Amílcar Moreira denuncia "limitações muito significativos" no trabalho do livro verde da Segurança Social, a começar pela falta de recursos humanos no Ministério do Trabalho e das Finanças.
Não faltam só professores às escolas públicas ou médicos ao Serviço Nacional de Saúde. Há também uma grave escassez de técnicos de apoio à tomada de decisão. A denúncia é feita por Amílcar Moreira, professor universitário e um dos membros da comissão de peritos que, nos últimos dois anos, esteve a estudar a sustentabilidade da Segurança Social.
Em entrevista ao ECO, o especialista revela o motivo dos sucessivos adiamentos da publicação do livro verde e comenta a sua não divulgação antes das eleições de março deste ano, adiantando que foi dos membros que mais força fez para que as recomendações ficassem guardadas até à ida às urnas.
No que diz respeito à sustentabilidade da Segurança Social, Amílcar Moreira frisa que seria importante o Conselho das Finanças Públicas (CFP) ter um papel mais ativo na monitorização e admite aliviar a Taxa Social Única (TSU), mas só com uma fonte alternativa de financiamento do sistema. “Temos de pensar a Segurança Social como se fosse um petroleiro de longo curso”, atira.
Esta é uma de duas partes da entrevista de Amílcar Moreira ao ECO. Na outra (que pode ler aqui), debruça-se sobre os travões às reformas antecipadas e sobre o mecanismo de atualizações das pensões.
Em relação ao financiamento, existe ou não uma crise de sustentabilidade no sistema de pensões da Segurança Social?
As projeções que temos são relativamente otimistas. Sim, vai haver défices contínuos na componente de repartição, mas os recursos que vão ser acumulados no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) permitem, dependendo da assunção que fazemos sobre como se vão valorizar os ativos financeiros, cobrir esses défices. O plano ideal que a comissão tinha era o de estar em condições de apresentar cenários demográficos e macroeconómicos próprios, mais diversificados e independentes do que se faz no “Ageing Report”. Não foi possível concretizar essa ambição.
Porquê?
Portugal vive uma situação muito complicada de estrangulamento de recursos humanos alocados a estas questões, quer no Ministério do Trabalho, quer no Ministério das Finanças. Têm técnicos muito competentes, mas não têm o dom da ubiquidade. Foi muito difícil conseguir fazer essas coisas. Contactámos o Instituto Nacional de Estatística, mas, por uma decisão de mudar as NUTS, os recursos foram todos direcionados para essa área, e não foi possível. O conjunto de limitações que enfrentámos ao longo destes quase dois anos foi muito significativo e limitou a ambição do que se podia fazer. Esta foi uma das áreas. Mas conseguiu-se algo. Com muito esforço das equipas, quer do Ministério das Finanças, quer do Ministério do Trabalho, conseguimos produzir cenários de testes de stress.
E o que mostram?
São os cenários que mostram que o sistema não está preparado para um cenário tão negativo quanto o pior vivido nos últimos 20 anos. Os resultados dos testes de stress têm de ser tomados com muito cuidado, porque são exatamente isso: situações extremas. Temos de olhar para o intervalo das projeções.
O caminho que foi feito nos últimos 20 anos focou-se quase exclusivamente sobre questões de sustentabilidade financeira, e isso vamos pagar à frente.
Coloco a pergunta de outra forma: há drama em excesso em torno da sustentabilidade do sistema de pensões?
O problema é como compatibilizamos os objetivos da sustentabilidade financeira com a sustentabilidade social. O caminho que foi feito nos últimos 20 anos focou-se quase exclusivamente sobre questões de sustentabilidade financeira, e isso vamos pagar à frente. Temos de pensar a Segurança Social como se fosse um petroleiro de longo curso. É muito grande, tem uma margem de manobra limitada e não podemos pensar que lhe damos uma coordenada e vai direta para lá. Temos de ir monitorizando, fazendo ajustes parciais para evitar que o sistema se torne insustentável.
Sobre a monitorização, uma das recomendações da comissão é que o Conselho das Finanças Públicas tenha um papel nesse acompanhamento. Porquê? E que avaliação faz da monitorização hoje feita?
O atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, foi entrevistado e perguntaram-lhe quais eram os planos da Aliança Democrática (AD) para a Segurança Social. Ele responde, e bem a meu ver, que há um problema de diagnóstico, porque não há consenso na comunidade académica sobre as projeções. A comissão até organizou um workshop em que foi buscar representantes de instituições de monitorização que fazem este tipo de função nos Estados Unidos, França e Canadá. Todas as instituições foram escolhidas porque partiam de um princípio: a separação entre a função de monitorização e a função de decisão política, que é algo que em Portugal não existe. Neste momento, a entidade que faz a função de monitorização são serviços que estão dependentes politicamente do Governo. Quer no caso canadiano, quer no caso francês, as instituições que foram criadas foi exatamente para resolver este problema de confiança pública nas projeções. A separação da função de monitorização da função de decisão pública permitiu reforçar a qualidade da informação prestada e um maior consenso sobre a natureza do diagnóstico.
Daí a recomendação de reforçar o papel do CFP na monitorização.
Não estamos a dizer que o Governo não deve continuar a produzir suas próprias estimativas, o que dizemos é que tem de haver outra fonte de informação, que produza projeções com cenários próprios, que não dependa do “Ageing Report”.
Perante as estatísticas que existem, haveria margem para uma redução da Taxa Social Única?
