Jovens até aos 35 anos criticam a medida por "prejudicar" quem teve de trabalhar para estudar. A sorte é ditada pela “conjugação de timing" e de quando passaram "a entregar IRS de forma independente”.
“Parece-me que continuamos a valorizar e a premiar os jovens que já têm algumas vantagens, ao invés de motivarmos os que verdadeiramente se esforçam por um futuro melhor”. A frase é de Helena Valente, que, com 33 anos, está excluída do acesso ao IRS Jovem. Isto porque começou a trabalhar durante a faculdade para pagar os estudos e, portanto, já declara rendimentos como independente há mais de dez anos. O sentimento, esse, é partilhado por diversos jovens ouvidos pelo ECO.
O novo modelo do IRS Jovem entrou em vigor com o Orçamento do Estado para 2025, a partir do dia 1 de janeiro. Destina-se aos jovens até aos 35 anos, independentemente da sua escolaridade, com até dez anos de rendimentos declarados de forma independente, e consiste na redução do IRS aplicado sobre os rendimentos do trabalho, através de uma isenção.
É esse limite temporal máximo de dez anos desde que os jovens entregaram a primeira declaração de IRS independente dos pais que está a dificultar o acesso a quem foi trabalhador-estudante e já tem mais de 30 anos.
Parte destes jovens frequentaram o ensino superior durante a intervenção da Troika em Portugal ou no período imediatamente a seguir, altura em que muitas famílias enfrentaram dificuldades financeiras. Para muitos, com ou sem acesso a bolsa de estudo, a única opção foi trabalhar para suportar os encargos com educação ou para complementar o apoio dado pela família.
Sentem-se agora penalizados face a colegas que não precisaram de o fazer por terem o apoio do núcleo familiar ou este ter maiores rendimentos.
Helena Valente, atualmente senior internal auditor, é um desses casos. “Desde cedo me apercebi que estudar, procurar saber mais a todo o instante era algo que tinha de me acompanhar ao longo da vida, apesar de ter nascido no seio de uma família que não compreendia a importância dos estudos e de, também por isso, não ter tido um direcionamento imediato para direcionar o meu caminho. Consciente de que não teria um apoio financeiro por parte da família, que me permitisse seguir o meu caminho académico, procurei alternativas para conseguir continuar a estudar, suportando eu os custos dos estudos”, conta ao ECO.
Na altura, a alternativa foi ingressar na Força Aérea Portuguesa, onde, com o estatuto de trabalhador-estudante, aliado ao salário que a referida instituição lhe pagava — “e com um enorme desafio ao nível de gestão de tempo” — conseguiu cumprir o objetivo e avançar nos estudos.
“Consciente sobre as diferenças sociais que existem, e que o nosso Estado Social continua a beneficiar quem vem de famílias privilegiadas, bem ou mal, tinha enraizado de que para conseguir entrar no mundo corporativo e construir uma carreira de sucesso, tinha de estudar numa escola de gestão de referência”, recorda.
Os jovens que ainda podem usufruir desta medida, tendo 34 ou 35 anos, salvo algumas exceções, parece-me que são os que tiveram condições mais favoráveis de vida, com apoio eventualmente das suas famílias.
Decidiu então investir tudo o que auferia mensalmente em formação e arriscou a transferência do Instituto Politécnico de Santarém para a Católica Porto Business School, onde se licenciou em Gestão e concluiu o mestrado em Auditoria e Fiscalidade.
“De facto, o meu percurso profissional, construído da forma como foi construído, só foi possível porque comecei a trabalhar, acreditando que todo o esforço pode ser recompensado. Infelizmente, ano após ano, sinto que, para conseguir ter alguma estabilidade financeira e viver em condições dignas, é necessário colocar em cima da mesa rumar a outro país”, admite. Natural de Aveiro, vive em Lisboa e partilha casa com colegas, “porque se comprar casa é difícil, arrendar sozinha tem-se tornado ainda mais difícil”.
Para Helena Valente, uma grande percentagem dos jovens que já estava excluída do modelo de IRS Jovem que surgiu em 2020 por já ter 27 anos de idade, continua a ficar excluída do apoio, mesmo que se encontre entre os 31 e 33 anos (isto é, abaixo do novo limite máximo de 35 anos).
“Quem desenhou as medidas, sabia bem o que estava a fazer, e criou exatamente o que pretendia criar: uma manobra de diversão, plantando nos jovens um sentimento de esperança que não passou de uma mera ilusão”, considera, acrescentando: “os jovens que ainda podem usufruir desta medida, tendo 34 ou 35 anos, salvo algumas exceções, parece-me, são os que tiveram condições mais favoráveis de vida, com apoio eventualmente das suas famílias”.
Críticas que também têm eco pela voz de Rita Serrenho, 29 anos, gestora financeira e de projetos Investigação & Desenvolvimento. Trabalhadora-estudante desde os 19 anos, passou por um call center durante a licenciatura, por uma loja durante o mestrado e trabalha agora como gestora financeira e de projetos numa empresa de I&D enquanto é aluna de doutoramento.
“Acho estas regras do IRS jovem profundamente injustas para mim e para aqueles que têm o meu percurso”, afirma ao ECO, argumentando: “Esta situação é altamente discriminatória para aqueles que tiveram de trabalhar enquanto estudavam, tornando a medida impossível de alcançar para aqueles que começaram a descontar aos 18/19/20 anos para poderem estudar, como é o meu caso. Discrimina os jovens entre os 29 e os 35 provenientes de famílias com condições socioeconómicas mais limitadas, discrimina aqueles que optaram pelo difícil caminho de estudar e trabalhar”.
Discrimina os jovens entre os 29 e os 35 provenientes de famílias com condições socioeconómicas mais limitadas, discrimina aqueles que optaram pelo difícil caminho de estudar e trabalhar.
Para a jovem, a medida é ademais ineficaz para “segurar” os jovens altamente qualificados em Portugal. “O problema dos jovens qualificados saírem de Portugal tem que ver com os salários baixos e pouco competitivos em relação ao mercado internacional, e não com o IRS. Muitos dos países europeus para os quais os jovens emigram até têm taxas de IRS superiores”, refere.
O Banco de Portugal estima que o IRS Jovem implica um aumento de 0,8% do rendimento disponível para a população até aos 35 anos, de acordo com o Boletim Económico de dezembro. Porém, são os 20% de jovens com rendimentos mais elevados que têm o maior benefício, com um aumento de 1,2%. Por outro lado, para os jovens com os 20% de rendimentos mais baixos, a subida é de 0,3%.
Isto porque a redução do IRS pago sobre os rendimentos dos jovens aplica-se através de uma isenção, com um limite de 55 vezes o valor do Indexante de Apoios Sociais, o correspondente a cerca de 28.700 euros anuais. Mesmo os jovens com salário superior a 2.052 euros brutos por mês podem beneficiar da medida, apesar do limite à isenção previsto na lei. Nesses casos, o alívio fiscal aplica-se apenas a 27.800 euros do rendimento anual, ficando o restante rendimento sujeito às taxas normais de IRS, esclareceu ao ECO fonte oficial do Ministério das Finanças.
A isenção é de 100% no primeiro ano de obtenção de rendimentos, 75% do segundo ao quarto ano, 50% do quinto ao sétimo ano e de 25% do oitavo ao décimo ano.
Ana Claudia Santos-Cortez, com 31 anos, chief of staff in product na Feedzai, é mais uma jovem crítica da medida. Natural de Portalegre, filha de pais sem estudos superiores, com empregos que pagam o salário mínimo ou pouco acima disso, e a mais nova de três irmãs, entrou na Faculdade de Letras e a de Engenharia na Universidade do Porto, o que obrigou a pagar, além de propinas e livros, o alojamento e a alimentação.
“Candidatei-me a uma bolsa de estudo que demorou nada mais, nada menos do que nove meses do ano letivo em 2011 para ser aprovada — havia sempre um documento ‘não legível’ ou algum dado em falta, tudo o que fosse burocracia adicional no que parecia um esforço para levar os bolseiros a desistir do processo. Contudo, mesmo com bolsa de estudo, as restantes despesas continuavam a ser demasiado altas para os rendimentos dos meus pais e decidi começar a trabalhar para ter algum montante disponível para os aliviar e também para ganhar experiência prática no mercado de trabalho”, diz ao ECO.
Foi assistente de apoio a cliente num call center e trabalhou no serviço de caixas do IKEA meio ano durante o período de pico de compras. “Fiz o que tinha de fazer, muitas vezes a implicar ter aulas metade do dia e seguir para um emprego — nesta altura já a full time – entre as 15h00 e as 00h00, sempre a usar transportes públicos, chegando a casa depois e tendo que encaixar ainda tempo para estudar, cozinhar e ter vida social”, conta.
É mais uma medida que aparenta trazer benefício, mas as suas condições, analisadas ao pormenor, demonstram o contrário.
Se tivesse começado a trabalhar com IRS declarado de forma independente antes de 2014, não beneficiaria de todo da medida — altura em que passou a ter um emprego a tempo inteiro, mesmo continuando a apostar em formação. No entanto, “se tivesse começado a trabalhar com IRS declarado de forma independente após 2014 beneficiaria, no máximo, quatro anos” (por já ter 31 anos), sublinha. Na prática, a sorte é ditada pela “conjugação de timing e de quando passaria a entregar IRS de forma independente”, conclui, assim.
“É mais uma medida que aparenta trazer benefício, mas as suas condições, analisadas ao pormenor, demonstram o contrário”, afirma. Embora admita que a medida pode vir a ser benéfica para jovens que estejam agora a terminar o ensino superior ou que tenham começado a trabalhar há cerca de cinco anos, considera que “para todos os outros que tiveram que, por motivos de força maior ou porque nasceram mais cedo, fazê-lo antes apesar de ainda serem considerados jovens (com idade inferior a 35 anos), esta medida não só não representa um benefício como realça ainda mais o problema de raiz que a medida tenta silenciar: os impostos são, para todos, demasiado altos, independentemente da idade”.
Ainda assim, há alguns jovens que, mesmo excluídos da medida, lhe reconhecem mérito, como Ana Esteves, com 33 anos e na área de marketing. Trabalha desde os 18 anos e entrou na universidade no regime de maiores de 23. “Esta medida específica acaba por me prejudicar, porque mal comecei a trabalhar comecei a fazer o IRS sozinha. Acaba por prejudicar quem precisa de trabalhar, porque muitos alunos que andam na faculdade precisam de o fazer, porque a família não tem condições de lhes pagar os estudos, ou por serem estudantes deslocados. Mas como tudo na vida, há coisas boas e más”, refere ao ECO.
Os jovens dos 18 aos 26 anos que ganham até 14 vezes o salário mínimo nacional por ano (ou seja, na prática, que recebem o salário mínimo todos os meses) podem optar por entregar a declaração de IRS com os pais. Contudo, a maioria das jovens ouvidas pelo ECO destaca que na altura por desconhecimento não o fez, uma vez que assumia que trabalhar a tempo parcial e, sobretudo, inteiro significava ter de entregar a declaração como independente.
“Obviamente, gostaria de usufruir do IRS Jovem, mas percebo que já trabalhei muitos anos. Faz sentido aos olhos do Governo pôr limites”, aponta Ana Esteves. No entanto, acredita que, como o processo não é automático, “muitos jovens vão deixar-se dormir e não vão usufruir”, porque, apesar de serem medidas direcionadas, “muitos jovens não sabem, não leem”. “Muitos jovens não irão ter com a entidade empregadora, fazer o pedido e dar-lhes os documentos necessários”, enfatiza.
Obviamente gostaria de usufruir do IRS Jovem, mas percebo que já trabalhei muitos anos. Faz sentido aos olhos do Governo pôr limites.
Como o ECO explica aqui, os jovens que estejam interessados neste regime podem pedir às empresas para as quais trabalham para aplicar já o IRS Jovem na retenção na fonte do salário de janeiro, o que aumentará o respetivo salário líquido, estando as empresas obrigadas a fazê-lo. Não existe um formulário oficial para que os jovens peçam às empresas a aplicação da isenção na retenção na fonte, podendo a solicitação ser feita pelos canais de comunicação comuns, nomeadamente por email. Caso não o façam já, podem solicitá-lo ao Fisco, no acerto anual de contas. Ou seja, para os rendimentos de 2025, terão de fazer o pedido na primavera de 2026, quando entregarem a declaração anual.
Para Helena Valente o importante é a transparência sobre o tema. “Quer queiramos quer não, todas as medidas acabam por excluir, em parte, um conjunto de pessoas. Mas tudo certo, desde que sejamos transparentes na apresentação das medidas e dos seus pontos de exclusão. O que acaba por acontecer é que muitos dos pontos que verdadeiramente importam, e que até acabam por abranger uma larga maioria de pessoas, ficam camuflados”, sentencia.
E também é por isso que Ana Claudia Santos-Cortez se sente desiludida: “Sinto que vivemos num sufoco e que não é possível ver as nossas carreiras e salários progredirem, para termos uma vida melhor e mais desafogada, sem que o Estado não venha tirar uma fatia de valor demasiado grande (ao nosso bolso e ao das empresas) para o retorno que vemos depois nas medidas de educação, habitação e saúde”.
“Sinto que em Portugal há a ideia de que um salário acima dos 1.500 euros brutos é sinónimo de riqueza abundante e que somos muito limitados a ver para além disso. Sinto que, com 31 anos e um filho de 20 meses, tenho pouca segurança e motivação para contribuir mais para o aumento da natalidade, o que é particularmente grave numa altura em que se fala tanto de natalidade e da sustentabilidade do Estado Social, e em vez de ficar feliz por ver o meu salário progredir ao longo dos anos vejo-me a fazer contas para perceber a partir de que valor vou entrar no prejuízo”, argumenta.
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