“The times they are a-changin’”

  • Pedro Marques Bom
  • 11:20

Entramos na fase do compliance by design: as soluções de IA contratadas terão de ser desenhadas à medida de cada empresa para garantir que esta não viola as regras de concorrência.

“Conhecimento é poder”. A frase parece poder atribuir-se a Francis Bacon, filósofo inglês do século XVI, que antecipava já a importância do controlo da informação no futuro.

Em 30 de outubro de 1938, um ainda jovem Orson Welles simulava, através de um direto na rádio, transmitido pela CBS, uma invasão da Terra por povos alienígenas (numa adaptação da obra de H.G. Wells, a “Guerra dos Mundos”). Conta-se que ouvintes mais incautos, e sem maneira de validar a informação, acreditaram que a invasão era real.

Em julho de 2024 a Comissão Europeia “acusou” a empresa X de Elon Musk, ao abrigo do novo Digital Services Act (DSA), de não proteger de forma plena os seus utilizadores, e os princípios da transparência e acesso a informação, o que poderia levar a desinformação, a perfis falsos, à possibilidade de influenciar condutas, com potenciais impactos na economia, na política ou na sociedade de um país. Foi a primeira “acusação” da Comissão ao abrigo do DSA, norteada pelo direito à informação em sentido amplo.

Não interessa aqui discutir se a X teve ou poderia ter algum impacto no desfecho das eleições norte americanas ou em qualquer outra parte do mundo; se há ou não conflito em ter Elon Musk à frente do novo DOGE (acrónimo para Department of Government Effiency dos EUA); se os utilizadores das redes sociais oferecidas pelas Big Tech estão ou não protegidos.

O mais relevante é a mudança de paradigma. Durante as últimas décadas vivemos com um paradigma de compliance (em matéria de concorrência) muito claro: as empresas sabiam que podiam ser condenadas por práticas proibidas referentes a condutas passadas, incidindo tipicamente sobre vulgares acordos para fixação de preços ou repartição e mercados.

O novo paradigma é mais complexo – pretende-se antecipar possíveis práticas proibidas. Já não se trata apenas de sancionar o passado, mas antecipar uma conduta que ainda não ocorreu. E já não se trata apenas de procurar o acordo para fixar preços, mas colocar a informação no centro do enforcement. Isto aplica-se a Musk na esfera complexa do DSA, mas aplica-se também a qualquer comerciante, grande ou pequeno, ao abrigo do novo Regulamento de Inteligência Artificial aprovado pela Comissão Europeia, e com aplicação direta em Portugal.

Para dar um exemplo concreto: há mais de uma década existia bastante pressão social para que se investigasse um alegado cartel nos combustíveis. Não havia conversa de café em que não se aventurasse dizer que as gasolineiras faziam parte de um cartel. A Autoridade da Concorrência investigou e concluiu que, de acordo com as regras aplicáveis, não havia qualquer infração.

A explicação (e perdoar-se-á a forma simplista) vem nos livros: imaginemos que duas empresas concorrem na mesma rua com dois postos de combustível. Um dos operadores decide baixar o preço – a procura desvia-se do seu concorrente para o seu posto. Como reação, o seu concorrente decide baixar também o preço – a procura equilibra-se; ou seja, os clientes, vendo que o preço do outro lado da rua é igual, e sem fila de espera, voltam à casa de partida. Este jogo repetido leva os dois concorrentes a chegar à mesma conclusão: estão a perder dinheiro e não ganham quota de mercado. Solução: se um sobe, o outro sobe; se um desce, o outro desce. Resultado: preços alinhados, sem que exista qualquer contacto ou acordo proibido.

Avancemos para 2024: a inteligência artificial já não é pura ficção e aqueles mesmos donos dos dois postos de abastecimento, cansados de monitorizar preços diariamente, decidem comprar ou contratar ferramentas mais inteligentes para benchmarking e ajuda à decisão comercial de baixar, subir ou igualar um preço (não mais do que um algoritmo de preços com recurso a IA).

Os algoritmos (essa nova entidade com vida própria) rapidamente começam a recolher e a tratar a informação de mercado disponível e a ajustar os preços em conformidade (a informatização dá aqui uma ajuda). Ora, os algoritmos não precisam de repetir o jogo muitas vezes, ou fazem-no em nanossegundos, concluindo que a resposta economicamente mais racional é alinhar sistematicamente os preços e não entrar em guerras que apenas produzam uma deterioração da margem, sem aumento de quota de mercado.

O que muda então? No primeiro exemplo, os donos dos postos não cometeram qualquer infração, já que nunca falaram entre si. No segundo exemplo, e fruto do novo Regulamento de IA, temos uma novidade: os donos dos postos de combustíveis (ou os supermercados, as seguradoras, as transportadoras, as farmacêuticas, as operadoras de telecomunicações, os fabricantes automóveis, na verdade qualquer empresa em qualquer setor) podem ser responsabilizados pela forma como o algoritmo de preços está programado para se comportar.

As novas regras sobre IA obrigarão assim as empresas a atuar preventivamente para impedir que ferramentas de IA, não desenhadas por si, e muitas vezes não operadas ou sequer instaladas por si, estejam programadas para se coordenar.

Cada empresa tem agora que antecipar as práticas proibidas que ainda não aconteceram e prevenir que estas possam ocorrer. Entramos na fase do compliance by design: as soluções de IA contratadas terão de ser desenhadas à medida de cada empresa para garantir que esta não viola as regras de concorrência, o que arrasta a necessidade de perceber, em cada caso, que tipo de infrações se pretende prevenir (ou, dito de outro modo, há que arrumar primeiro a casa).

O paradigma atual, da prevenção reativa (perdoe-se o oxímoro) tem de convolar-se num investimento proactivo, como a proteção de dados ou o branqueamento de capitais (ou a assessoria fiscal), de modo a evitar processos bastante exigentes, por vezes desequilibrados (sim, acontece), e que acabam muitas vezes em coimas de milhões (sim, também acontece). Já não se trata da tradicional pergunta “Qual o risco de me apanharem?”, mas da certeza de que a empresa poderá ser condenada pela infração que ainda não aconteceu ou, de forma menos dramática, por não ter prevenido que a mesma se produzisse.

É no mínimo interessante recuperar hoje as palavras de Musk quando entrevistado pelo próprio ex-primeiro-ministro britânico Rishi Sunak (aconteceu há apenas um ano): “Em geral, considero que a IA será muito provavelmente uma força positiva, mas a probabilidade de correr mal não é de zero por cento. Portanto, só precisamos de mitigar o potencial negativo”.

Vivemos claramente tempos de mudança. Como diria Bob Dylan: “As the present now | Will later be past | The order is rapidly fadin’ | And the first one now | Will later be last | For the times they are a-changin’…”

  • Pedro Marques Bom
  • Sócio co-coordenador da área de Direito da Concorrência da Cuatrecasas

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