Comissão para avaliar a sustentabilidade da Segurança Social propôs, nomeadamente, travões às reformas antecipadas. Amílcar Moreira explica que, a par, teria de ser promovida empregabilidade.
Como está, o sistema de pensões português oferece um “leque alargado” de vias de acesso antecipado à reforma, mas os peritos mandatados pelo Governo para estudar a sustentabilidade da Segurança Social defendem travões. Em entrevista ao ECO, Amílcar Moreira, professor universitário e um dos membros dessa comissão, explica que, por exemplo, no caso dos desempregados de longa duração a solução deve ser apostar na sua empregabilidade, e não “abandonar essas pessoas à lógica da pensão antecipada”.
Já sobre o mecanismo que dita, todos os anos, as atualizações das pensões, o especialista sublinha que, estando na lei, o custo político de não o cumprir é “muito elevado”, como experimentou António Costa com a meia pensão de outubro de 2022, o que significa que protege os pensionistas. No mesmo sentido, poderia ser ponderada a inclusão na lei de aumentos intercalares em cenários de inflação elevada, recomenda a comissão.
Esta é uma de duas partes da entrevista de Amílcar Moreira ao ECO. Na outra (que pode ler aqui), debruça-se sobre financiamento da Segurança Social e sobre as muitas dificuldades que os peritos enfrentaram no seu trabalho.
Uma das primeiras propostas do livro verde sobre a sustentabilidade do sistema previdencial foi uma revisão do acesso às reformas antecipadas. Da mesma forma que a idade normal de acesso à pensão é revista em linha com a esperança média de vida, entendem que a idade de acesso à reforma antecipada deve ir evoluindo. Porquê?
É a primeira vez em dois anos que estou a falar sobre este assunto. Remeti-me a um silêncio sepulcral durante a elaboração dos trabalhos da comissão. Estou aqui em representação individual, enquanto membro da comissão, e não em nome dela. As opiniões que expresso responsabilizam-me apenas a mim, e não às entidades a que presto serviços. O sistema português de pensões oferece um leque razoavelmente diversificado e alargado de opções de reforma. Temos a reforma antecipada pelo regime de flexibilização, que permite a pessoas com 60 anos e 40 anos de contribuições a reforma, sujeita a penalizações no valor mensal. Temos o regime pelas carreiras longas. Temos uma variedade ainda bastante significativa de regimes especiais de antecipação para carreiras de desgaste rápido. E ainda temos o regime por desemprego de longa duração. O diagnóstico que a comissão fez tem dois pontos fundamentais.
Quais são?
O menos importante é que a análise estatística que nos foi permitida fazer mostra que o regime de acesso à reforma antecipada para pessoas com 57 anos e em situação de desemprego de longa duração é cada vez menos utilizado. O segundo ponto é que temos um regime de acesso à pensão normal em que a idade da reforma avança com a esperança de vida, mas os regimes de pensão antecipada não estão indexados. Ora, isso significa que, no futuro, vamos ter uma distância muito grande entre eles. Perante isso, a comissão acordou simplificar o sistema — ou seja, esta opção de acesso aos 57 anos desaparecer progressivamente, com um período transitório de cinco anos — e indexar a idade de acesso à reforma antecipada também à evolução da esperança de vida.
Em relação ao fim do acesso à pensão antecipada pela via do desemprego de longa duração, não estaríamos apenas a mover a despesa de um lado, do sistema de pensões, para outro?
As atuais projeções que temos — e que são relativamente positivas relativamente aos défices no sistema a longo prazo e à capacidade do Fundo de Estabilização Financeira compensar — partem de um pressuposto importante, que é o de que a taxa de participação no mercado de trabalho das pessoas com mais de 55 anos vai crescer de forma significativa em Portugal.
É um pressuposto demasiado otimista?
Não sabemos se é otimista ou não. O que temos é de ser cautelosos na forma como projetamos o sistema. Se este é o pressuposto, na impossibilidade de se ter um conjunto de pressupostos muito mais variado para alimentar o processo de decisão, vamos, pelo menos, retirar potenciais incentivos à reforma antecipada do sistema. A recomendação é no sentido de não termos o perigo de o sistema, por estar a dar incentivos à reforma antecipada, criar problemas de sustentabilidade.
Mas essas pessoas continuarão no desemprego e continuarão a corresponder a despesa da Segurança Social, estando a receber pensão ou não.
Essa é uma questão que tem de ser financiada pela política de emprego, e não pelo sistema de pensões. Quanto estamos a falar de pessoas com mais de 55 anos, estão em causa pessoas que ainda têm agora à sua frente perto de 15 anos de trabalho. Estar a abandonar essas pessoas à lógica da pensão antecipada, não lhes oferecendo perspetivas ou de valorização profissional ou de formação, é, para mim, um erro, e é um erro que economicamente pagaríamos muito caro.
Portanto, um travão a este regime teria de ser conjugado com uma promoção da empregabilidade destas pessoas.
Exatamente. E com uma responsabilização do Estado dessa tarefa, que é algo que não acontece. Há um relatório da Comissão Europeia que chama a atenção que Portugal é dos países onde as necessidades de requalificação da mão de obra são mais agudas.
Tem de ser visto do ponto de vista de como mantemos o maior número possível de pessoas no mercado de trabalho até a idade de reforma normal. É importante até para alargar a base de financiamento da Segurança Social.
Em relação à indexação da idade de acesso à reforma antecipada à esperança de vida, os cortes previstos hoje (e são dois) não são já suficientes para compensar a antecipação face à idade normal da pensão?
Não temos estimativas que quantifiquem isso, até porque nalguns dos regimes de reforma antecipada o fator de sustentabilidade foi retirado. Por exemplo, o regime das carreiras longas. Isto não pode ser visto na lógica de se o sistema consegue comportar ou não. Tem de ser visto do ponto de vista de como mantemos o maior número possível de pessoas no mercado de trabalho até a idade de reforma normal. É importante até para alargar a base de financiamento da Segurança Social.
Referiu as carreiras muito longas. Não é uma questão de justiça social permitir que essas pessoas se reformem mais cedo, tendo em conta que começaram a trabalhar, às vezes, antes dos 17 anos?
Tem o seu lugar enquanto forma de compensar situações particulares, que são fruto de um período histórico particular. O sistema de pensões português está, neste momento, a atravessar para a sua fase de maturação. Nos primeiros 40 anos do nosso sistema democrático, o sistema foi formado e houve a integração de um conjunto de grupos que não tinham carreiras contributivas contabilizadas, como mulheres e trabalhadores agrícolas. O sistema foi incorporando essas pessoas. As carreiras longas são um resquício histórico, que daqui a uns tempos se calhar vamos ter de voltar a pensar para saber se faz sentido ou não.
Em relação às pensões ditas normais, há um mecanismo em vigor que liga a idade de acesso à esperança média de vida. A comissão entende que deve ser também revisto?
A comissão não se pronunciou.
E o professor Amílcar Moreira?
O professor concorda que não é aí que temos de olhar para o sistema.
Mas, quando estamos a olhar para a sustentabilidade do sistema como um todo, não faz sentido olhar para o acesso normal?
A preocupação da comissão é que havia aspetos que eram absolutamente essenciais. Mais do que a questão da sustentabilidade financeira, era a questão da sustentabilidade social do sistema. Tínhamos também uma preocupação muito grande com a questão de como se faz a monitorização do sistema e a produção de informação para ajudar os decisores políticos a tomarem decisões sobre esse tema. Não é aí [na idade de acesso normal à pensão] que estão as variáveis que requerem a nossa atenção dentro do sistema.
E o mecanismo de atualização das pensões? Hoje, depende da inflação e do crescimento económico. Que avaliação faz?
A questão do mecanismo de atualização já fazia parte do mandato da comissão, porque tem uma grande influência na evolução da despesa. Mas a questão da forma específica surge porque, imediatamente a seguir à criação da comissão, surge a decisão do Governo de suspender a aplicação da fórmula e um debate público sobre a adequação ou utilidade dessa fórmula, tendo em conta que, desde 2007, só foi implementada sem alterações ou sem correções três vezes. Tem sido um argumento muitas vezes utilizado para a necessidade de mudar a fórmula.
Discorda desse argumento?
Pessoalmente, acho que a fórmula tem muitas virtualidades. Tem duas funções. Uma é assegurar um mecanismo de atualização regular do valor das pensões. Outra é controlar o crescimento da despesa em pensões. O processo de maturação do sistema de pensões português vai agora passar pela fase mais crítica e era preciso ter um mecanismo que impedisse um agravamento da despesa estrutural em pensões. A fórmula permite isso. Ao cumprir estes dois objetivos, permite que haja um custo político muito grande quando o Governo decide não a aplicar.
O custo político de não atualizar as pensões é grande e isso significa a proteção dos pensionistas. É um objetivo muito importante.
Como vimos em outubro de 2022.
Sim, e nos anos da troika. O custo político de não atualizar as pensões é grande e isso significa a proteção dos pensionistas. É um objetivo muito importante. Outra virtualidade do mecanismo é que este está desenhado para ajudar o sistema a passar esse processo de transição mais complicado e tem um mecanismo de redistribuição dos custos de transição, que é uma penalização maior aos pensionistas de maior rendimento. Ou seja, eles recebem atualizações menores do que recebem outros. Em termos distributivos e em termos de gestão do sistema, a forma tem muitas virtualidades. Qual é o problema? Há um custo de oportunidade.
Pode detalhar?
Ou aumentamos as pensões para manter o poder aquisitivo ou controlamos a despesa. O que está é que, desde 2008, houve uma perda muito significativa de poder aquisitivo das pensões, nomeadamente para grupos de pensões já mais significativas. E tivemos um período em que os próprios pensionistas com pensões mais baixas estavam a perder poder aquisitivo.
Mas isso não mostra que a fórmula foi ineficaz, porque acabou por exigir aumentos extraordinários recorrentes para a colmatar?
Significa que a fórmula tenta balancear dois objetivos contraditórios, da forma que é possível.
De modo claro: é preciso ser revista?
Esta é uma das áreas onde a falta de recursos técnicos que foram postos à disposição da comissão foi mais evidente, e é um reflexo de como isso limitou o nosso trabalho. O ideal era que se pudesse simular um conjunto de cenário de política pública para fazer recomendações mais sustentadas em evidência. Não foi possível. O que é que a comissão recomenda? Faz uma recomendação explícita, que é que o valor das atualizações seja feito por referência ao cúmulo do valor das pensões recebidas, e não por pensão. Depois, há um outro conjunto de recomendações.
Por exemplo, atualização para todos em linha com a inflação.
Aumentos uniformes usando o IPC sem os custos da habitação. Essa é a medida que precisamos de avaliar. As pensões de natureza contributiva são sempre rendimentos diferidos. São poupanças que fazemos durante a nossa vida ativa para o nosso futuro. A penalização que existe, neste momento, na fórmula penaliza os pensionistas de maiores rendimentos. É uma questão de equilíbrio. Não há soluções ideais nesta área.
Outra das vossas recomendações é estabelecer na lei aumentos intercalares, quando a inflação ultrapassa a fasquia dos 5%. Não deveria caber aos Governos tomar essa decisão, tendo em conta o cenário?
O que a comissão recomenda é que seja estudado o impacto de uma medida dessa natureza. Se pusermos na lei, depois há o custo político de não cumprir. Temos de ter no sistema garantias que protegem as pessoas que são mais vulneráveis.
O Governo implementou agora um suplemento extraordinário para os pensionistas. Faz sentido?
Está no mandato do Governo. Há um trabalho de recalibração do sistema que precisa de acontecer. Estou a falar de o sistema passar a integrar riscos sociais que hoje não integra ou integra de forma apenas periférica pelo regime não contributivo. Estamos a falar das políticas de cuidados aos seniores. O sistema também precisa de responder a uma orientação que é a de dar mais apoios às crianças e combater a pobreza infantil como forma de combater a pobreza estrutural. Se me pergunta se a minha opção seria um aumento extraordinário de pensões ou investir nestas duas áreas, preferia investir nestas duas áreas.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
“Abandonar pessoas acima dos 55 anos à pensão antecipada é um erro que pagaríamos muito caro”
{{ noCommentsLabel }}