dúvida permanece até ao fim e a 24 horas de ser anunciada uma decisão, existe uma pouco comum incerteza sobre qual vai ser a opção do banco central.

A única certeza é de que a Fed vai baixar as Fed Funds pela primeira vez em quatro anos (a última aconteceu em resposta à pandemia). A taxa de juro vai assim baixar do máximo de 2001 em que se encontra, nos 5,25%-5,50%. Falta saber se o corte será conservador (25 pontos base), ou agressivo (50 pontos base), sendo expectável que as dúvidas persistam até à última hora. A decisão será anunciada às 19:00 (hora de Lisboa) e o presidente Jerome Powell dará uma conferência de imprensa 30 minutos depois.

Não estamos muito preocupados [com a potencial recessão]. Os despedimentos permanecem reduzidos e as vagas de emprego em níveis elevados, o PIB continua a crescer a um ritmo saudável e não existem grandes choques negativos.

Goldman Sachs

Sobe e desce nas perspetivas

As expectativas para a evolução da política monetária têm registado oscilações muito pronunciadas nos últimos meses, refletindo a volatilidade dos indicadores económicos e as declarações algo erráticas e divergentes dos responsáveis da Fed. No início do ano as previsões apontavam para múltiplos cortes de juros em 2024, mas a resiliência notável da economia descartou este cenário.

No início do verão, as perspetivas de cortes de juros foram reduzidas a zero uma vez que a inflação inverteu a trajetória de alívio. Em agosto verificou-se uma reviravolta depois dos dados do emprego referentes a julho terem despertado de forma intensa os receios de recessão na maior economia do mundo, levando vários economistas e investidores a reclamar um corte extraordinário de juros.

As preocupações aliviaram com os dados económicos mais recentes. Os dados do emprego em agosto foram menos desfavoráveis e os dados da inflação no mês passado evidenciam que as pressões dos preços altos continuam vivas. Depois de a Fed ter deixado claro que chegou a altura de aliviar a política monetária, o mercado reforçou as apostas de que o banco central iria optar por descer os juros em apenas 25 pontos base.

A reviravolta aconteceu na semana passada, depois de dois jornais influentes e bem informados sobre o pensamento nos corredores do edifício da Fed em Washington, terem noticiado que o FOMC estava dividido sobre a decisão a adotar esta quarta-feira. Recorrendo à linguagem em dia de eleições, o Wall Street Journal reportou que a decisão da Fed seria close call. O Financial Times destacou que o banco central ainda estava a debater qual a melhor opção.

O mercado passou a atribuir uma probabilidade em redor de dois terços a um corte de 50 pontos base e o facto de a Fed nada ter feito para descartar este cenário reforça ainda mais a possibilidade de o banco central atuar mesmo de forma mais agressiva no alívio da política monetária. Os responsáveis da Fed estão no habitual período de silêncio pré-reunião, pelo que só uma fuga para os jornais poderá sinalizar o que a Fed vai fazer. Foi através deste método que Powell anunciou que os juros iriam subir 75 pontos base na reunião de junho de 2022.

A Fed, tal como outros bancos centrais, está agora mais focada no crescimento económico do que em controlar a inflação e está cada vez mais preocupada com o ficar para trás em termos de política monetária – isto é, cortando as taxas demasiado tarde para evitar uma recessão ou um abrandamento mais acentuado do crescimento.

Michael Krautzberger, Diretor de Investimento Global em Obrigações da Allianz Global Investors

Foco no emprego

Esta aparente desorientação da Fed ilustra na perfeição o dilema que está em debate no banco central mais poderoso do mundo. Uma descida mais branda de juros arrisca manter a política monetária em níveis demasiado restritivos e assim provocar uma recessão evitável. Antecipar já cortes de juros mais agressivos para prevenir uma contração económica pode reacender o fantasma da inflação, impedindo a continuação da trajetória descendente em direção à meta dos 2%.

Se a decisão pender para os 50 pontos base, a Fed estará a dar um claro sinal de que o foco está agora na atividade económica e criação de emprego. Se o corte for de 25 pontos base, a Fed pode adotar um discurso mais agressivo e deixar em cima da mesa descidas mais acentuadas no futuro.

Apesar de nos mercados a expectativa mais forte apontar para um corte de 50 pontos base, a maioria dos economistas defende que fará mais sentido iniciar com uma descida mais modesta. Sobretudo porque a economia norte-americana permanece robusta e sem sinais de uma recessão iminente, numa altura em que a inflação se situa em mínimos de três anos.

