Adiamento do fim do mercado regulado implica mudanças na lei
Fim do mercado regulado do gás e da luz estava previsto para final de 2025, mas será adiado. Sociedades de advogados assumem que terão ser feitas alterações à lei. Ministério está a trabalhar o tema.
O mercado regulado do gás e da eletricidade devem continuar ativos até ao final de 2026, de acordo com a indicação dada pela ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, no final de dezembro. O objetivo deste prolongamento, explicou na altura a ministra, é que este tempo seja utilizado para avaliar qual o passo seguinte, tendo em conta a orientação já avançada pela Comissão Europeia de que é importante haver preços da eletricidade acessíveis ao nível do bloco europeu.
A Autoridade da Concorrência (AdC) tem destacado a relevância de concluir os processos de extinção das tarifas transitórias de venda de gás e de eletricidade a consumidores finais, sendo que esses processos tiveram início há mais de 13 anos, salientou o regulador. Tanto no mercado de eletricidade como no mercado do gás, o fim das tarifas reguladas está previsto para 31 de dezembro de 2025 na legislação nacional, “pelo que a prorrogação dos referidos regimes obrigará, naturalmente, à alteração dos respetivos regimes legais, por iniciativa governamental”, escreve a sociedade Macedo Vitorino, em resposta ao ECO/Capital Verde.
No mesmo sentido, Filipe de Vasconcelos Fernandes, counsel na sociedade Vieira de Almeida e professor na Faculdade de Direito de Lisboa, antecipa que exista a necessidade e uma alteração à lei aplicável, para assegurar a plena conformidade da medida. No caso da eletricidade, assinala, há referência expressa ao término do mercado regulado de eletricidade em 2025 em decreto-lei (15/2022, de 14 de janeiro). No caso do gás, uma data equivalente está fixada em portaria. Em adição, no plano regulatório, o advogado da Vieira de Almeida entende que será necessária uma justificação por parte da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) para a prorrogação dos respetivos mercados.
Contudo, “no quadro normativo vigente, não existem constrangimentos inultrapassáveis que imponham uma data limite para a extinção das tarifas transitórias ou reguladas. Existem recomendações da Comissão Europeia e Pareceres da AdC que incentivam a transição para o mercado livre. Estes são, porém, meramente recomendativos”, entende Beatriz Navarro, advogada associada no Departamento de Concorrência e União Europeia da SRS Legal. Contactado, o ministério do Ambiente confirmou que está a trabalhar numa alteração legal de forma a avançar com esta iniciativa.
Do “caráter recomendativo” à sanção
Esta não é uma questão unicamente do direito nacional, já que o prolongamento do mercado regulado está subordinado às normas e diretrizes europeias. “Convirá ainda não ignorar o relevo do Direito Europeu (em especial, as Diretivas aplicáveis a cada um dos setores), dado que as figuras dos mercados regulados são perspetivadas (em especial) pela Comissão como realidades eminentemente excecionais”, afirma Filipe de Vasconcelos Fernandes. O regulamento da União Europeia (UE) sobre o mercado interno da eletricidade (Regulamento 2019/943) incentiva a eliminação das tarifas reguladas, atribuindo o direito a tarifas reguladas exclusivamente a consumidores vulneráveis ou economicamente desfavorecidos, desde que seja uma medida proporcional e limitada no tempo, assinala a sociedade Macedo Vitorino.
No que diz respeito ao gás, a diretiva que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás na UE (Diretiva 2024/1788) autoriza os Estados membros a estabelecerem tarifas reguladas para consumidores finais, particularmente consumidores vulneráveis, em casos devidamente justificados, especialmente em momentos de crise energética ou flutuações extremas nos preços, também com duração limitada no tempo.
“O prolongamento das tarifas reguladas no mercado de eletricidade e de gás pelo Governo português deve atender a estes critérios [de necessidade, proporcionalidade e temporalidade], e não limitar-se apenas a prolongar o seu prazo, sob pena de violação da legislação comunitária e do princípio de mercado livre da União Europeia”, afere, por sua vez, a sociedade Macedo Vitorino. Na opinião dos advogados desta sociedade, a Comissão Europeia pode iniciar um processo por violação das regras da concorrência ou do mercado interno, resultando em sanções e multas, caso o Estado Português não cumpra decisões da Comissão Europeia quanto a este assunto e o Tribunal de Justiça da EU confirmar o respetivo incumprimento.
Neste sentido, esta sociedade considera “recomendável” restringir o mercado regulado apenas a consumidores vulneráveis e implementar medidas de transição que incentivem a mudança para o mercado livre, nomeadamente através de medidas de apoio social ou benefícios fiscais aos consumidores.
Regulado prejudica concorrência. Mas o gás é caso especial
Desde o primeiro trimestre de 2022 que os preços no mercado regulado do gás em Portugal se têm mantido inferiores aos do mercado liberalizado, beneficiando os consumidores a curto prazo. Uma situação “significativamente distinta” da do setor elétrico, assinala a AdC. No caso da eletricidade, no quarto trimestre de 2024, a poupança para um cliente do mercado liberalizado podia ser, anualmente, de 8% a 10%.
“De um modo geral, a AdC tem defendido a adoção, pelo Governo e pela ERSE, de medidas que visem a consolidação do processo de liberalização nos mercados retalhistas da energia elétrica e do gás, em particular criando incentivos à transição dos consumidores do mercado regulado para o mercado liberalizado”, afirma a entidade, argumentando que, desta forma, poderá ser promovida a concorrência nos mesmos “em benefício dos consumidores”, no que diz respeito ao preço mas também da qualidade do serviço e da inovação. Outras das consequências apontadas pela AdC é que a manutenção do mercado regulado pode levar à saída de comercializadores do mercado livre e à diminuição dos incentivos dos agentes económicos em entrar neste mesmo mercado.
“Essa perspetiva da AdC sobre as tarifas transitórias tem sido acompanhada pela International Energy Agency (IEA), que, na análise que realizou à política energética nacional em 2021, considerou que as tarifas transitórias devem ser gradualmente abolidas, por prejudicarem a concorrência“, afirma ainda a entidade responsável pela Concorrência.
“O prolongamento dos mercados de eletricidade pode ter um impacto no mercado, por reduzir o incentivo à entrada de novos operadores e à subsistência dos que já nele operam, uma vez que a concorrência direta com preços regulados pode ser economicamente inviável”, alerta ainda a sociedade Macedo Vitorino. Em adição, continua a sociedade, as tarifas reguladas podem não refletir os custos reais de mercado (já que o comercializador de último recurso é financiado por todos os clientes de eletricidade através da tarifa de acesso à rede), o que pode criar uma vantagem indevida para o operador que atua no mercado regulado.
A SRS Legal ressalva que a guerra na Ucrânia causou uma redução sem precedentes no fornecimento de gás natural da Rússia aos Estados-Membros, colocando em risco a segurança do aprovisionamento energético da União e dos seus Estados-Membros, o que fundamenta a decisão de prorrogar o regime regulado. “Este cenário de prorrogação também oferece ao Estado uma oportunidade de ajuste, priorizando a estabilidade social e energética a curto prazo, enquanto se prepara para a liberalização plena”, escreve Beatriz Navarro. “A estabilidade de preços proporcionada pode criar um ambiente mais favorável à transição gradual para um mercado liberalizado, atenuando os impactos negativos da transição não só para os consumidores, como também para os operadores”, conclui a advogada associada no Departamento de Concorrência e União Europeia.
Neste capítulo, a AdC reconhece a “ausência de poupança dos consumidores” no caso da mudança para o mercado livre. Logo, e “sem prejuízo de concordar com as medidas de atenuação do ónus para os consumidores enquanto persistir a conjuntura económica e internacional”, a AdC realça “a importância de equacionar medidas alternativas que permitam uma proteção eficaz dos consumidores e, simultaneamente, a concretização plena do processo de liberalização“.
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