Primeiro, diversificação para quê? O contexto em que geralmente se fala é a diversificação para lidar com os impactos do envelhecimento demográfico que podem produzir uma eventual redução de receitas do fator trabalho. Mas a diversificação de fontes também pode cobrir outros fins, aquela ideia da recalibração do próprio modelo. A política dos últimos anos tem sido a de apostar na diversificação para alimentar o FEFSS, porque tem efeitos multiplicadores.
Que caminhos para a diversificação poderiam ser tomados?
Há um debate mais abrangente, que é: tendo em conta as alterações estruturais da economia, que não são só o envelhecimento demográfico, que opções temos para a diversificação? Há todo um debate sobre alocar uma percentagem da taxa de carbono, a taxação dos robôs, a taxação da inteligência artificial. A comissão foi para uma opção que já tem sido objeto de uma reflexão muito mais alargada d
o que as outras opções, que é a de uma contribuição sobre o valor acrescentado líquido, cuja introdução é conjugada com uma diminuição da taxa contributiva global, a TSU.
Portanto, reduzir a TSU só com uma nova fonte?
Nesse contexto em que teríamos a capacidade de mudar a forma de financiamento que penaliza menos os setores que são muito dependentes do trabalho, acho que a descida da taxa contributiva geral poderia fazer sentido. Só por si, estar a reduzir a taxa sem encontrar outras fontes, é um péssimo princípio.
Para um ponto de reflexão, compare-se os recursos que foram postos à disposição da comissão independente técnica da localização do novo aeroporto e os que foram postos à disposição da comissão sobre a Segurança Social. A diferença de recursos foi absolutamente constrangedora.
A par do debate do financiamento, a comissão recomenda a incorporação, por exemplo, do risco de dependência nas eventualidades cobertas pelo sistema previdencial. Porquê?
Portugal é uma das nações mais envelhecidas da União Europeia e mesmo ao nível global. Temos pontos do que se chama um sistema de cuidados de longo curso. Temos lares, o estatuto do cuidador informal, um subsídio para o cuidador informal. Mas não temos uma política de cuidados estruturada. Não faz, neste momento, parte do sistema previdencial. Portanto, parte da recalibração do sistema tem de ser pela questão dos cuidados, e passar por incorporarmos a ideia de que temos de ter um mecanismo de financiamento dos cuidados de longo curso, para que isso não caia sobre as pessoas das famílias ou, em situações das pessoas mais vulneráveis, não terem qualquer apoio.
O relatório desta comissão esteve previsto para junho de 2023. Foi adiado para janeiro de 2024. E voltou a ser adiado para depois das eleições de março de 2024. O que é que se passou?
Está tudo muito explícito na página 31 do livro verde e tem que ver com condicionamentos de acesso a dados e ao tratamento de dados, e dos recursos que foram postos à disposição da comissão. Para um ponto de reflexão, compare-se os recursos que foram postos à disposição da comissão independente técnica da localização do novo aeroporto e os que foram postos à disposição da comissão sobre a Segurança Social. Eu sei que o novo aeroporto é mais importante, possivelmente, que a sustentabilidade de longo prazo da Segurança Social. Mas, para quem estava do lado da comissão, a diferença de recursos foi absolutamente constrangedora. Todos os membros estavam a trabalhar sem dedicação exclusiva. Esse modelo até poderia ser exequível, mas teria de ser suportado por uma rede de apoio técnico forte que pudesse fazer o trabalho de preparação. Isso não aconteceu.
Portanto, os adiamentos deveram-se à escassez de recursos e de dados.
Além disso, houve um problema de expectativas desde o início, no perímetro e no calendário. Quer a ministra Ana Mendes Godinho, quer o secretário de Estado Gabriel Bastos deixaram-nos completamente à vontade para definir o perímetro. A comissão agiu de forma generosa.
Tornando o prazo irrealista.
Desde o início. Não acho que tenha sido uma má decisão. A decisão de alargar o perímetro foi boa.
A falta de recursos é reflexo de falta de vontade política?
Não acho que seja por aí. É o que a máquina dá. Mesmo para um perímetro relativamente restrito, aquele calendário era já muito apertado. A entrega estava prevista em menos de 12 meses.
Não teria sido mesmo possível publicar uma versão do relatório antes das eleições, para servir de base às propostas dos partidos?
Fui das pessoas que dentro da comissão mais se opôs a essa opção. Já passei por uma experiência similar, em que o estudo que é feito de boa-fé e de forma completamente independente e apartidária, depois é usado como uma bola de combate político. Claramente, os atores políticos nestas questões não estão interessados em questões de boa-fé técnica. Querem simplesmente politizar. Isso foi claro. As tentativas de poder de partidos políticos de tentar condicionar e forçar uma entrega de um relatório que não tínhamos obrigação de entregar. A comissão foi sempre independente e trabalhou sempre para proteger aquilo que era o produto final, que era o livro verde e suas recomendações.
A nova ministra diz que o foco do livro foi limitado. Como responde?
Sou técnico, não sou político.
Segue-se agora um livro branco?
O que vai suceder será um ato político, não é a minha esfera. Reconheço que este era um processo complicado para a atual equipa do Ministério do Trabalho. Este livro verde não foi pedido por eles e, portanto, era um conjunto de propostas que até podiam contrariar o que são as ideias da equipa governativa. A ministra e sua equipa deram-nos apoio para terminar os trabalhos. A partir daqui, é uma decisão política. Há uma coisa que eu queria e terminamos por aqui: trocaria um livro branco pelo aumento de recursos humanos, quer do Ministério da Segurança Social, quer do Ministério das Finanças.
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Diferença de recursos entre Comissão da Segurança Social e do Aeroporto “foi constrangedora”
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