“Faz-me confusão o Estado pedir ao cidadão informações que o Estado já tem”

Fim da declaração mensal de remuneração vai ser "marco histórico" na relação da Segurança Social e empresas, realça Luís Farrajota. Já os recibos verdes vão libertar-se das declarações trimestrais.

Ainda que o Estado saiba que faturas e recibos são emitidos ao longo dos meses, pede todos os trimestres que os trabalhadores independentes compilem essa informação e a voltem a entregar, para calcular as contribuições sociais. Crítico dessa dinâmica, o presidente do Instituto de Informática da Segurança Social atira: “faz-se um bocadinho de confusão o Estado pedir ao cidadão um conjunto de informações que já tem“.

Em entrevista ao ECO, Luís Farrajota explica que o fim das declarações trimestrais dos recibos verdes (e a partilha de dados entre a Segurança Social e a Autoridade Tributária) é uma das medidas que em 2026 contribuirão para simplificar o ciclo contributivo. Outra será o fim das declarações mensais de remuneração, que os empregadores hoje têm de entregar à Segurança Social.

Por outro lado, no que diz respeito às reformas, o responsável identifica as pensões unificadas como o grande desafio. Enquanto uma pensão da Segurança Social leva 50 dias a ser atribuída, uma unificada demora hoje 271 dias. Mas Luís Farrajota conta ligar o sistema da Segurança Social e o da Caixa Geral de Aposentações (CGA) até ao final deste ano, equiparando esses prazos.

Esta é uma de duas partes da entrevista de Luís Farrajota ao ECO. Na outra (que pode ler aqui), o presidente do Instituto de Informática da Segurança Social adianta que medidas vão entrar em vigor já neste segundo semestre para tornar o contacto das pessoas e empresas com o sistema mais eficaz, nomeadamente a possibilidade de pagamento por MB Way.

powered by Advanced iFrame free. Get the Pro version on CodeCanyon.

No que diz respeito à relação das empresas com a Segurança Social, julgo que há mudanças à vista, no que diz respeito às declarações mensais de remuneração. Em que ponto estão estas alterações?

Esse será um marco histórico na Segurança Social, na sua relação com as empresas. Estamos a desenvolver um projeto chamado “Simplificação do ciclo contributivo”. Atualmente, existe uma obrigatoriedade de comunicação das 500 mil empresas existentes mensalmente com a Segurança Social ao nível das declarações de rendimentos. Em 2024, foram entregues pelas empresas oito milhões de declarações. E a declaração até pode vir a zero, mas tem de vir. A simplificação do ciclo contributivo vai mudar por completo a perspetiva.

De que modo?

As empresas deixam de ter esta obrigatoriedade. Encontramo-nos a desenhar um modelo no qual a empresa só comunica se houver alterações, e é a Segurança Social que calcula previamente o valor a pagar. Atualmente, as empresas despendem em média 80 horas dos seus recursos por mês para cumprir todas estas obrigações perante a Segurança Social. Representa um custo de contexto médio de 3.500 milhões de euros por ano. Um país que quer ser competitivo não pode ter no Estado esta adversidade. O novo sistema, em termos tecnológicos, arranca no dia 1 de janeiro de 2026. E teremos um ano para fazer a transição de um sistema para outro. Queremos fazer uma transição bem feita, consolidada, sustentada, sem criar alarmismos e disrupções do lado das empresas. A 1 de janeiro de 2027, tudo estará neste novo sistema.

Vamos ligar o sistema de Segurança Social, através dos serviços de interoperabilidade, aos sistemas das empresas. Deixará de haver a necessidade da introdução das horas do recurso humano.

Mas como é que vai ser possível dispensar essas declarações?

Vamos ligar o sistema de Segurança Social, através dos serviços de interoperabilidade, aos sistemas das empresas. Haverá uma comunicação através da interoperabilidade, deixando de haver a necessidade da introdução das horas do recurso humano.

Em janeiro de 2026 ficará disponível para todas as empresas?

Não podemos fazer isto em big bang. Em 2024 tivemos 200 milhões de acessos. Portanto, o sistema da Segurança Social é muito concorrido e é robusto. Não sucumbiu ao apagão. Os nossos sistemas estiveram sempre disponíveis para o cidadão e para as empresas. Mas faremos isto faseadamente, de janeiro a dezembro. Entrarão slots de empresas no decurso do tempo, no sentido de não criarmos disrupção entre sistemas e, sobretudo, para que o sistema tecnológico também se vá adaptando a esse crescimento.

Luís Farrajota, presidente do Instituto de Informática da Segurança Social, em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Como é que será feito esse faseamento?

Numa primeira fase, entrarão logo 50% das empresas. Faremos isto em duas grandes fases. Numa primeira fase, entrarão aquelas empresas que têm uma linha no recibo de pagamento, que é o salário base. Depois, entrarão todas as outras.

Que desafios antevê nesta transformação do ciclo contributivo?

É desafiante, porque o modelo é disruptivo. Vai trazer uma vida nova à relação que as empresas têm com a Segurança Social. As empresas estão sedentas que isto aconteça, pela complexidade do modelo existente. Daremos formações. Temos uma equipa que, antes de implementar a medida, treina a medida com os operadores da medida.

powered by Advanced iFrame free. Get the Pro version on CodeCanyon.

Sei que também nas declarações trimestrais dos trabalhadores independentes vai haver mudanças. Pode detalhar?

Isso é uma coisa que me faz um bocadinho de confusão: o Estado pedir informações sobre o Estado. O Estado pedir ao cidadão um conjunto de informações que já tem. O que é que a Segurança Social diz ao trabalhador, vulgo, recibo verde? Trimestralmente, tens de comunicar os rendimentos do último trimestre. Por que é que se faz isto? O trabalhador emitiu um recibo num sistema da AT, então o Estado já tem essa informação. Por que é que a Segurança Social está a pedir a informação que o Estado já tem? Isto repete-se num conjunto de outras situações. O país tem mesmo de evoluir no que concerne à interoperabilidade da partilha de informação, nomeadamente no Estado. O próximo Governo tem de fazer um grande patrocínio junto da Administração Pública para que, de uma vez por todas, se fazer isto a sério.

Portanto, a AT e a Segurança Social vão passar a partilhar os dados de faturação dos recibos verdes?

Ligaremos as funcionalidades que temos de ligar para que a Segurança Social receba da AT a informação que hoje está a pedir ao cidadão. O cidadão deixa de ter de cumprir essas obrigações.

Acho que há falta de visão. Temos de perceber o seguinte: aquele conjunto de problemas conjunturais, que vamos resolvendo consecutivamente no dia-a-dia, só existe porque deriva de questões estruturais. Enquanto não atacarmos a causa estrutural…

Mas por que é que essa partilha, no caso dos recibos verdes, ainda não foi feita? Há algum regulamento (por exemplo, de proteção de dados) que o impeça?

Não há nada que impeça. Numa opinião mais pessoal, acho que há falta de visão. Temos de perceber o seguinte: aquele conjunto de problemas conjunturais, que vamos resolvendo consecutivamente no dia-a-dia, só existe porque deriva de questões estruturais. Enquanto não atacarmos a causa estrutural… É preciso afinar o foco: ir ao estrutural. Este Governo [de Luís Montenegro] já deu um grande avanço nisso e é preciso continuar este trabalho.

Portanto, o que vai acontecer aos recibos verdes é que as pessoas vão deixar de ter de entregar declarações trimestrais, e essa comunicação será diretamente entre a Segurança Social e a AT. Quando é que isso vai acontecer?

Contamos iniciar essa funcionalidade no decurso de 2026. A pessoa deixa de ser um player que é convocado trimestralmente. É a Segurança Social que vai dizer à pessoa, em função dos rendimentos que teve — porque já obteve essa informação junto da AT — o valor que tem a pagar.

Luís Farrajota, presidente do Instituto de Informática da Segurança Social, em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Vamos às pensões. O Governo anterior lançou a “Pensão na hora” e mitigou consideravelmente os atrasos na atribuição das pensões. Estão previstas outras medidas para agilizar ainda mais a atribuição das pensões?

Atualmente, o grande desafio no sistema de pensões tem que ver com a pensão unificada, que é quando uma pensão tem parte da Segurança Social e parte da Caixa Geral de Aposentações. Hoje, temos um valor médio de 271 dias para a atribuição de uma pensão unificada. Se a pensão for única e exclusivamente da Segurança Social, o prazo médio é de cerca de 50 dias. Já temos um grupo de trabalho com uma equipa do Instituto de Informática e colaboradores da Caixa Geral de Aposentações, no sentido de trabalhar sobre esta dor, porque não é aceitável tanto tempo de deferimento de uma pensão.

Por que é que o prazo das pensões unificadas é tão maior?

Porque os sistemas não acompanharam as necessidades. Só consigo resolver esta necessidade se a Segurança Social ou a Caixa Geral de Aposentações tiverem informação sobre o futuro pensionista, de uma forma mais rápida. Como os sistemas atualmente ainda não estão ligados… Disse ainda, porque vão estar. Essa é a solução.

Quando?

Até ao final do ano esses tempos estarão equiparados.

Conseguimos garantir que, através da ligação entre sistemas, aquele valor de sete a oito meses para uma pensão unificada é mitigado e pode ser equiparado ao deferimento de uma pensão da Segurança Social.

A ideia é, portanto, ter o prazo de deferimento das pensões unificadas nos 50 dias até ao final do dia.

Gostávamos que assim fosse. É para isso que estamos a trabalhar. Conseguimos garantir que, através da ligação entre sistemas, aquele valor de sete a oito meses para uma pensão unificada é mitigado e pode ser equiparado ao deferimento de uma pensão da Segurança Social.

Anteriores Governos atribuíam às falhas na informatização das carreiras contributivas estes atrasos. Já não é esse o caso?

Uma das medidas que temos inscrita no programa “Primeiro Pessoas” tem que ver com a forma como, quer a Segurança Social, quer a própria Caixa Geral de Apresentações, se relacionam com o futuro pensionista. O que queremos fazer é, com seis ou oito meses de antecedência, comunicar ao futuro pensionista qual é o ponto de situação da sua carreira contributiva, no sentido de que tenha algum tempo para para completar com algum documento que possa faltar. Alguma certificação militar, que muitas vezes faz falta e não há comprovativo, por exemplo. Há uma mudança da postura da Segurança Social, para que, quando chegar à data em que a pessoa tem direito à sua pensão, recebe no mês seguinte. Isto é o ideal. Para lá caminhamos.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“Faz-me confusão o Estado pedir ao cidadão informações que o Estado já tem”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião