Guerra na Ucrânia mudou a energia na Europa e Portugal leva vantagem

O gás natural foi usado como "arma" entre a Europa e a Rússia desde o início da guerra com a Ucrânia. A UE tornou-se menos dependente, substituiu-o por GNL e acelerou a transição verde.

Com a guerra na Ucrânia, a Europa “acordou de um sono descansado”, quando estava adormecida com a confortável dependência energética da Rússia, ilustra Nuno Ribeiro da Silva, consultor na área da Energia e ex-CEO da Endesa em Portugal.

Desde que a guerra se iniciou, exatamente há três anos, muitas foram as transformações na União Europeia, sendo que algumas das mais notórias deram-se no panorama energético. As “batalhas” também se travaram no fornecimento de gás natural, o que resultou numa forte redução das importações da Rússia e uma aposta crescente no gás natural liquefeito de outras origens. Os preços desta matéria-prima dispararam, afetando com gravidade cidadãos e empresas.

Este contexto levou também a União Europeia a reforçar a aposta nos seus recursos, procurando aumentar a independência energética, o que resultou numa das transformações mais positivas: criaram-se incentivos à instalação de energias renováveis e, de facto, a energia solar e eólica impuseram-se ao ponto de ultrapassarem os combustíveis fósseis na geração de eletricidade a nível europeu.

Embora a direção esteja definida e o caminho esteja a ser feito, persistem vários desafios à transição verde, entrelaçados com um contexto económico turbulento para a Europa. Contudo, Portugal é um dos países mais bem posicionados para tirar partido deste novo panorama energético que se vive e constrói no Velho Continente, afirmam os especialistas consultados pelo ECO/Capital Verde.

Gás natural é o protagonista da trama

As mudanças mais significativas no panorama energético europeu estão relacionadas com o gás natural”, escreve Ben McWilliams, investigador no think tank Bruegel, em declarações ao ECO/Capital Verde. As importações de gás russo “caíram dramaticamente” – de 45% em 2021 para 19% em 2024, de acordo com um discurso recente do comissário europeu da energia, Dan Jorgensen – e a procura por este combustível fóssil também se reduziu, no caso 20%.

Fonte: Eurostat. Autor: Gonçalo Aguiar

Estas mudanças resultaram de o gás natural se ter tornado uma “arma de guerra” utilizada tanto pela Rússia, com ameaças de interrupções ao fornecimento, como pela parte europeia, que impôs várias sanções por esta via “com a intenção de enfraquecer a máquina de guerra russa”, relata o engenheiro eletrotécnico Gonçalo Aguiar.

A responder a este “vazio” criado pela Rússia e pelas sanções, esteve, em grande parte, o gás natural liquefeito, diz António Delgado Rigal, CEO da AleaSoft Energy Forecasting, com os países mais dependentes do gás natural russo a construir novos terminais para receber o GNL. Nuno Ribeiro da Silva recorda: “há três anos, na Alemanha, não havia um terminal de gás”. No entanto, a importação de gás natural liquefeito por via marítima cresceu mais de 35% em 2024, face à média anual de 2018 a 2021, aponta Gonçalo Aguiar, sendo que os Estados Unidos mais do que triplicaram as exportações para a Europa no mesmo período. Igualmente, a Rússia registou um aumento de 73% de exportações para a Europa via navio metaneiro, completa.

Fonte: Eurostat. Autor: Gonçalo Aguiar

Este disparo repentino na procura europeia por GNL intensificou a competição a nível mundial, subindo os preços e criando mercados pressionados, especialmente nos dois anos seguintes ao conflito”, explica o presidente da AleaSoft. Em paralelo, houve uma aposta reforçada no armazenamento, introduzindo-se diretivas que impõem níveis de preenchimento das reservas de gás.

Mas não é só neste combustível fóssil que se notam diferenças. No mesmo período, a UE deixou de importar carvão da Rússia, e as importações de petróleo com esta origem caíram de 26% para 3%, registava Jorgensen numa conferência organizada pelo Financial Times, no início do mês. No petróleo, os substitutos foram encontrados numa amostra mais larga de países, regista o Bruegel.

“Num mundo perfeito a lógica seria, em termos de racional económico, continuarmos a poder importar petróleo, gás natural e carvão, da Rússia, porque é mais barato”, defende Nuno Ribeiro da Silva, para depois ressalvar: “mas o mundo não é perfeito” e “quando aparecem ditadores e crápulas como o líder russo, percebemos que não podemos estar vulneráveis numa questão crucial como o abastecimento de energia”.

Preços foram a maior “machadada”

Fonte: Investing.com. Autor: Gonçalo Aguiar

A maior perda relacionada com energia na Europa foi o aumento dos preços”, considera o investigador no think tank Bruegel, Ben McWilliams. A crise energética de 2021-2022, inicialmente causada por dificuldades nas cadeias de abastecimento decorrentes da pandemia e pela transição energética, e em 2022 pela redução do fornecimento de gás russo devido à guerra na Ucrânia, impulsionou significativamente os preços, recorda Paulo Rosa. Chegaram a observar-se preços superiores a 300 euros por megawatt-hora (MWh) no final de agosto de 2022, cerca de 15 vezes superiores à média de 2018 e 2019, assinala o engenheiro eletrotécnico Gonçalo Aguiar. “A situação melhorou no final de 2022 e no decorrer de 2023, no entanto sem nunca descer abaixo dos níveis pré-covid”, indica o mesmo.

Mas a mossa não se sentiu apenas no gás, já que os preços da eletricidade no mercado grossista (o preço das vendas dos produtores aos comercializadores) é influenciado pelo preço daquela matéria-prima energética. Os Estados membros da UE implementaram medidas de apoio aos consumidores para reduzir o impacto dos preços elevados e acordaram uma reforma do desenho o mercado de eletricidade, que entrou em vigor em meados de 2024. No entanto, a adoção desta diretiva tem tardado ao nível dos Estados membros, relata Gonçalo Aguiar.

O Bruegel assinala que hoje os preços mantêm-se duas a três vezes superiores ao que se registava antes da Rússia invadir a Ucrânia: “Isto cria problemas para as indústrias consumidoras de energia e para os consumidores domésticos que querem aquecer as suas casas nos meses de inverno”. No final de contas, estes efeitos acabam por abalar a economia europeia abrindo as portas à inflação na Europa e à diminuição do poder de compra das famílias, completa Paulo Rosa.

A nossa competitividade depende de voltarmos a preços da energia baixos e estáveis”, afirmou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no passado mês de janeiro, na cidade suíça de Davos, onde decorria o encontro anual do Fórum Económico Mundial. Na ótica do presidente da AleaSoft, a posição da Europa é hoje mais estável que no início da crise, “mas os riscos de fornecimento persistem, em particular se os mercados de GNL globais apertarem ou se se sentirem mais choques geopolíticos”.

Para Pedro Amaral Jorge, a solução para os preços baixos na eletricidade passa por os consumidores domésticos e industriais contratarem mais a longo-prazo, e fomentar-se uma agregação da procura nestes dois segmentos.

O empurrão para a transição

“A crise energética de 2022 sublinhou a urgência, de uma perspetiva de segurança de fornecimento, de a Europa acelerar a transição para longe dos combustíveis fósseis importados”, o que já estava em linha com a estratégia do Velho Continente, entende McWilliams. “Se antes [a transição] era importante, agora é urgente”, remata Ribeiro da Silva.

De acordo com o comissário Jorgensen, a percentagem de renováveis no mix de eletricidade aumentou de 36% em 2021 para 46% em 2024, impulsionada sobretudo pelas tecnologias eólica e solar. E foi no primeiro semestre do ano passado que estas duas tecnologias, unidas, destronaram a geração de energia a partir de combustíveis fósseis. A capacidade solar na Europa subiu em 82 % desde o final de 2021 até ao final de 2024 e a energia eólica instalada aumentou em 17% no mesmo período, afirma Gonçalo Aguiar.

Fonte: Entsoe, portal da transparência. Autor: Gonçalo Aguiar

O analista do Bruegel assinala que, apesar da evolução positiva, notou-se algum abrandamento na indústria eólica em 2022 e 2023, por problemas na cadeia de abastecimento, e o mesmo pé no travão foi visível nas vendas de bombas de calor em 2022. “Esta área necessita atenção”, indica.

O caminho, indicou Ursula von der Leyen num discurso em janeiro no Fórum Económico Mundial, é o da diversificação do fornecimento de energia, expansão das fontes limpas de geração de energia e, nalguns países, a aposta no nuclear. Em paralelo, afirmou que teremos de investir em tecnologias de energia limpa da “próxima geração”, como a fusão nuclear ou as baterias.

O papel da energia nuclear também está a ser colocado em discussão”, sublinha Gonçalo Aguiar. Estados como Espanha e França mostraram interesse em abandonar a energia nuclear, e na Alemanha deu-se mesmo o encerramento de todo o parque, embora o partido CDU, que venceu as eleições federais, pretenda reverter a decisão. A Polónia e Chéquia já têm planos para construir novos reatores nos próximos anos, refere Gonçalo Aguiar.

A presidente da Comissão apelou ainda à mobilização de capital privado para modernizar as redes elétricas e o armazenamento, em particular, ao mesmo tempo que defendeu a remoção das barreiras que persistem à União Energética. Para superar os desafios, a UE deve continuar a investir em infraestruturas de energia, promover eficiência energética e apoiar o desenvolvimento de tecnologias renováveis, acrescenta Paulo Rosa. Preços de eletricidade voláteis, especialmente a curto prazo, poderão ser vistos como uma oportunidade para instalações de armazenamento de energia e em eficiência energética, acrescenta Gonçalo Aguiar.

“O desafio é assegurar que, enquanto a procura por gás desaparece, os investimentos verdes têm um business case viável na Europa”, conclui McWilliams. Neste sentido, entende que os governos têm um papel em dar estabilidade de longo-prazo para que a indústria invista em cadeias de valor de produtos verdes.

“Temos de fazer alterações rapidamente para capturar investimento em renováveis e criar um ciclo económico positivo, para em sete a oito anos sairmos deste enclave em que nem a economia cresce nem os preços baixos”, defende Pedro Amaral Jorge, acrescentando que para isto há que reforçar a articulação do mercado europeu e acelerar o licenciamento dos projetos.

João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia, acrescenta que, por cá, o Governo deve esforçar-se por não enviar “sinais equívocos” aos investidores, como recuar na decisão de leilões, referindo-se ao caso do projeto de solar flutuante da Finerge que foi aprovado e posteriormente chumbado.

“Com o tempo, uma maior fatia de renováveis vai estabilizar e baixar os custos da energia”, aponta Delgado Rigal. Além disso, completa Pedro Amaral Jorge, “as renováveis são o único sistema energético que nos vai permitir assegurar a soberania no espaço europeu”, uma necessidade que surge com a guerra na Ucrânia mas é agora exacerbada com a nova presidência norte-americana. Com o “abanão” da guerra, “estamos mais resilientes em termos de segurança energética europeia do que estávamos até 2022”, assinala Nuno Ribeiro da Silva, mas falta “a Comissão Europeia ganhar força para implementar as medidas que vão sendo aprovadas. Os Estados membros têm de ser mais coerentes e mais cúmplices e comprometidos na implementação”. Um exemplo é que continuam a haver imensas dificuldades em ultrapassar a situação de ilha energética da Península Ibérica. Tem de haver maior proatividade por parte de França, diz .

Portugal entre os “vencedores”

Parece-me claro que, neste momento, os países europeus com maior vantagem competitiva são os nórdicos e os do sul, Portugal e Espanha”, analisa o ex-secretário de Estado da Energia, João Galamba. “Nós [Portugal] sofremos menos e nesse sentido podemos ter uma vantagem relativa”, reforça Nuno Ribeiro da Silva. As vantagens decorrem não só da não dependência do gás por gasoduto, que obrigava a Península Ibérica a já estar bem apetrechada de terminais de GNL, como também da penetração elevada de renováveis, que a Europa agora quer estimular ainda mais.

Para o ex-secretário de Estado da Energia, no novo contexto energético, “Portugal e Espanha só têm a ganhar, têm futuro, enquanto o centro da Europa está a lidar com as consequências do desaparecimento do seu presente”. Os países com condições para terem preços da eletricidade mais baixos, devido à abundância de recursos renováveis, terão a tendência a captar indústria do centro da Europa, e “esta realidade já se observa nos dados da produção industrial, em que Espanha e Portugal aparecem entre o grupo de países que mais cresceu entre 2023 e 2024 neste aspeto, ao contrário de outros países mais expostos aos aumentos do preço do gás”, assinala Gonçalo Aguiar.

Variação do Índice de produção industrial entre Outubro de 2023 e 2024 na U.E. (Fonte: Eurostat; autor Gonçalo Aguiar)

Os países do leste europeu, como a Bulgária, Áustria, Chéquia, Eslováquia e Alemanha, estavam mais acomodados ao fornecimento russo, pelo que são mais abalados pelo choque da guerra. A Alemanha “está muito mais numa posição de minimizar perdas do que capitalizar ganhos”, entende Galamba. No caso do motor económico da Europa, o líder da União Democrática Cristã na Alemanha, Friedrich Merz, sumariza a situação com a seguinte frase, numa entrevista recente à The Economist: “o modelo de negócio da Alemanha acabou”. Nuno Ribeiro da Silva nota que um dos pilares que a sustentava, a energia barata da Rússia, contribui para isso mesmo.

Neste aspeto, nem tudo são boas notícias para Portugal. “Cada estado membro estará tanto melhor quanto melhor estiver o conjunto da Zona Euro. A saúde da economia alemã não pode ser desvalorizada”, releva João Galamba, apontando uma expectável redistribuição de riqueza na União Europeia. “Esperamos que a transição seja feita com o menor nível de perturbação possível em países como a Alemanha”, conclui.

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