Comercializadoras esperam que Bruxelas force mudança na tarifa social

Comercializadoras entendem que o novo modelo de financiamento da tarifa social é "errado", pelo que recorreram a Bruxelas, pedindo um parecer que dê força à sua posição. Contam ter resposta este ano.

O modelo de financiamento da tarifa social, que foi criado no ano passado em resposta a críticas de Bruxelas, volta a estar sob a análise do Executivo europeu. O presidente da ACEMEL — Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado, João Nuno Serra, afirma que esta associação já enviou uma missiva à Comissão Europeia, criticando que o financiamento deste apoio social recaia sobre os comercializadores, e espera resposta à mesma no final do ano.

Anteriormente, eram os produtores de eletricidade os responsáveis por pagar esta ajuda às famílias vulneráveis –essencialmente, a EDP. A elétrica, não considerando justo este encargo, pediu o parecer a Bruxelas, que atestou que o modelo de financiamento da tarifa social não estava de acordo com as regras da concorrência.

Assim, o Governo anterior reformulou o modelo e, a partir de abril deste ano, o custo passou a recair sobre os produtores e comercializadoras de eletricidade. As comercializadoras, que vendem eletricidade aos clientes finais, podem pagar do próprio bolso ou repassar esse custo aos consumidores. O expectável é que passem realmente este custo aos clientes, mas estas empresas não estão satisfeitas com esta dinâmica, pelo que foi a sua vez de pedir “opinião” ao executivo europeu.

João Nuno Serra defende uma fatura de eletricidade que seja, ao máximo, referente aos puros custos da energia, em vez de vir “carregada” com encargos paralelos, como a tarifa social ou o financiamento do operador do mercado regulado. Acredita que o país está no “intervalo da liberalização”, depois de se ter dado a “primeira parte”, com a abertura a novos agentes, mas falta ainda a “segunda parte”, na qual espera ver o fim do mercado regulado, previsto para 2026. A indicação que tem do ministério do Ambiente é que este término irá decorrer “faseadamente”.

Entrou em consulta pública a proposta para o financiamento [da tarifa social] que vai passar a recair sobre os comercializadores, além dos produtores. Os comercializadores ficam com a maior fatia, de 90 milhões, em comparação com os 45 milhões que dizem respeito aos produtores. A ACEMEL vai participar nesta consulta pública? Qual é a vossa avaliação do documento?

Sim, nós temos participado nas consultas públicas todas do setor. A boa notícia que nós vemos nessa consulta pública é que, em 2025, está prevista a inclusão do comercializador de último recurso no financiamento da tarifa social. Um comercializador que está a competir com o mercado liberalizado, tem que ter as mesmas variáveis para operar que os demais comercializadores. Portanto, a comparticipação da SU Eletricidade para o financiamento da tarifa social obviamente que é que é fundamental. É isso, grosso modo, que altera profundamente aquilo que era o cenário de 2024, em que nós tínhamos um custo da tarifa social de 2,38 euros por megawatt-hora e agora passa para 1,75 euros.

Quando saiu esta proposta, as comercializadoras mostraram alguma preocupação em relação à capacidade de arcar com estes custos. Como é que está a situação agora e perante esta mais recente proposta? Continua a ser um problema para o modelo de negócio, sobretudo dos pequenos comercializadores?

O financiamento da tarifa social, do nosso ponto de vista, é algo que tem que ser resolvido pelo Governo, porque se trata de um apoio social. E nós, na audiência que tivemos com a secretária de Estado da Energia, levámos este tema para análise.

Quando é que se reuniram?

Foi sensivelmente em junho. E foi-nos dito que, em setembro, haveria novidades relativamente a esta matéria, mas que era intenção do Governo colocar isto no Orçamento do Estado. A verdade é que não foi. E do nosso ponto de vista, isto é um erro. Porque este financiamento da tarifa social é repassado pelos comercializadores para todos os clientes. E teria que ser assim. O instrumento tem que sair do Orçamento do Estado, porque de facto se trata de uma política social, que tem que estar separada. Porque hoje, quem olha para uma fatura de eletricidade, tem lá, entre outras coisas, energia, mas o grosso são impostos. E isto não ajuda nada à literacia e a um esclarecimento do consumidor.

Era intenção do Governo colocar isto no Orçamento do Estado. A verdade é que não foi. E do nosso ponto de vista, isto é um erro.

Então acredita que a tarifa social deveria ser financiada num todo através do Orçamento do Estado.

Através do Orçamento do Estado. Nós, ACEMEL, juntamente com a ACIE, que é a nossa homóloga em Espanha, fizemos uma participação à Comissão Europeia, à Direção-Geral de Energia e ao Conselho de Reguladores, que já nos responderam dizendo que estão a analisar o tema, porque isto inclusivamente viola as regras da União Europeia relativamente aos apoios sociais que cada Estado membro deve dar.

Tem algum prazo em que espere resposta da Comissão Europeia?

Nós esperamos tê-lo até ao final do ano, porque a carta seguiu em julho. Tivemos depois uma primeira reação, dizendo que estavam a analisar e a pedir informações adicionais. Portanto, queremos acreditar que até ao final do ano teremos uma posição da Comissão Europeia relativamente a esta matéria. Para o Estado português, se vier uma decisão que aponte para aquilo que nos parece bem, que é isto [a tarifa social] ir para o Orçamento de Estado, acaba por ser uma segunda derrota. Isto na medida em que, como é sabido, o modelo de financiamento da tarifa social foi definido pelo então Governo na sequência de uma decisão do Tribunal Europeu relativamente ao grupo EDP, que contestou o facto de isto estar a ser pago basicamente pelo grupo. Levou o Governo a legislar sobre esta matéria. Mas legislou desta maneira, que não nos parece ser a melhor solução.

Este governo chegou mesmo a levantar a hipótese de recorrer a financiamento público para suportar esta tarifa. Tem alguma indicação de que esta opção esteja ainda em cima da mesa, ou só mesmo caso venha algum parecer da Comissão Europeia é que espera que volte a ser discutida?

Tendo em conta o que lemos da proposta de Orçamento do Estado, que ainda não está aprovada, mas tudo indica que vai ser, não vai haver no Orçamento do Estado este financiamento. E, portanto, para já o modelo mantém-se. E é um modelo que, do nosso ponto de vista, não está correto.

À partida, não está já em cima da mesa esse financiamento público.

Para 2025 não. 2026, enfim, depois veremos.

Para o Estado português, se vier uma decisão que aponte para aquilo que nos parece bem, que é isto [a tarifa social] ir para o Orçamento de Estado, acaba por ser uma segunda derrota.

Um dos argumentos que colocou para defender que deveria ser financiado pelo Orçamento do Estado e não pelos comercializadores, que acabam por passar esse custo aos consumidores, seria também uma questão de justiça social. Mas acabamos por ter os consumidores sempre a pagar: ou por via da fatura da eletricidade ou por via do Orçamento do Estado. Na prática, existe aqui uma diferença relevante? Qual é essa diferença?

A diferença é que, conceptualmente, os apoios sociais devem sair do Orçamento do Estado. Aliás, as regras europeias é assim que ditam. Porque, senão, podemos discutir por que é que este apoio social não aparece também noutras faturas, que também são de bens essenciais. A fatura [da eletricidade] não é só energia, são apoios sociais, são financiamentos a televisões públicas… depois fica difícil para o consumidor entender isto. Este equilíbrio entre aquilo que são os apoios que estão lá plasmados na fatura e aquilo que é energia.

Outra das batalhas antigas dos comercializadores do mercado liberalizado é que exista um ponto final para o CUR. Em que ponto está esta batalha? Tem alguma indicação de quando é que haverá este fim?

O fim do CUR eu diria que está num ponto de standby, porque na reunião que nós tivemos com a secretária de Estado da Energia foi-nos dito que estavam a trabalhar numa solução faseada para o chamado phaseout [término gradual] do CUR. Está previsto no decreto-lei 15 que, no final de 2025, os clientes BTN [baixa tensão] terão que sair do CUR. Isto é, em janeiro de 2026, nenhum cliente vai poder estar no CUR.

E esse phase out corresponderia ao decreto-lei 15?

O que nos foi dito pela Secretaria de Estado é que iriam fazer isto “faseadamente”. Não percebemos o que é que queria dizer com o “faseadamente”, na medida em que terão que alterar o decreto-lei para isso. Mas a verdade é que o decreto-lei também diz que, no final de 2022, os clientes BTE [baixa tensão especial] não deviam estar no CUR. E se nós formos ao CUR, há lá clientes BTE. Num mercado liberalizado não faz sentido termos uma comercializadora que concorre com os demais comercializadores do mercado livre e que é financiada por todos nós na tarifa para o fazer. Eu entendia o CUR numa lógica de dar apoio aos vulneráveis quando não havia a tarifa social. A partir do momento que se avançou para a definição, e bem, de uma tarifa social para apoiar os vulneráveis, o CUR deixa de ter esse efeito. E, portanto, o CUR hoje não é para os vulneráveis, mas para os imutáveis, aqueles que permanecem no CUR. Em 2025, está previsto, na estrutura da tarifa, cerca de 70 milhões de euros para o CUR. 70 milhões de euros para financiar uma empresa que fornece consumidores que têm, na maioria dos casos, condições para estar no mercado livre. Eu pergunto como é que isto é possível?

Num mercado liberalizado não faz sentido termos uma comercializadora que concorre com os demais comercializadores do mercado livre e que é financiada por todos nós na tarifa para o fazer.

O CUR, no mercado de eletricidade, não oferece os preços mais competitivos. Isso está mesmo do lado do mercado liberalizado. O argumento que muitas vezes é dado como sendo o benefício do CUR é uma espécie de regulação dos preços num sistema de concorrência. Como é que responde a esse argumento?

O CUR não é a oferta mais barata no mercado da eletricidade… depende. Pode haver trimestres em que o CUR não faz a atualização devida, e o mercado liberalizado fez, porque é mais responsivo no que diz respeito àquilo que é a evolução do mercado. E pode haver meses ou trimestres ao longo do ano em que o CUR é, de facto, a oferta mais competitiva, porque tem lá o tal financiamento. Isso é absolutamente desequilibrador para um mercado que se quer cada vez mais mais justo. Temos um CUR financiado por todos nós e praticar tarifas que muitas vezes não estão alinhadas com o verdadeiro preço do mercado. E isso é passar para os consumidores uma ideia errada de preço da energia. Que os consumidores tenham a noção que mensalmente a energia pode variar, porque varia, isso é uma responsabilização útil que se pode dar ao consumidor e que ajuda, e muito, tem um efeito colateral positivo, na eficiência energética.

Mas por exemplo, no mercado do gás, passar o preço real no contexto da crise energética foi fonte de grande preocupação. E, de facto, foi o CUR que serviu de almofada para os consumidores. Nesses casos específicos, o CUR continua a ter um papel. Como é que vê aqui a responsabilização do consumidor?

Mas aí trata-se de momentos excecionais, e para momentos excecionais tem que haver medidas excecionais. Se não houvesse um CUR do gás, o Governo podia fazer um plafonamento ao preço por via de um subsídio que era dado ao consumo de gás para isso. E esse subsídio era dado ao consumidor ou à comercializadora. Não precisamos ter uma uma comercializadora que é controlada pelo Estado para fazer política energética. Criou-se o mecanismo ibérico que acabou por resolver e foi uma boa solução na altura para mitigar essa escalada do lado da eletricidade. Do lado do gás, poder-se-á fazer sempre o mesmo.

Até que ponto é que hoje temos um mercado verdadeiramente liberalizado? E se não o temos, quando é que espera que seja possível?

Um mercado verdadeiramente liberalizado não temos. Acalento a expectativa de em 2026 podermos alcançar esse desígnio.

Falando dos pequenos comercializadores face aos grandes do mercado, que geralmente têm verticalização do negócio. Isso também é um entrave à liberalização do mercado? E, se é, como é que podemos ter realmente um mercado mais dinâmico?

Sim, eu acho que há barreiras que este mercado tem e é sabido que condicionam o aparecimento de mais players [atores] no mercado. O mercado também não é muito extenso, mas eu diria que obviamente comporta ainda mais players a atuar. Eu quando olho para trás e vejo aquilo que a ACEMEL já fez por este mercado e não só a ACEMEL enquanto associação, mas no fundo as empresas que cá estão, acho que já valeu a pena o passo que se deu, porque hoje o país tem um nível quer de tarifas, quer de dinâmica dessas tarifas, de propostas de preço que não tinha quando eram dois ou três. Acho que estamos no “intervalo” da liberalização, e a segunda parte que aí vem, pode-nos trazer ainda resultados melhores do ponto de vista do consumidor que aqueles que que tiveram até hoje.

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