“Quem sai do país devia ter propinas mais altas do que quem fica”

Daniel Traça é claro: medidas como o IRS Jovem e a devolução das propinas não travam a saída dos qualificados. Defende que, para o fazer, é preciso "resolver os problemas da economia".

Daniel Traça defende que é preciso convencer os jovens qualificados a ficarem em Portugal e considera que medidas como o IRS Jovem e a devolução das propinas não cumprem, por si só, esse objetivo. Em vez disso, é preciso “resolver os problemas da economia”, isto é, apostar no crescimento das empresas, na internacionalização, na inovação e na qualidade da gestão, enumera o ex-diretor da Nova SBE e atual diretor-geral da espanhola ESADE, em entrevista ao ECO.

Ainda com a saída dos jovens como pano de fundo, o professor — que lançou recentemente o livro “Ambição. Preparar Portugal para a geração mais bem preparada” — questiona: “Se as pessoas estão a sair, então vale a pena investir tanto e serem os contribuintes portugueses — alguns em situação difícil — a pagar essa educação na qual os jovens pegam e vão para fora?“. Sugere, por isso, que as propinas cobradas pelas universidades portuguesas deveriam ser mais elevadas, sendo que, depois, os diplomados que ficassem no país “poderiam ser ressarcidos”.

Esta é uma de duas partes da entrevista de Daniel Traça ao ECO. Na outra (que pode ler aqui), debruça-se sobre a falta de ambição em Portugal (na política, no Estado e nas empresas), sobre os impostos e sobre o fraco funcionamento do Estado, apesar de as qualificações dos trabalhadores do setor público ter aumentado.

“Ambição. Preparar Portugal para a geração mais bem preparada”. É este o título do seu novo livro. O governador do Banco de Portugal defende que Portugal está a conseguir ser um recetor líquido de diplomados e diz que há “números enganadores” no que toca à emigração jovem. Afinal, estamos ou não a conseguir reter os jovens que saem das nossas universidades?

A resposta a essa pergunta tem uma dificuldade: há poucos dados com o nível de rigor necessário. A segunda dificuldade é que as duas coisas são verdade. Temos um movimento grande de saída de talento português. Por outro lado, temos um influxo grande a dois níveis. Alguns dos imigrantes são reformados que se vêm instalar em Portugal, pessoas que vêm ao abrigo dos sistemas fiscais e nómadas digitais, e são muito qualificados. E temos, com aquilo que foi este grande aumento da imigração de pessoas que vieram do Brasil, e às vezes mesmo de outros sítios, pessoas qualificadas que vêm para Portugal trabalhar.

O problema é que, regra geral, acabam a ocupar posições menos qualificadas do que as suas habilitações, até porque há dificuldades no reconhecimento das qualificações.

O ponto é exatamente esse. Os números do Pordata dizem que, se olharmos para o stock de portugueses no estrangeiro com ensino superior completo, passou de 29% em 2014 para 47,6% em 2021. Portanto, esta saída é efetiva. Mas também há uma entrada grande. A questão é que os nómadas digitais e os reformados que vêm para cá residir têm um impacto na economia portuguesa, do ponto de vista da produtividade, que é marginal. Os outros que vêm com cursos completos, alguns têm um impacto já grande na economia portuguesa, porque conseguem trabalhar. Mas muitos acabam a fazer trabalhos que são menos impactantes. Mas certamente que os portugueses que estão a sair são uma perda importante para aquilo que é a potencialidade da economia portuguesa.

É um país que tem criado muito emprego pouco qualificado, ainda que a população esteja cada vez mais qualificada. Devíamos ser os campeões da criação de emprego qualificado e não o somos.

Uma perda problemática ou tendemos a dramatizar a situação desta saída?

Uma perda importante, no sentido em que são muito, muito bons. São talvez o alicerce mais importante para transformar a economia portuguesa. Mais do que debater o tema das pessoas que saem, é interessante debater o porquê e aí vamos parar à economia portuguesa, aos seus problemas estruturais e à necessidade de ambição, que é o título do livro.

Mas independentemente dos portugueses que saíram, a população empregada nacional melhorou mesmo as suas qualificações nas últimas décadas. A economia não deu, contudo, um grande salto. O que falhou?

Portugal é um dos países da Europa com o nível mais elevado de pessoas a fazerem trabalhos que estão abaixo das suas qualificações. É um país que tem criado muito emprego pouco qualificado, ainda que a população esteja cada vez mais qualificada. Devíamos ser os campeões da criação de emprego qualificado e não o somos. Quando vemos a capacidade de transformar mais talento em mais produtividade, estamos na cauda da OCDE.

Daniel Traça, diretor-geral da ESADE, em entrevista ao ECO.Hugo Amaral/ECO

O que é que está a impedir que aproveitemos essa melhoria das qualificações?

O que está a falhar é uma economia que não funciona para absorver o talento. É o diagnóstico simples. Porque é que isto é assim? Há três dimensões importantes. As empresas, o Estado e a economia em geral. Nas empresas, a produtividade é pouca. A dimensão das nossas empresas é demasiado pequena. Portugal é o país da Europa que tem a maior percentagem de emprego em empresas com menos de dez trabalhadores. Depois, temos a internacionalização. Demos um salto grande na internacionalização no período da troika, mas, se virmos a percentagem de empresas que exportam, a seguir esse salto estabilizou. Precisamos que mais empresas exportem. Mas há mudança em Portugal. Muitas das empresas jovens são muito mais internacionais do que eram no passado.

Portanto, afinal, até há sinais positivos, no capítulo da internacionalização.

A economia portuguesa está a melhorar. A questão é se está a melhorar à velocidade necessária para recuperar o tempo perdido relativamente àqueles que são os seus competidores europeus. Temos também a questão do investimento, que é um desafio grande. E temos a questão da qualidade da gestão. Nos rankings internacionais, não estamos bem. Temos todos estes gestores a serem formados, mas a profissionalização da gestão não está a acompanhar o talento que está a sair das universidades.

Sente que este fosso entre o talento que está a sair das universidades e os gestores que estão no terreno está também a contribuir para a saída dos mais jovens, por sentirem que não são reconhecidos por esses líderes e por não encontrarem projetos suficientemente interessantes?

Absolutamente. O fator principal da saída destes jovens é os salários serem baixos e, portanto, vão à procura de mais oportunidades, que estão aí. Todas as empresas estrangeiras estão empenhadas em atrair este talento português, que é excelente. Mas, outro dado interessante é que, quando se pergunta aos jovens o que faziam antes de saírem, dizem que tinham empregos abaixo das suas qualificações, e passaram a ter empregos mais relacionados com as suas qualificações. Aliás, no prólogo do livro, tenho uma jovem portuguesa, que saiu e diz que, quando estava cá, o que lhe diziam era para fazer o que o chefe lhe dizia, e que lá fora se sente muito mais empoderada, com muito espaço para crescer e com espaço para criar. Há aqui uma dimensão cultural que é importante. Portugal é um país cuja aversão à incerteza e falta de foco no longo prazo está no topo dos países da União Europeia. Isto ainda se torna mais difícil, porque, como há pouco crescimento, não há muitos lugares na gestão.

E há uma eternização dos mesmos gestores?

O que se vê é que as pessoas estão a ficar muito mais tempo nos seus lugares e a idade média dos gestores de topo está a aumentar bastante. Os jovens portugueses dizem: então, vou para estas empresas e tenho estas pessoas que são de outra geração e que estão a ficar cada vez mais tempo? É mais uma dimensão que os leva a dizer que mais vale ir em busca de uma oportunidade fora.

Se as pessoas estão a sair, então vale a pena investir tanto e serem os contribuintes portugueses – alguns em situação difícil – a pagar essa educação na qual os jovens pegam e vão para fora? Ninguém vai ficar cá pela devolução das propinas.

Tendo em conta todas estas dimensões, medidas como o IRS Jovem, o Regressar e a devolução das propinas têm algum sentido e efeito na retenção do talento português?

A devolução das propinas parece-me uma coisa marginal, mas traz um tema interessante: se as pessoas estão a sair, então vale a pena investir tanto e serem os contribuintes portugueses – alguns em situação difícil – a pagar essa educação na qual os jovens pegam e vão para fora? Ninguém vai ficar cá pela devolução das propinas.

Valia a pena aumentar as propinas e diminuir o esforço do Estado e dos contribuintes. É isso?

As propinas deviam ser mais altas e, depois, os que ficassem, então, poderiam ser ressarcidos. Quem sai devia ter propinas mais altas do que quem fica. Quanto ao IRS Jovem, acho que todos os jovens devem ser apoiados no início da sua vida e acho que o Estado pode ter uma função importante. Mas, quando olhamos para as diferenças salariais, não me parece que seja isso que vai fazer com que os jovens mudem de ideias.

Daniel Traça, diretor-geral da ESADE, em entrevista ao ECO. Hugo Amaral/ECO

Facilita a vida a quem já ia ficar, mas não impede quem ia sair.

Exatamente. Mas acho que, no fundo, temos de resolver os problemas da economia. Temos de pôr a economia a crescer. Acho que é fundamental fazer com que as empresas se juntem mais, adquiram mais escala, se fundam umas com as outras, façam projetos em conjunto para conseguir, através dessa escala, fazer a tal melhoria na qualidade da gestão e começar a exportar. Essa consolidação do tecido empresarial é um primeiro passo para se conseguir resolver os problemas do investimento, da inovação, da internacionalização e da qualidade da gestão.

Esteve vários anos na liderança da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Agora, lidera uma escola de negócios em Espanha, a ESADE. Na formação, temos a aprender com Espanha ou somos competitivos?

Somos perfeitamente competitivos. É preciso continuar a investir nas universidades. Não acho que estejamos atrás de Espanha. Estamos muito bem na Europa, mas devemos querer mais.

Fala-se na necessidade de as empresas se internacionalizarem. O próprio ensino superior tem passado por esse processo de internacionalização. Mas estamos a conseguir reter os alunos estrangeiros, após a formação? Devíamos ter a ambição de os manter cá, depois do curso, até tendo em conta o envelhecimento demográfico?

Devia ser uma ambição, mas comecemos por manter o nosso. Nem o nosso talento estamos a conseguir reter. É difícil, porque pagamos mal e porque o ambiente nas empresas não lhes dá espaço para crescer.

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