“Se aceitamos partilha de soberania em milhões de coisas, porque é que na eletricidade é tabu?”

O apagão mostra que é preciso mais cooperação entre as gestoras de redes. Não tem de ser uma fusão, mas REN e Red Eléctrica não podem continuar "olimpicamente independentes", diz João Manso Neto.

“Não sei, portanto não me vou pôr a inventar”, diz João Manso Neto, CEO da Greenvolt, sobre as causas do apagão elétrico que abalou a Península Ibérica a 28 de abril. Elogia os operadores de sistema em Portugal e em Espanha, dizendo “foram impecáveis, naquele dia”, mas acrescenta que “o que podemos discutir é se devia ter-se feito antes mais“, respondendo que “tem que se fazer mais, tem que se fazer melhor, preventivamente”.

Parte da lição a retirar é a necessidade de maior cooperação, não necessariamente através de uma fusão, entre a portuguesa REN e a espanhola Red Eléctrica na gestão do sistema, especialmente num quadro de maior produção renovável. “Pode não ser muito politicamente correto, mas tem que ser, tem que se pensar um bocadinho nesta base”, vinca.

A necessidade de maior gestão vem do facto de não haver “dúvida que um sistema que tenha menos inércia, em que, no fundo, variações de frequência são amplificadas, com um sistema em que tenha mais centrais que hoje em dia não se adaptam à frequência, exige meios acrescidos“, adianta.

Manso Neto, que liderou a EDP Renováveis durante vários anos, acredita que as energias ‘limpas’ estão a “ganhar uma maturidade por isso, porque passam a ser vistas e passam elas próprias a sentir-se como uma parte da solução e não como uma emergência de um fenómeno de desejos“. Têm no entanto, de ser baratas, integradas no sistema como um todo e ser aceleradas com menos “bloqueios”, atrasos causados pela burocracia nas autorizações, afirma o gestor, que é um dos nomeados para o prémio de melhor CEO na 37ª edição dos Investor Relations and Governance Awards, uma iniciativa da consultora Deloitte.

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Tem longa experiência de liderança numa área, a da energia renovável, primeiro na EDP e agora na Greenvolt, que tem a evolução e a disrupção no ADN. Como é que a evolução desse setor das renováveis tem ajudado a inspirar a mudança, seja não só na energia, mas também na sociedade?

A transição energética é uma necessidade absoluta que acho que a generalidade das pessoas reconhece. Simplesmente, ela tem de ser feita de uma maneira que não seja meramente um jargão, mas tem que cumprir os critérios de eficiência e também da competitividade. E, portanto, esta diferente mentalidade está a criar que as renováveis elas próprias estão-se a assumir como uma parte da nova figura institucional e, como tal, não pode ser meramente um conjunto de feitos mais ou menos isolados. Tem que fazer parte de um programa consistente. E desse ponto de vista creio que as renováveis cada vez mais estão a ganhar uma maturidade por isso, porque passam a ser vistas e passam elas próprias a sentir-se como uma parte da solução e não como uma emergência de um fenómeno de desejos. Portanto, faz parte de uma estratégia que já começou há algum tempo, está-se cada vez mais a integrar nas políticas de blocos internacionais.

O que é que falta nesta evolução? Estamos em 2025, já temos metas novas sinalizadas por vários blocos há algum tempo. Quais são os próximos passos importantes?

Por um lado temos que resolver os sinais de bloqueio que ainda existem em termos da expansão das renováveis. Diria que é um dos aspetos importantes, que tem a ver com o processo de autorizações. Eu não sou defensor de uma liberalização, não. As coisas têm que ser vistas de uma forma compatível com o ambiente, compatível com a história.

Com as populações?

Com as populações, com tudo isso. Mas temos que eliminar a burocracia. O ‘demora porque demora’, isso tem que ser eliminado, mas no respeito do resto. Como é importante que cada vez mais se meta na cabeça que as renováveis não vivem sozinhas. Hoje em dia já se entende que as baterias são necessárias, mas muita gente já entende, a própria Comissão Europeia, que é necessária uma tecnologia térmica também como parte da geografia, mas é necessário que essa figura esteja consensualizada por todas para que consigamos exigir o que queremos. Porque, uma vez mais, se pomos só objetivos irrealistas ou parciais, não vamos lá. Ou seja, tem-se evoluído, mas não o suficiente no permitting. E, sobretudo, é importante que consolidemos que as renováveis são uma parte da solução, não são a solução toda. E isso acho que é importante que cada vez mais se estabeleça.