Economistas preferem 25, mas entendem 50

Mesmo que a Fed reduza as taxas em apenas 25 pontos base em setembro, parece-nos que vai deixar a porta aberta a cortes maiores em reuniões futuras, se continuarem a surgir evidências de deterioração no mercado laboral”, refere Michael Krautzberger. “A Fed, tal como outros bancos centrais, está agora mais focada no crescimento económico do que em controlar a inflação e está cada vez mais preocupada com o ficar para trás em termos de política monetária – isto é, cortando as taxas demasiado tarde para evitar uma recessão ou um abrandamento mais acentuado do crescimento”, acrescenta o diretor de investimento global em obrigações da Allianz Global Investors.

O Goldman Sachs também “não está demasiado preocupado” com a economia norte-americana, “pois os despedimentos permanecem reduzidos e as vagas de emprego em níveis elevados, o PIB continua a crescer a um ritmo saudável e não existem grandes choques negativos”. Assim, este banco de investimento mantém a previsão de redução de 25 pontos base, embora compreenda que a Fed opte por 50 pontos base “como precaução sensata face ao abrandamento do mercado de trabalho”.

Apesar de também considerar mais provável um corte moderado de 25 pontos base, os economistas do ING salientam que existem muitos fatores que justificam uma descida mais agressiva que sirva de “seguro contra as perspetivas de enfraquecimento adicional do mercado de trabalho”. A Capital Economics refere que os indicadores do mercado de trabalho “são mais consistentes com um abrandamento económico do que um colapso”, pelo que prevê uma descida de 25 pontos base.

Será o corte de 50 pontos base o início de um ciclo de descidas agressivas, ou um movimento extraordinário para iniciar o ciclo? Uma descida de 25 pontos base significará que a fasquia para cortes de 50 pontos base está mais elevada? Há muito para digerir.

Deutsche Bank

Fed obrigada a “mostrar o jogo”

Além do dilema 25/50, esta histórica reunião da Fed tem mais pontos de interesse, uma vez que o banco central é forçado a mostrar com maior visibilidade a que velocidade e profundidade pretende remover a política monetária restritiva. Em conjunto com a decisão da nova taxa de juro que vai estar em vigor, o banco central vai atualizar as projeções macroeconómicas e publicar o gráfico (Summary of Economic Projections, também conhecido por dotplot) onde estarão plasmadas as perspetivas dos responsáveis da Fed para os juros no final deste ano, 2025 e 2026.

Após a reunião desta quarta-feira, faltarão apenas mais duas em 2024 (7 de novembro e 18 de dezembro), pelo que o mercado vai conhecer com elevada precisão qual o plano da Fed no curto prazo. Na reunião de junho, a Fed antecipava apenas uma descida de 25 pontos base até ao final do ano, uma projeção que vai sofrer alterações significativas.

Os economistas do Goldman Sachs, ING e Capital Economics convergem na perspetiva de três cortes de juros de 25 pontos base este ano. As estimativas dos mercados são bem mais agressivas, apontando para mais de 120 pontos base de descidas, o que implica pelo menos mais um corte de 50 pontos base além do previsto para esta quarta-feira.

No que diz respeito a 2025, as previsões dos economistas são mais amplas. O Goldman Sachs estima quatro cortes de 25 pontos base, enquanto o ING prevê descidas acumuladas de 125 pontos base. Nos mercados, as expectativas estão nesta altura a apontar para uma baixa de 250 pontos base em 2024 e 2025 que deixará as Fed Funds em torno de 3% no final do próximo ano. No que diz respeito às projeções macroeconómicas, os analistas estimam que a estimativa para o PIB e inflação em 2025 sejam revistas em baixa, com a Fed a projetar uma taxa de desemprego mais elevada no próximo ano.

Além de analisar os números, os investidores vão escutar com especial atenção as declarações de Jerome Powell, que também estão rodeadas de elevada incerteza. Se o banco central optar por um corte agressivo, vai o líder da Fed assinalar que descidas de 50 pontos base são o “novo normal”, ou que o alívio da política monetária deve abrandar nas próximas reuniões? Se anunciar uma descida de apenas 25 pontos base, Powell sinalizará cortes mais agressivos no futuro, ou descartará a perspetiva devido à confiança na evolução robusta da economia?

Certo é que a decisão terá de ser bem explicada e justificada para não beliscar a reputação do banco central. Qualquer que seja a opção, o potencial para ser mal recebida nos mercados é elevado. Um corte mais brando dos juros causará deceção face ao que está a ser aguardado, enquanto a opção por uma descida agressiva poderá gerar a ideia de que a Fed está em pânico com a evolução da economia.

“Será o corte de 50 pontos base o início de um ciclo de descidas agressivas, ou um movimento extraordinário para iniciar o ciclo? Uma descida de 25 pontos base significará que a fasquia para cortes de 50 pontos base está mais elevada?”, questionam os analistas do Deutsche Bank, concluindo que “há muito para digerir” nesta reunião da Fed. A reação dos mercados ditará se os investidores continuam a confiar na capacidade da Fed em orquestrar uma aterragem suave ao mesmo tempo que controla a inflação.

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