Apagão ibérico relança debate sobre ‘corredor elétrico’ na Europa

Especialistas consideram que o dia 28 de abril, quando Portugal e Espanha ficaram às escuras, pode dar ímpeto ao antigo apelo às interligações, mas depende da "vontade de Bruxelas de agir".

O apagão histórico que deixou Portugal e Espanha às escuras esta segunda-feira não só expôs as fragilidades do sistema elétrico como levantou questões sobre a autonomia das redes de eletricidade na Europa. O facto de a Península Ibérica funcionar como uma ‘ilha energética’ dentro da Europa tem sido questionado há mais de uma década – sem desenvolvimentos – e as opiniões continuam divididas sobre as vantagens de incluir mais países neste bloco de energia.

Miguel Moreira da Silva, antigo coordenador de gestão de ativos na REN e managing partner da consultora Wiimer, afirma que esta situação traz de volta o debate público sobre o reforço das interligações energéticas, mas alerta que as falhas ocorreriam mesmo se Portugal estivesse interligado a mais países.

“Não haja equívocos. Mesmo que a interligação entre Espanha e França estivesse em linha com a meta de 2030 (15% de capacidade de interligação), provavelmente esse corredor elétrico não seria suficiente para auxiliar a abrupta descida de produção em Espanha. O sistema espanhol perdeu cerca de metade da sua ponta máxima. Se estivessem disponíveis os 5GW -atualmente apenas estão disponíveis 2,8GW – de interligação nos Pirinéus, estaríamos muito distantes do colapso de 15GW”, explica Miguel Moreira da Silva ao ECO.

Enquanto Espanha tem algumas ligações com França, Portugal está exclusivamente conectado a nuestros hermanos, embora ambos estejam a tentar alterar esta situação e aumentar as interligações, pelo menos desde 2015, durante o Governo de Pedro Passos Coelho. Desde então, poucos avanços foram feitos nesse sentido.

Para o académico João Pedro Pereira, professor da Nova SBE, “seria bom haver mais linhas de transmissão elétrica” entre Espanha e França, desde que os custos fossem devidamente contabilizados. “Atualmente há cinco, de acordo com o mapa abaixo, mas é difícil – leia-se muito caro – construir mais linhas. É preciso analisar os benefícios de mais integração, quer ao nível dos preços da eletricidade no dia a dia, quer ao nível da segurança adicional contra eventos como o de segunda-feira”, sublinha o especialista em finanças energéticas, precificação de ativos e risco de crédito.

A Turbogás, concessionária da central da Tapada do Outeiro, declara que é “imperativo” avançar com mais investimentos em infraestruturas, incluindo novas interligações com o resto da Europa, apesar de a conexão ibérica permitir “manifestas vantagens económicas” para os consumidores ao dar acesso a energia mais barata em determinadas horas do dia.

“Contudo, a transição energética – marcada pela crescente incorporação de fontes renováveis – traz novos desafios à estabilidade e fiabilidade do sistema, exigindo decisões assentes em análises técnicas rigorosas e não em discursos simplistas ou apenas generalistas. A construção de uma Europa energética mais integrada deve ser feita de forma gradual, segura e tecnicamente sustentada”, esclarece fonte oficial da Turbogás, em declarações ao ECO.

Para acabar com esta ‘ilha energética’ luso-espanhola, a empresa de Gondomar diz que é preciso investir em infraestruturas de interligação além de França.

Na mesma linha de pensamento, a advogada Margarida Ramires Ramos, que foi adjunta do secretário de Estado da Energia e do ministro do Planeamento e das Infraestruturas no XXI Governo Constitucional, considera que “Portugal tem de estar ligado a Espanha e ao resto do continente europeu”. Contudo, essa ligação “depende da vontade política da Comissão Europeia em agir”.

A consorciada da Legal Joint Venture acredita que o dia 28 de abril de 2025 “poderá contribuir” para que os esforços dos últimos anos “sejam alcançados”, referindo-se à declaração conjunta de 2015, ao Grupo de Alto Nível criado por Bruxelas em junho desse ano após a cimeira de Madrid, em março, e ao memorando de entendimento de dezembro de 2023, no qual o grupo se comprometeu a cooperar em projetos estratégicos, entre os quais as interconexões transfronteiriças na eletricidade. “Diga-se que a ligação a Espanha também e benéfica para os consumidores, uma vez que permite comprar energia a um preço mais atrativo, uma vez que Espanha tem excesso de produção de energia de fonte solar”, ressalva Margarida Ramires Ramos, defensora da independência energética da Europa.

Ivone Rocha, fundadora da EFELA – European Federation of Energy Law Association e membro da direção da APDEN – Associação Portuguesa de Direito de Energia, diz que o apagão “é mais uma demonstração” da necessidade de fortalecer a ligação energética entre a Península Ibéria e o resto da Europa e defende a sinergia ibérica.

“Ao contrário do que tenho ouvido, é essencial a Portugal estar ligado a Espanha. Ainda bem que temos um mercado ibérico de energia, essencial a uma boa formulação de preços, bem como à própria segurança de abastecimento”, argumenta a sócia da Telles. “A questão está na pressão colocada na gestão da rede e no seu reforço, sobretudo na ligação da Península Ibérica com o resto da Europa. Ainda não temos dados concretos e conclusões concretas sobre o que se passou, mas tudo indica para uma oscilação súbita nos fluxos de potência, que provocou o isolamento da rede ibérica”, acrescenta Ivone Rocha.

Corredor elétrico, a “importante batalha” de Passos Coelho

A advogada especializada em energia reconhece que a interligação foi uma “importante batalha do XIX Governo” em conjunto com o Executivo de Espanha, embora admita que “os avanços estão abaixo do esperado”. “Impõe-se retomar e implementar, mas também se impõe olhar para a gestão de redes e de sistemas, com implementação de sistemas de backup, com por exemplo uso de baterias”, apela.

Já Miguel Moreira da Silva considera fundamental reforçar o investimento nas redes, na garantia de inércia mínima, na partilha de informação e no desenvolvimento de sistemas autónomos de gestão de incidentes através de Inteligência Artificial (IA) capaz de prever, detetar e atuar perante anomalias. “Será necessário investir em dispositivos para apoio à estabilidade das redes, como baterias, controlo de tensão, previsão de energia solar, gestão do risco, regras entre agentes do sistema e modelos para planeamento e operação do sistema elétrico utilizando IA”, defende.

Montenegro preocupado com dependência espanhola

Quando falou ao país, o primeiro-ministro alertou para a dependência de Portugal em relação a Espanha e garantiu que o país tem lutado, no contexto da União Europeia, pelo “reforço das interligações na Europa de forma a ter mais autonomia para receber e vender energia”.

“Ao contrário de Espanha, que teve a ajuda das outras ligações que tem, nomeadamente com França e Marrocos, nós estamos dependentes numa situação de constrangimentos da ligação que temos a Espanha. É verdade que a circunstância de Espanha ter, nomeadamente com a Europa, limitações de interligação também afeta a capacidade de fornecimento de Portugal”, referiu Luís Montenegro.

No momento da falha, o sistema elétrico nacional estava a importar eletricidade de Espanha. Trata-se de um procedimento comum – e que, segundo administrador da REN, “tem sido normal nestes últimos dias” – para utilizar energia mais barata produzida em Espanha, uma vez que há uma elevada penetração de centrais solares do outro lado da fronteira. Luís Montenegro desvalorizou o facto de estar a ocorrer importação de energia aquando do apagão, até porque teria ocorrido na mesma, diz.

“É verdade que, por razões financeiras, estávamos a importar energia de Espanha, porque estava a um preço mais competitivo, mas mesmo que assim não fosse, fruto dessa ligação, o apagão em Espanha teria provocado o mesmo apagão em Portugal”, defendeu o primeiro-ministro.

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