Quando se fala em renováveis, não se pode embarcar nunca em situações excessivas de voluntarismo. É uma coisa nova. Adota-se e postura-se depois, não pode ser. As renováveis já são sérias, sempre foram, mas neste momento são institucionalmente sérias, portanto têm que estar envolvidas numa política coerente, que envolva tudo.

João Manso Neto

CEO da Greenvolt

Esse passo de mentalidade já está aí? Vê isso nos governantes? Vê todos os principais governos do mundo a olharem para isso de forma positiva?

Veja o seguinte: nem todos. Eu diria que cada vez mais há um…

Há um grande que não está muito disponível.

Há um grande, agora, desde o momento em que ponhamos as coisas todas juntas e em que daqui sai um sistema mais eficiente e mais barato, as renováveis têm um papel fundamental aí, é uma questão de tempo. É importantíssimo que todos vejamos a situação globalmente. E outro aspeto muito importante é que, quando se fala em renováveis, não se pode embarcar nunca em situações excessivas de voluntarismo. É uma coisa nova. Adota-se e postura-se depois, não pode ser. As renováveis já são sérias, sempre foram, mas neste momento são institucionalmente sérias, portanto têm que estar envolvidas numa política coerente, que envolva tudo. Nem todos os governos têm esta noção, muitos deles ainda continuam a ver as renováveis como uma coisa isolada, como um extra, ou como a solução para tudo, que ambos são errados, quer como extra, quer como uma solução para tudo, somamos erros. Mas diria que é um processo de aprendizagem, se virmos as posições da Comissão Europeia, também tem evoluído, no meu ponto de vista, favoravelmente nesse sentido.

No quadro desse tabuleiro há os governantes, as instituições internacionais, também as empresas e os consumidores. Vê uma crescente disponibilidade ou até exigência para essa evolução que estamos a falar aqui, essa mudança?

Vejo e, sobretudo, sempre e quando sejam baratas e sejam renováveis. Esse aspeto é muito importante. Porque se não forem baratas, não é a mesma coisa. A pessoa tem de sentir um ganho de economia. Portanto, sentir isso, porque as imposições, só imposições, acabam à primeira… ao primeiro revés, por serem combatidas. Portanto, as pessoas têm que ver que isto melhora e, por outro lado, que não traz riscos adicionais ou se os traz estão a ser combatidos, o que se prende, aliás, com algumas interpretações do que aconteceu no dia 28 de abril, e em que facto as pessoas não podem ter dúvidas que os problemas que as renováveis possam trazer estão a ser devidamente solucionados.

Vamos saltar aqui um passo e falar nesse apagão de 28 de abril. Queria aproveitar para perguntar, utilizando outra vez a sua experiência, com a informação que tem, e eu sei que é recente e há análises a serem feitas, qual é que foi a combinação que levou à probabilidade deste incidente?

Eu não lhe posso responder isso porque não sei. Portanto, não me vou pôr a inventar. Agora, não há dúvida que um sistema que tenha menos inércia, em que, no fundo, variações de frequência são amplificadas, com um sistema em que tenha mais centrais que hoje em dia não se adaptam à frequência, exige meios acrescidos. Mais gestão. Mais gestão preventiva, claramente, e mais gestão de tratamento, de criação de figuras que permitam contrabalançar este tipo de unidades. Ou seja, eu não sei qual foi a causa, mas, seja qual for a causa, a existência de um sistema que é diferente obriga a medidas mais profundas. Não quer dizer que não se tenha feito nada. Só para não haver dúvida, claro que se fez, não é? Se não se tivesse feito, também não se conseguiria recuperar o sistema em 11 horas. Mas… apesar de tudo, poderia ou deveria ter sido ainda menos. Quais são essas coisas? Por exemplo, a oferta tem de ser igual à procura, como qualquer mercado, e aqui também. Aqui, ao segundo, ao milésimo segundo. Portanto, cada vez que há uma variação de frequência, a maior parte das centrais solares desligam. Portanto, é necessário que as centrais, pelo menos algumas de maior dimensão, tenham alguma capacidade de reagir a variações frequentes. Coisas destas. São os tais que se chamam os inversores que se ajustam à frequência. Só para dar um exemplo, como é necessário que haja mercados que instantaneamente reajam, quer por baterias, quer por redução de procura, que reajam. Isto são exemplos. Eu não sei qual foi a causa neste caso. Mas estes podem ser exemplos de mitigação. De mitigação que existe. Se estas eram suficientes neste caso, não sei, porque eu não sei qual foi a origem. Isto não sei, não vou inventar. Agora, aquilo que se fez é muito, mas temos que ir mais além. E isso, como digo, preços mais baratos, segurança das pessoas e das empresas, são condições absolutamente necessárias para que as renováveis ganhem maior transação.

