Numa altura em que tanto se fala de escassez de trabalhadores, a multinacional Air Liquide decidiu adotar uma estratégia diferente: abriu centros fora das metrópoles, mas perto do talento.
Há mais de 100 anos em Portugal, a Air Liquide, empresa de fornecimento de gases industriais, decidiu abrir em 2019 o seu primeiro business center na área financeira em Portugal. Estreou-se em Lisboa e não tardou a crescer. Mas, em vez de seguir para outro grande centro urbano, rumou a Tomar e, mais recentemente, à Guarda. Ao ECO, a diretora-geral, Isabel Duarte, explica que a descentralização do negócio tem ajudado a empresa a recrutar trabalhadores.
É estar fora das metrópoles, mas perto do talento, salienta. “Pensámos que, se há talento no resto do país, em vez de o convencer a vir para Lisboa, e pagar rendas de 900 euros, porque não fazemos o contrário?“, atira Isabel Duarte.
Mas a Air Liquide não recruta apenas quem está em Portugal. Tem as portas abertas ao talento estrangeiro, ainda que a diretora-geral deixe um aviso: para quem vem de fora da União Europeia, o processo burocrático é tão complicado que já houve candidatos que desistiram.
Quanto ao futuro, a responsável adianta que a intenção é chegar aos 600 trabalhadores até 2026, ou seja, recrutar mais 200 profissionais nos próximos dois anos para os centros que a Air Liquide tem em Lisboa, Tomar e Guarda, não estando para já prevista a abertura em nenhuma outra cidade portuguesa.
Os portugueses têm uma mais-valia, que é uma capacidade de adaptação muito grande. Em projetos novos, essa capacidade é fantástica.
Em 2019, a Air Liquide decidiu criar um business center na área financeira em Portugal. Porquê?
A decisão baseou-se principalmente em talento. A criação deste centro — e a escolha dos locais no mundo onde estes centros se posicionam — tem que ver com encontrar talento. Precisamos de um perfil técnico, precisamos de soft skills, precisamos de conhecimentos de línguas, e Portugal oferece isso. Concorremos com outros países, nomeadamente com Espanha e Irlanda. Há vários países que se posicionaram muito bem nesta competição. Temos algumas mais-valias.
Tais como?
Por exemplo, o conhecimento de línguas é muito forte. A forma como aprendemos a falar inglês e francês, e a ligação que temos com a emigração torna o conhecimento de línguas muito forte. Também temos outra mais-valia, que é uma capacidade de adaptação muito grande. Em projetos novos, essa capacidade é fantástica, porque nunca nada corre à primeira como é suposto. O nosso talento tem muito a capacidade de se adaptar, de mudar, de evoluir.
O primeiro centro que abriram foi em Lisboa. Foi fácil encontrar profissionais? Hoje fala-se muito em escassez de trabalhadores.
Na altura, há cinco anos, ainda foi relativamente fácil. Admito que se chegássemos hoje íamos ter mais dificuldades, porque a concorrência tem sido cada vez maior. Mais multinacionais escolheram Portugal pelas mesmas razões que apontei. Portanto, admito que, à medida que os anos passam, é cada vez mais competitivo o mercado de trabalho em Lisboa.
Entretanto, abriram centros em Tomar e Guarda. Foi porque estavam a ter dificuldades em recrutar em Lisboa e queriam descentralizar a procura?
Acreditamos que o talento não está só em Lisboa e Porto. Há talento espalhado por todo o país. E foi a pensar nisso que decidimos [ir além da capital]. Tínhamos um projeto grande. Na altura, precisávamos de recrutar 100 pessoas em seis meses. Pensámos que, se há talento no resto do país, em vez de o convencer a vir para Lisboa, e pagar rendas de 900 euros, porque não fazemos o contrário? Porque é que não exploramos a possibilidade de criar um site nessas regiões e permitir às pessoas que querem trabalhar connosco ficarem onde estão? Tem sido extremamente compensador. Abrimos o centro em Tomar primeiro, há três anos. Atingimos mais do que os objetivos e mais rápido do que tínhamos pensado.
E não tardou até abrirem outro centro.
Um ano depois decidimos abrir uma outra localização, que foi a Guarda, no sentido de ir ter com o talento onde ele está. Oferecemos também a possibilidade de algumas das nossas pessoas se realocarem para essas cidades.
Em termos de negócio, foi difícil montar a operação fora de Lisboa?
Não, essa parte fácil.
Olhando especificamente para Tomar, porque decidiram ir para esta localização?
Queríamos uma cidade que estivesse a menos de hora e meia de distância, porque isso permite ir a uma reunião e voltar no mesmo dia. Estudámos todas as cidades que ficavam a essa distância e que tinham universidades. Era um ponto essencial para nós ter universidades, porque o nosso principal critério era o talento. Ao ter universidades, consigo influenciar a formação, e receber estagiários. Tomar destacou-se pela localização estratégica, e pela dinâmica da cidade e da universidade.
Perante a maior escassez de talento, pensámos criativamente. Como é que conseguimos o talento que pretendemos? Onde é que ele está? Se ele está ali, vou para ali.
Hoje a Air Liquide tem uma ligação íntima ao ensino superior em Tomar para facilitar o recrutamento?
No caso específico de Tomar, o nosso escritório está dentro do campus da universidade. Temos programas de estágios com a universidade de Tomar e com as universidades à volta. Quem está em Tomar, quando acaba o curso, começa a trabalhar connosco. A ligação é total entre a universidade e a empresa.
A escolha da Guarda teve o mesmo motivo?
A escolha também se prendeu com uma localização que permitisse recrutar talento do Politécnico da Guarda, do Politécnico de Viseu e da Universidade da Beira Interior, na Covilhã.
Fala-se muito em escassez de talento. As empresas, ao não terem esta visão que vai para lá de Lisboa e do Porto, estão a falhar?
Há cada vez mais empresas a fazer este caminho. Nós, como empresas, também temos de ser capazes de nos adaptar, senão não estávamos há 100 anos em Portugal. Perante a maior escassez de talento, pensámos criativamente. Como é que conseguimos o talento que pretendemos? Onde é que ele está? Se ele está ali, vou para ali.
Tendo em conta que no interior a habitação tende a ser mais acessível e os empregos mais raros, a Air Liquide consegue também “vender-se” como mais atrativa, até em termos salariais, quando recruta em Tomar ou Guarda?
Pagamos os salários fora de Lisboa em linha com os de Lisboa. Ajustamos um bocadinho para o custo de vida, mas só um bocadinho. Significa que a mesma pessoa em Lisboa arrenda um T1 e com o mesmo salário na Guarda tem uma casa de família. O mercado imobiliário é completamente diferente nestas regiões.
Têm trazido pessoas de Lisboa e do Porto para os centros de Tomar ou de Guarda?
Sim. Permitimos a qualquer pessoa que trabalhe connosco candidatar-se a outra localização e temos alguma mobilidade. Temos pessoas para as quais é mais conveniente vir para Lisboa. Outras para as quais é conveniente ir renovar a casa da avó e ficar lá. Temos várias situações, mas a maior parte são pessoas que são da região e já estavam lá.
Que regime de trabalho praticam? Teletrabalho, híbrido ou 100% presencial?
Não acreditamos no 100% remoto, porque achamos que o contacto pessoal é importante, do ponto de vista social, do ponto de vista da saúde mental, e para fazer brainstorming. Por outro lado, também não acreditamos que seja preciso estarmos todos os dias uns em frente aos outros. Temos um regime híbrido, em que as pessoas vão ao escritório um ou dois dias por semana. Este regime permite às pessoas que moram a uma hora do escritório de Tomar ou da Guarda fazerem convenientemente essa viagem um ou dois dias por semana. Assim, alargamos o espaço onde recrutamos. Na prática, hoje o nosso talento vem de toda a zona centro do país.
No interior, porque as pessoas estão há mais tempo no mesmo emprego, são menos ativas no LinkedIn. Essa é, se calhar, a maior dificuldade que estamos a ter.
Ter essa dispersão e esse regime de trabalho não tornam a liderança mais difícil?
Acho que a pandemia nos obrigou a aprender. A partir do momento em que começámos a fazer esta gestão de pessoas remotamente, no fim não é muito diferente fazer uma reunião com uma pessoa que está em casa ou num dos outros escritórios. Normalmente, numa reunião, temos um mix.
Quanto à vossa descentralização, que lições é que podemos tirar sobre como ter sucesso nos negócios fora dos grandes centros?
Foi mais fácil do que o que tínhamos pensado. Decidimos em janeiro que íamos descentralizar. Não sabemos ainda por onde íamos. Em junho, estávamos em Tomar a recrutar as primeiras pessoas. O trabalho é mostrar às pessoas que estamos lá e divulgar o projeto. Mostrar que tipo de empresa somos, que tipo de perfil procuramos e conseguir chegar ao talento. Uma coisa que noto de diferente é que em Lisboa há mais a cultura do LinkedIn. As pessoas são mais ativas, estão mais ligadas ao LinkedIn e, portanto, os recrutadores mais facilmente chegam aos diferentes perfis. No interior, porque as pessoas estão há mais tempo no mesmo emprego, são menos ativas no LinkedIn. Essa é, se calhar, a maior dificuldade que estamos a ter.
Por estarem mais tempo no mesmo emprego ou na mesma empresa, é mais difícil de atrair esses trabalhadores para uma nova oportunidade?
Também estamos a conseguir recrutar esses perfis, mas precisamos de chegar até às pessoas. Esse caminho pode ser um bocadinho mais difícil de conseguir, mas uma vez feito, se houver um match, acaba por ser fácil.
E estão a recrutar?
Continuamos a recrutar sempre, porque estamos a dar os primeiros passos. Nos próximos dois anos, devemos recrutar cerca de 200 pessoas. Vamos investir muito mais nestas duas localizações: Guarda e Tomar. A maior parte das vagas abertas são em Guarda e Tomar, porque queremos que estas localizações sejam maiores para ter uma capacidade de atração maior.
Portanto, a ideia é chegar aos 600 trabalhadores em 2026?
2025 ou 2026.
Dito isto, estão a conseguir satisfazer as vossas necessidades de recrutamento em Portugal ou recrutam estrangeiros?
Recrutamos também estrangeiros. Temos pessoas portuguesas que vão para outros sítios da Air Liquide e temos pessoas que estavam noutros sítios ou até fora da Air Liquide e que querem vir para Portugal trabalhar connosco. Temos mais de 30 nacionalidades.
Se as pessoas que querem vir trabalhar connosco são de fora da Europa e precisam de uma licença, é muito complicado. Já tivemos pessoas que desistiram.
Quais os maiores desafios na integração desse talento externo? Multiplicam-se as queixas em relação à burocracia. Confirma?
Tocou num ponto importante. O maior desafio é efetivamente esse. Se as pessoas que querem vir trabalhar connosco são da Europa, é fácil. Mas se as pessoas que querem vir trabalhar connosco são de fora da Europa e precisam de uma licença, é muito complicado. Já tivemos pessoas que desistiram, porque não se consegue reuniões com eles [com a Agência para Integração, Migrações e Asilo], não se consegue legalizar. É um processo de mais de seis meses que às vezes não acontece.
O estado atual da burocracia acaba por prejudicar a capacidade de atrair talento internacional?
Dificulta e muito. Se for fora da Europa, já sabemos que vamos encontrar todas essas dificuldades. Põe aqui uma barreira, principalmente quando temos metas e deadlines muito curtos.
Além de Tomar e Guarda, já têm outras cidades em vista?
Queremos consolidar estas três localizações. Não está pode, neste momento, nos nossos planos abrir outros sites, porque queríamos mesmo ter mais peso nestes e consolidar nestas duas regiões.
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“Há talento espalhado por todo o país”. Air Liquide recruta mais 200 trabalhadores até 2026
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