Carlos Tavares, a história do português que caiu do topo da indústria automóvel
Na Renault, Carlos Tavares achou pouco ser o número dois do imperial Carlos Ghosn. Chegou à Peugeot-Citroën com participação chinesa e sai agora da Stellantis, pressionado pelos elétricos da China.
Lisboeta, leão de signo (14 de agosto), filho de mãe professora de francês, estudou no liceu Charles Le Pierre, antes de seguir para França, onde se formou em engenharia mecânica pela École Central de Paris. Em 1981, quando já se tinha iniciado nas corridas que ama, Carlos Antunes Tavares entrou na Renault, em França, onde, na década seguinte, é selecionado para o projeto da segunda geração do Clio, modelo vital para as vendas da marca do losango.
A carreira executiva iniciou-se já no século XXI, com os louros de ter liderado o desenho industrial de um automóvel vencedor de prémios e conquistador de lideranças do mercado para a Renault, o Mégane II. Casado, pai de três filhos, o executivo português chegou, neste domingo, aos 66 anos, ao fim da sua aventura na liderança do maior dos seus desafios na indústria automóvel, a presidência da Stellantis, grupo com 14 marcas, entre as quais a Chrysler, Citroën, Fiat, Opel e Peugeot, estas quatro com produção em Portugal.
Se o Mégane foi o seu primeiro grande momento de glória pública como engenheiro, a sua primeira grande decisão mediática terá sido quando rompeu com o todo poderoso Carlos Ghosn, à data visto como um herdeiro dos deuses do Olimpo. Braço direito de Ghosn, Tavares chegou ao momento em que se achou capaz de ser líder, mas o presidente da Renault/Nissan não gostou. Só havia espaço para um Carlos.
A história beneficiou Tavares, que foi o escolhido para liderar a PSA – Peugeot Citroën aquando da alteração acionista pós-Lehman Brothers que obrigou a família Peugeot e o Estado francês, acionistas, a aceitarem os yuans da Dongfeng como salvação para o construtor. Já Ghosn acabaria, anos depois, dentro de uma caixa de músicos numa espetacular fuga do Japão (onde esteve preso) para o Líbano.
O lisboeta começou aos comandos da PSA (Peugeot Société Anonyme) – Peugeot Citroën em abril de 2014. Um mês antes, com François Hollande e Xi Jinping, líderes francês e chinês, a assistirem, a PSA e a Dongfeng, assinavam, no Palácio do Eliseu, um acordo que levava à injeção de 800 milhões de euros pelo segundo maior fabricante automóvel chinês no grupo gaulês. O Estado francês, que já era acionista, acompanhava com igual montante. A família Peugeot via reduzida a sua participação, mal menor num momento de constrangimento financeiro, e a China ganhava uma nova lança na Europa. Para liderar a companhia, o escolhido foi Carlos Tavares.
Tal como tinha acontecido na Renault, onde, em 2012, tornou a Alpine numa marca autónoma, também na PSA se viu o spin-off da DS, designação que há quase seis décadas surgiu num modelo por cá também conhecido como “boca da sapo”. O português chegou a afirmar que esta seria uma marca vitoriosa nos EUA, porque ali o luxo francês tem espaço, e via espaço para a ambição de tornar a DS bem-sucedida como a Volkswagen tinha feito com a Audi. Apesar do conhecimento de um mercado onde liderou com sucesso a Nissan, o plano para a DS ficou-se pelas intenções.
Herbert Diess, patrão da Volkswagen, afirmou a certa altura que a PSA estava mais perigosa, no sentido de mais competitiva, com o português ao leme.
“Um sujeito brilhante”, disse dele Louis Schweitzer, o ex-líder do grupo Renault no tempo do lançamento do Mégane II e que, como Tavares, viajava de TGV em segunda classe. Tal como fez no dia da apresentação mundial à imprensa desta segunda geração do Renault Mégane, uma gama vital para as vendas dos franceses.
O chefe do desenho industrial do produto foi Tavares, que ali começou a ganhar notoriedade para lá das paredes da própria Renault. No Mégane “de” Tavares não faltou uma versão RS, os desportivos Renault Sport. Um carro que levava Tavares de volta à juventude, quando se voluntariou para comissário de pista no Autódromo do Estoril.
As corridas são, precisamente, a sua “excentricidade”, como assumiu em tempos ao francês Le Echos. Ao contrário de Carlos Ghosn e de alguns executivos de topo na indústria, o português gosta do cheiro das pistas. E para lá do volante da marca criadora de automóveis, pega no volante da criatura, como desde os tempos das provas de velocidade em Vila do Conde, ou dos ralis em França, com a equipa Clementeam, associação do nome da sua primogénita, Clementine.
Assim fez em 2014, quando pilotou um Peugeot RCZ nas 24 Horas de Barcelona, momento simbólico para quem começara então a liderar a PSA.
Tavares vinha então do divórcio com a Renault-Nissan, que o português conhecia como poucos. Ali entrou em 1981, assumindo em 2004 a liderança da operação norte-americana da Nissan — marca do mesmo grupo.
Em 2010, esteve em Lisboa a firmar com o Governo português o compromisso de construir uma fábrica de baterias para os carros elétricos do grupo em Cacia, Aveiro, aproveitando a aposta do Executivo de José Sócrates na mobilidade elétrica.
“O dia de hoje assinala o início de uma era de mobilidade de emissões zero em Portugal, um dos primeiros países no mundo a adotar uma política de mobilidade elétrica a nível nacional”, dizia Tavares, em Lisboa, ao lado de Sócrates, na cerimónia de entrega de uma frota de Nissan Leaf à gestora da mobilidade elétrica nacional, Mobi.e, e de um carro para serviço do Governo português. “Estamos honrados por fazer parte deste novo capítulo da história de Portugal com o Nissan Leaf 100% elétrico. O compromisso de Portugal com o progresso ambiental irá inspirar muitos outros países”, disse então o português, que, como mais recentemente viria a fazer com a fábrica de Mangualde, tem regularmente palavras positivas para o país.
Com a crise das dívidas soberanas e a travagem portuguesa nesta tecnologia, nos tempos da troika, a Nissan desistiu do investimento em Cacia, onde ainda hoje mantém a sua fábrica de transmissões.
Por essa altura, em 2011, Tavares subiu a COO (Chief Operating Officer), o líder das operações, da Renault/Nissan. Sairia em 2013, porque não havia ali espaço para dois Carlos. A 31 de março de 2014 surgia como o presidente da PSA.
A notoriedade do engenheiro levou-o a liderar também a maior associação de fabricantes automóveis europeus, a ACEA, em 2018 e 2019, além de ter estado no conselho de administração até 2022. Nesse mesmo ano, deixou o conselho de administração da Airbus SE, onde esteve seis anos e onde ouviu o presidente da companhia, Denis Ranque, elogiar-lhe a “cultura de excelência”, como noticiou o Le Echos.
De 2016 a 2020 foi também um dos diretores da TotalEnergies.
Na PSA, com ele aos comandos, o que era um grupo francês começou a ganhar novos horizontes quando, em 2017, juntou o portefólio europeu da General Motors, com Opel e Vauxhall (marca britânica que substitui o logo Opel nos modelos vendidos no Reino Unido), alcançando uma dimensão de vendas que já lhe permitia superar a Renault/Nissan. Tavares lidou então com Angela Merkel e com os sindicatos.
Mais tarde, a PSA unia-se à Fiat/Chrysler, num movimento de ganho de escala que originou a Stellantis, e a 16 de janeiro de 2021, começava a missão do português na liderança deste porta-aviões, de onde sai agora, demissionário. Pelo caminho ficaram algumas decisões que muito agradam aos que, como ele, gostam de automóveis, designadamente a decisão de fazer regressar a italiana Lancia e o reforço da Alfa Romeo, a marca com que se estreou na competição, em 1980, no circuito de Vila do Conde.
A rapidez do gestor não foi, como se comprova na sua saída a 1 de dezembro, suficiente para debelar as críticas.
A sua imagem de corte de custos e, em simultâneo, o anúncio do salário milionário em 2023 (parte em ações, as quais entretanto já perderam parte apreciável do seu valor), já eram muito acentuados pelos sindicatos, mas o desempenho da empresa, onde reduziu a quantidade de plataformas dos veículos para otimizar recursos, e que levou a lucros recorde em 2023 — a ponto de superar o valor bolsista da gigante Volkswagen — favorecia-o.
Nos EUA, a pressão comercial sobre a Chrysler, Dodge e Jeep, três das 14 marcas do grupo Stellantis — que obtém mais de metade dos seus lucros ali –, e, do lado de cá do Atlântico, o atraso no lançamento de alguns modelos, acabaram por dar novos argumentos a quem o criticava, designadamente na frente sindical, onde americanos e italianos são parceiros igualmente duros. “Ganância corporativa” foi o termo usado pelo sindicato United Auto Workers (UAW) para a Stellantis. Tavares, por seu lado, queixou-se recentemente dos custos de produção.
A sua mão dura chegou ao chefe financeiro e a outros executivos, mas a queda da Stellantis em bolsa não foi travada, e só nos últimos 12 meses a companhia já perdeu mais de um terço da capitalização — tendência que lhe não é exclusiva na indústria automóvel, como se pode ver no maior construtor europeu, o grupo Volkswagen, também pressionado pelo poderio chinês nos automóveis elétricos.
No início de outubro, num encontro com jornalistas em Sochaux, respondia a quem o questionava sobre o anúncio da Stellantis de que estava à procura de novo presidente com um claro: “eu assinei um contrato”. A 1 de dezembro, sai.
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