E essas medidas de mitigação ou de maior gestão, competem a quem? Competem às gestoras das redes elétricas ou os governos têm que se envolver mais nesse campo?

Veja-se, eu diria que a ERSE [Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos], como entidade reguladora, deve introduzir os esquemas adequados e os operadores de rede, designadamente de transporte e o operador de sistema deve fazer as propostas adequadas. E temos de fazer isso rapidamente? Eu diria que sim, não é? Com o aumento do uso das renováveis, essa inércia vai… Isso ou outra coisa qualquer que provocou [o apagão]. Pode acontecer, sim. Por isso é que é muito importante ter isto diagnosticado e, a partir daí, atacar aquilo que já sabemos quais são as vulnerabilidades e outras que tenham estado por trás deste fenómeno. Como digo, não sei quais são. Agora, o que não pode acontecer, o que ninguém quer, e muito menos os operadores de sistema, ou a ERSE, é que isto volte a acontecer. Portanto, tem que se prevenir antes. Como outras coisas, mais necessidade de uma maior atuação preventiva, uma capilaridade do conhecimento das variações de frequência ao longo das várias redes, os tais mercados de capacidade. É um conjunto de necessidades, em que eu diria que este duo – operador de sistema e ERSE – são as entidades fundamentais. O Governo não faz a gestão do micro. Não deve. Nem o governo, nem o parlamento. E nem (tem) o conhecimento técnico, se for necessário, o governo, se tiver alguma vez de intervir.

Mas tem a estratégia energética.

Tem a estratégia energética, mas eu diria que as grandes responsabilidades, se temos órgãos de direção e de grande execução, são estes. Depois, como é que isto se resolve? Muitas vezes são ativos regulados novos que vão aparecer, mas outras vezes são incentivos ao setor privado. Mais uma vez, como é que se criam estes mercados? Como é que é rentável? Por exemplo, se queremos mudar os inversores nos parques solares.

Alguém tem que os pagar.

Alguém tem que os pagar. É preciso criar estímulos para isso. E, se calhar, o estímulo pode ser o mercado…

Não pode ser só o estímulo do consumo.

Não pode ser só o estímulo do consumo. É necessário, realmente, que os preços podem carecer de alguma coisa, podem, os dos inversores. Depende, já vi números para tudo. Não será isso que mata a economia, mas também é preciso que haja mercados onde a pessoa possa rentabilizar o investimento adicional que faz. Estamos a falar do espetro geral deste apagão. Mas juntar isto com a segurança, affordability e ao mesmo tempo fomentar o incentivo das renováveis, designadamente descentralizado, como nós temos vindo a falar.

Se nós aceitamos que em milhões de coisas, desde a política de educação com Bolonha, quer na política aduaneira, quer política a nível bancário e mercado, aceitamos perca de soberania absoluta nessas áreas, porque é que não vai aceitar na eletricidade?

João Manso Neto

CEO da Greenvolt

Quando há crises há sempre tentativa de buscar culpas, um bode expiatório. A ministra da Transição Energética de Espanha disse que é absurdo apontar o colapso da rede elétrica naquele dia aos desafios crescentes de gerir um sistema energético. Concorda?

Veja o seguinte, eu não sei qual é a origem. A imagem pode ter ficado. Mais uma vez, pode ter ficado essa imagem, como às vezes as pessoas dizem o contrário.

Um ciberataque?

O ciberataque, ou dizem, ah, isto é porque há muitas renováveis… É o que há. Hoje temos que ver qual é a causa concreta. Sim, mas, seja o que for, o sistema de hoje é diferente do sistema de há cinco ou 10 anos. Como tal, os meios de prevenção e de atuação preventiva têm que ser diferentes. É igual, não é? Se havia X gigawatts de potência eólica e não sei quantos de vento, se agora há duas vezes mais, com certeza que é diferente.

Portanto, há um desfasamento entre a evolução da geração e a evolução da gestão da rede, é isso que está a dizer?

Não é total. Claro, como digo, a rede, em Portugal nos últimos 20 anos, a REN conseguiu absorver potência inicialmente eólica, depois renovável. Neste momento estamos a ter uma expansão, felizmente grande, também do descentralizado solar, que é um aspeto muito positivo, mas tudo isso introduz desafios e a REN tem feito imensas coisas.

60% da energia é renovável em Portugal, muitas vezes.

Muitas vezes, mas agora, eu não estou a dizer que não se fez, fez, mas tem que se fazer mais… Mais para prevenir. Para prevenir e antecipar. Basicamente é isso.

Em termos de reação, tanto da sociedade, da economia portuguesa, dos governantes, como é que viu esse dia? Acha que podia ter sido feito mais ou de forma diferente?

Veja o seguinte, naquele dia eu acho que os operadores de sistema em Portugal e em Espanha foram impecáveis. O que podemos discutir é, devia-se ter feito antes mais? Não sei, tem que se fazer mais, tem que se fazer melhor, preventivamente. Agora, naquele dia, os profissionais que atuaram no terreno fizeram muito bem, face à gravidade que houve. Agora, a ideia é que nós não queremos que volte a acontecer como tal, por isso… temos de fazer mais. Temos de fazer mais. E é tão simples como isso. E é o tal, diria, dueto, ERSE-REN, que é muito importante, como também é muito importante pensar um bocadinho até que ponto é que os operadores de sistema nos vários países devem continuar a ser olimpicamente independentes. É uma coisa que nós, de um ponto de vista nacionalista, nem sequer queremos ouvir falar, mas se calhar temos. Independente do sentido de que tem de ser uma fusão entre a REN e a Red Eléctrica. Isto já esteve em cima da mesa, não estou a falar de uma fusão, mas numa cooperação. Veja o seguinte, quando se diz assim, o que era bom é que houvesse mais capacidade de exportação. Foi o que aconteceu. Vamos ver se é isso ou não. O melhor se calhar é, com certeza, mas isso tem que ser associado a um modelo de governo também diferente. Se há mais interligação, temos que ter mais. Porque é um modelo de governo diferente, não estamos à espera de ter mais interligação e depois cada operador do sistema ser totalmente independente dos outros.

Acredita que isso poderá acontecer, essa aproximação?

Pode não ser muito politicamente correto, mas tem que ser. Tem que se pensar um bocadinho nesta base. Se não for uma fusão, então é o quê? Uma ligação maior da gestão? Mas isto já esteve previsto. Há uns sete ou oito anos, em determinados papers da Comissão Europeia, da criação de, mesmo em termos operacionais, de alguma coordenação nos operadores de sistema. Se nós queremos mais interligação, isto tem que haver. Senão, o que é que se faz? Cada um pensa em si. Isso é bom? Duvido. Porque quando a gente diz assim, ah, aumento as interligações e isto resolve-se tudo. Não sei se resolve. Tem que ser gerido, porque senão, veja, qualquer problema, manda para lá. Se forem independentes, a primeira coisa que o operador de sistema faz é cortar. Foi o que eles fizeram.

E Portugal está numa posição mais vulnerável nisso, por exemplo? Estamos na ponta final de muitas interligações. Somos mais pequenos.

Se formos mais eficazes, cada um corta e cada um resolve mal. Resolve com os seus recursos. Agora, Portugal está muito interligado à Espanha, não é? E somos um importador na maior parte do ano, que não é mal nenhum, mas é assim. Eu diria que não é só técnico, mas também de um ponto de vista de mercado, como disse há bocado, mas também, se calhar, de política de cooperação. Se nós aceitamos que em milhões de coisas, desde a política de educação com Bolonha, quer na política aduaneira, quer política a nível bancário e mercado, aceitamos perca de soberania absoluta nessas áreas, porque é que não se vai aceitar na eletricidade?

E ao mesmo tempo estamos sempre a gritar por ter mais interligação com França.

Com França, então queremos com França. Tudo isto tem que ser repensado. Não é dramático, tem que ser repensado. Se nós já aceitamos partilha de soberania em tantas coisas, porque é que com a eletricidade há de ser um tabu?

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