“Hoje já ninguém tem coragem de ser contra o aumento do salário mínimo”

Ex-ministra do Trabalho apela a aumentos permanentes dos salários, criticando "rotina" de atribuição de prémios. Atira que 2024 foi "um ano perdido" na valorização dos ordenados e do trabalho.

Quando António Costa chegou pela primeira vez à liderança do Governo, em 2015, a resistência à subida do salário mínimo era significativa, com múltiplas vozes a avisar para eventuais aumentos do desemprego. Dez anos depois, o cenário é o inverso. “Já ninguém tem coragem de ser contra o aumento do salário mínimo“, sublinha Ana Mendes Godinho, ex-ministra do Trabalho, em entrevista ao ECO.

No momento em que se assinalam os dois anos da Agenda do Trabalho Digno — pacote de alterações à lei do trabalho promovido pelo Governo anterior –, a ex-governante destaca como principais vitórias o recuo da precariedade e a criminalização do trabalho não declarado, que permitiu que milhares de “mulheres invisíveis” tenham entrado no sistema de proteção social.

Esta é uma de duas partes da entrevista de Ana Mendes Godinho ao ECO. Na outra parte (que pode ler aqui), reflete sobre o polémico travão ao outsourcing após despedimentos coletivos, sobre o trabalho nas plataformas digitais e ainda sobre a intenção do Executivo de Luís Montenegro de “revisitar” algumas das medidas da Agenda do Trabalho Digno.

A Agenda de Trabalho de Digno passou a permitir o cruzamento de dados entre a Segurança Social, a ACT e a Autoridade Tributária. Em resultado, em 2024, conseguimos ter a taxa de precariedade mais baixa de sempre. Não houve mais nenhuma ação de cruzamento de dados. É grave.

No início deste mês foram assinalados os dois anos da Agenda do Trabalho Digno, um pacote com dezenas de mudanças à lei laboral. Dois anos depois, qual elege como a maior vitória nesta revisão da lei do trabalho?

Há duas vitórias. Primeiro, o combate à precariedade. A Agenda de Trabalho Digno é um marco decisivo, que mostra que, com foco, conseguimos resultados. Um exemplo concreto: a Agenda de Trabalho de Digno passou a permitir o cruzamento de dados entre a Segurança Social, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e a Autoridade Tributária. Em resultado, em 2024, conseguimos ter a taxa de precariedade mais baixa de sempre. Houve também uma mudança de mentalidade. A partir do momento em que é possível cruzar dados, a mentalidade de todos muda, porque passa a ser detetável. Um contrato a termo que tenha mais do que o prazo legal previsto passa a ser facilmente detetável. É fundamental que isto não volte atrás. No último ano, não houve, contudo, mais nenhuma ação de cruzamento de dados, o que é grave.

E a segunda vitória?

A entrada na economia formal de muitas — e digo muitas, porque a maioria são mesmo mulheres — trabalhadoras do serviço doméstico. Muitas mulheres que foram invisíveis durante décadas passaram a fazer parte do sistema de proteção social, em resultado da criminalização do trabalho totalmente não declarado. No fundo, é a sociedade dizer que não aceita que haja pessoas que trabalham e que estejam completamente fora do sistema. Passámos de cerca de 70 mil trabalhadores do serviço doméstico registados na Segurança Social para cerca de 225 mil. Não podemos deixar que a Agenda do Trabalho Digno volte para trás, nem podemos deixar que agendas ultraliberais ponham em causa as conquistas da Agenda e dos trabalhadores.

Vamos ao reverso da moeda. Dois anos depois, o que é que correu menos bem ou ficou por fazer?

Há matérias que não foram ainda reguladas no âmbito da Agenda do Trabalho Digno e tenho muita pena que não tenham sido. Tinham prazos, aliás, para ser reguladas e durante este ano não foram. Houve algum abandono na regulação da Agenda do Trabalho Digno. Perdemos tempo neste último ano porque estas medidas não foram implementadas, nomeadamente quanto à abrangência, por exemplo, dos trabalhadores independentes por parte das regras da contração coletiva.

Neste momento em que fazemos o balanço da Agenda do Trabalho Digno, queria lembrar-lhe que as confederações empresariais suspenderam, no final de 2021, a sua participação na Concertação Social, por não terem sido ouvidas relativamente a algumas mexidas que viriam a ser feitas na lei do trabalho. O Governo de que fez parte errou na relação com os parceiros sociais?

Tenho muito orgulho de termos conseguido, durante o Governo de que fiz parte, o primeiro acordo de Concertação Social a médio prazo para a valorização dos rendimentos e dos jovens no mercado de trabalho. Deixámos uma semente extraordinária, do ponto de vista de criarmos pontes. No fundo, reconhecendo todos que a valorização dos salários é um caminho determinante para o crescimento em Portugal. Muito ao contrário da situação que herdámos quando, em 2015, o Governo do Partido Socialista assumiu funções. Na altura, discutia-se o aumento do salário mínimo e a resistência era total até por parte do Governo do PSD. Os processos de negociação têm sempre, naturalmente, vários momentos de negociação e faz parte…

Ana Mendes Godinho, deputada à Assembleia da República e Ex-Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, em entrevista ao ECO Hugo Amaral/ECO

Portanto, a suspensão da participação das confederações não resultou do facto de o Governo de António Costa ter desvalorizado os parceiros sociais?

Acho que fez parte de processos de negociação normais e com resultados históricos.

Frisou a relevância dos acordos de salários celebrados na Concertação Social. Por efeito desses entendimentos, os vencimentos têm subido, mas continuam longe dos melhores registos europeus. Como se resolve?

É evidente que, nos últimos anos, o salto que Portugal deu do ponto de vista de valorização dos salários foi impressionante, até na comparação com o resto do que acontece na Europa. O salário mínimo está em 11.º lugar na tabela comparativa. Durante o governo do Partido Socialista aumentou cerca de 62%. Em 2015, ainda havia muitas vozes que eram contra o aumento do salário mínimo. Essa também é uma conquista social de todos nós: hoje em dia já ninguém tem coragem de ser contra o aumento do salário mínimo. Ao mesmo tempo, o salário médio aumentou cerca de 40%. Se chega? Não chega. Deve ser uma batalha. Por isso, o acordo de Concertação foi mesmo decisivo. Este ano foi um ano perdido, porque não vi nenhuma medida no sentido desta valorização permanente dos salários. Não é só através de prémios, tem de se interiorizar nos salários.

O 15.º mês foi uma má medida?

O que é fundamental é que haja valorização dos salários. Resultou do nosso acordo de Constituição Social de 2023 a isenção de IRS e de Segurança Social quanto à distribuição de lucros, mas não na lógica de isso se transformar numa rotina de forma a que, em vez de haver um aumento estrutural dos salários, se passe a fazer só uma distribuição de prémios e do décimo quinto mês. É decisivo que o aumento se faça nos salários, porque isso é que é estrutural para a nossa carreira contributiva.

Disse que hoje ninguém tem coragem de ser contra o aumento do salário mínimo.

Espero eu.

Mas não há um foco excessivo no aumento do salário mínimo?

Não. O acordo de rendimentos que assinámos em 2022 foi mesmo um compromisso dos parceiros sociais com a valorização dos jovens no mercado de trabalho e a valorização dos salários, em várias dimensões.

Não ouvi uma vez a palavra ‘trabalhadores’ nas poucas intervenções que o Governo fez durante o dia do apagão. O que seria de nós se tivéssemos tido uma pandemia com o Governo da AD a governar?

O próximo Governo deve apostar na estabilidade da lei do trabalho ou em continuar a rever a legislação?

O próximo Governo o que tem que fazer é reforçar a Agenda do Trabalho Digno e continuar este caminho de valorização do trabalho e dos rendimentos do trabalho no âmbito da Concertação Social. Não podemos perder tempo, porque o tempo corre contra todos nós. Já agora, tivemos agora [com o apagão] um pequeno exemplo da diferença de reação de um Governo de direita AD ou de um Governo de um Partido Socialista em momentos críticos.

De que modo?

Não ouvi uma vez a palavra “trabalhadores” nas poucas intervenções que o Governo fez durante o dia. O que seria de nós se tivéssemos tido uma pandemia com o Governo da AD a governar? Baixar os braços ou voltar atrás nos direitos conquistados pelos trabalhadores é uma ameaça séria que, como país, não podemos deixar que aconteça. Com a agenda ultraliberal que tem sido anunciada de reversão, nomeadamente da Agenda do Trabalho Digno, é isso que está em risco.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“Hoje já ninguém tem coragem de ser contra o aumento do salário mínimo”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião