
O advogado no centro da atuação da Ordem
Numa era de comunicação veloz não faz sentido ficarmos à espera de grupos de trabalho e de comissões de reforma. A mudança pode fazer-se no dia-a-dia e há tanta coisa que pode ser melhorada.
Além de ser uma honra para mim ter sido escolhido, pelo vosso voto, para bastonário, exercerei o cargo num período emblemático: aquele em que a nossa ordem se torna centenária. Em 2026, a nossa ordem comemora 100 anos de serviço e de causas, de trabalho e de compromisso a favor de todos os advogados. Criada em 1926, mas com fundações ainda mais antigas, na associação de advogados de Lisboa de 1838, a ordem dos advogados portugueses é a mais antiga associação profissional portuguesa. De todas as então chamadas ‘profissões livres’, a par com médicos e engenheiros, por exemplo, a ordem dos advogados foi a que primeiro se estabeleceu com competências específicas e um funcionamento regulamentado, com a fixação de direitos e deveres dos advogados e processo de inscrição regulado.
Tudo em nome da transparência da profissão, constituindo a ordem, já então, um escudo de defesa da independência da classe.
Ser advogado é a profissão que amo. ‘Estar’ bastonário de todos nós é por isso um privilégio que não encaro de mão beijada.
Neste cargo e neste mandato, espero não só corresponder às vossas expectativas, mas, sobretudo, honrar e prestigiar esta ordem que tem um papel essencial na justiça portuguesa.
Tenho, em conjunto com os colegas que me acompanham no Conselho Geral, uma visão para a ordem dos advogados.
Acreditamos que o presente e o futuro da advocacia, exigem uma ordem forte, moderna e que ouve, responde e trabalha com todos os seus órgãos internos e com todos e cada um dos advogados. Uma Ordem que tem sede em Lisboa, mas que está presente no terreno, onde os colegas que trabalham pelo país fora enfrentam desafios e procuram soluções.
Uma Ordem cuja equipa dialoga e negoceia para contribuir para um melhor sistema de justiça, em cooperação com os outros agentes, numa lógica de diálogo construtivo com as instituições. A Ordem que almejo será um ator forte e presente na construção dum sistema de justiça, a unir os advogados e a construir e manter pontes com os outros agentes do setor e da sociedade. Mas desenganem-se: não falo de subserviência nem de unanimismo.
Falo de união e de cooperação, de diálogo e de negociação. E estas quatro ações dão muito trabalho. Discordar é fácil.
Desistir de encontrar uma solução é fácil. Fugir de uma mesa de negociação é fácil. Difícil é ficar e lutar, batalhar, conversar, discutir, propor, negociar. Mas afinal, ser advogado não é fácil.
Ser advogado é compromisso, é nunca desistir. Porque é isso que aqueles que servimos – os cidadãos – esperam de nós.
Também será assim com um advogado bastonário.
Há muito trabalho pela frente. Por um lado, há a vertente externa da ação:
A Ordem dos Advogados deve contribuir para ser parte da solução da melhoria da justiça ou, tal como sublinhei no meu discurso de posse, talvez seja melhor dizer das ‘justiças’.
Andamos há anos a falar de uma grande reforma da justiça e isso tem redundado em nada reformar. Talvez o caminho seja iniciar reformas setoriais e eu defendo já a primeira: a área da família e das crianças, a que mais impacto tem na vida das pessoas, mas que é tratada como um direito de segunda. Passamos o tempo a falar dos megaprocessos mediáticos e da demora da justiça, mas onde ela infelizmente tem verdadeiro impacto não é no caso do político ou do banqueiro que aparece nas notícias.
É nos casos de violência doméstica, de violência sobre as crianças, casos que só emergem nos meios de comunicação social quando fatalmente é tarde demais.
Há muito a fazer para reformar a justiça e os advogados devem participar nessa mudança. Quem melhor do que nós, que todos os dias acompanhamos esses casos, para com a nossa experiência do terreno e anos de dedicação à defesa dos direitos, liberdades e garantias previstos na constituição, para apresentarmos soluções? Numa era de comunicação veloz não faz sentido ficarmos à espera de grupos de trabalho e de comissões de reforma. A mudança pode fazer-se no dia-a-dia e há tanta coisa que pode ser melhorada se houver canais e disponibilidade para dialogar. A Ordem tem essa disponibilidade e, mais do que isso, tem ideias e propostas.
Para dinamizar esse trabalho, irei propor ao novo governo e ao novo Parlamento a criação de um canal que permita uma auscultação regular, numa lógica construtiva e participativa, sobre as mudanças a realizar. Quero chegar ao final deste mandato com a ordem como um participante ativo junto das instituições, uma voz que ninguém quererá deixar de ouvir no que aos temas da justiça diz respeito.
A Ordem deve ainda ter um papel ativo noutra vertente externa: a da comunicação e da literacia jurídicas. É hora de colocar o cidadão no topo das prioridades da justiça. A justiça não pode continuar a não comunicar ou a fazê-lo de forma errada e insuficiente. Se é verdade que há um ‘tempo da justiça’ e um ‘tempo dos media’, também é verdade que a informação não vai parar por esses tempos não coincidirem. Mais, o facto de não haver regras provoca no cidadão um efeito errado, de desconfiança da justiça, porque a sua linguagem é logo à partida incompreensível.
Acredito que é possível criar um modelo de comunicação da justiça que se adeque às nossas regras e que permita que os cidadãos sejam informados de forma correta.
Também é hora de avançar com campanhas de literacia jurídica para, primeiro que tudo, capacitar o cidadão comum para o vocabulário jurídico, os seus principais conceitos, a forma de funcionamento da justiça.
Depois é preciso consciencializar o cidadão sobre os seus direitos e o acesso à justiça, disponibilizando plataformas digitais para facilitar o acesso à informação e serviços jurídicos, etc. E claro, melhorar o apoio judiciário, promovendo o acesso dos mais carenciados, implementando um sistema de consulta jurídica prévia obrigatória, simplificando a solicitação de apoio judiciário e estabelecendo pontos de atendimento e informação em áreas de maior vulnerabilidade social. E por fim, resolver o problema das custas judiciais como obstáculo ao acesso à justiça: lutar pela sua redução, criar escalões de desconto progressivos, propor a possibilidade de apenas serem liquidadas no final dos processos ou pugnar pela taxa reduzida de IVAa 6% para a prestação dos serviços jurídicos. E, como sempre, continuar o combate à procuradoria ilícita, defendendo uma maior moldura penal para a prática do respetivo crime e a natureza pública.
No trabalho que temos pela frente há, também, a vertente interna: há que defender a profissão, pelo que o canal de comunicação com o governo e o parlamento que já referi também servirá para estabelecer patamares de entendimento sobre problemas pendentes da advocacia: a ideia é evitar que, no futuro, sejam feitas mudanças profundas e complexas às condições da profissão sem que seja possível enquadrar os prós e contras dessas ações.
Estou a falar especificamente da lei das associações públicas profissionais e dos estragos que fez com a alteração do estatuto da ordem dos advogados e da lei dos atos próprios cujo alcance nem é sequer ainda conhecido.
Negociar a reversão ou adequação à realidade da profissão das alterações ao estatuto, sensibilizando o governo e os grupos parlamentares para essa necessidade, é uma meta deste mandato. É também necessário encontrar uma solução para a proteção social dos advogados, como sempre defendi: enquanto o poder político estuda a questão da manutenção da caixa de previdência dos advogados e solicitadores e da hipotética migração para o regime geral da segurança social, alguma coisa devemos fazer. Devemos trabalhar para encontrar e por a funcionar uma terceira via, que pode passar por um sistema híbrido, concebido para transcender as limitações inerentes tanto à CPAS como à segurança social. Não estou a falar de soluções utópicas ou impossíveis de implementar até porque a ordem não tem poderes para obrigar o estado a criar um regime de proteção social ‘a la carte’ para os advogados.
Mas estou a falar de uma alternativa viável, que ofereça uma proteção mais robusta e adaptada às necessidades atuais e específicas da classe, na proteção na velhice, na perda de rendimentos, na maternidade e na doença.
É preciso trabalhar as condições dos colegas inscritos no sistema de acesso ao direito e aos tribunais, bem como cooperar na sua revitalização, um sistema que não é apenas um sistema de apoio jurídico; é um pilar fundamental da democracia portuguesa:
do ponto de vista dos advogados é preciso atualizar regularmente a tabela de honorários, refletindo a complexidade e a importância do trabalho realizado; garantir condições adequadas de trabalho nos tribunais e instituições e um pagamento de honorários mais regular e previsível; e resolver um problema de décadas que é o facto de os advogados serem os únicos profissionais que literalmente ‘pagam para trabalhar’: são os milhões de euros das suas quotas que suportam os custos administrativos do acesso à justiça dos mais carenciados, um direito fundamental como a saúde ou a educação. Ao contrário de médicos e professores, somos nós a pagar este serviço essencial – uma injustiça que o próximo governo tem de resolver. do ponto de vista do funcionamento, é preciso melhorar e flexibilizar as escalas, implementando um sistema de registo automático da presença do advogado nas plataformas; estabelecer um fluxo automático de informações para agilizar os pagamentos; e uniformizar o novo procedimento nos tribunais, em cooperação com o ministério de justiça.
Por fim, queremos colocar o advogado no centro da atuação da ordem: primeiro, com a digitalização dos serviços, trabalhando em prol de soluções de inteligência artificial para a advocacia. para isso, temos um projeto a que chamamos “programa advogado 360⁰”: trata-se de uma rede integrada para a advocacia moderna, um projeto que reúne um conjunto de ferramentas essenciais para o exercício da advocacia; é um programa dirigido a todos os advogados, mas que visa principalmente aqueles que trabalham em prática individual, em pequenos escritórios ou de empresa – numa lógica de criação de uma situação de igualdade de oportunidades para o exercício da profissão; visa proporcionar um conjunto de ferramentas em áreas como a gestão, as infraestruturas e a tecnologia, o networking, a gestão de clientes e da comunicação, entre muitas outras ferramentas de trabalho; a tecnologia não é uma ameaça, mas a alavanca que nos projeta para uma advocacia mais justa, eficiente e humana. há ainda outra ferramenta que quero destacar: o lançamento a nível nacional da plataforma podadvogar – criada para o Conselho regional de Lisboa durante o meu mandato e que agora se estende a todos os advogados a nível nacional.
O segundo pilar será a formação, bem como o desenvolvimento de iniciativas para melhorar a relação com os serviços públicos. para isso, é preciso: incrementar as plataformas internas da ordem para permitir a criação de novos canais de comunicação, de mentoria e de networking, entre advogados e os órgãos representativos da classe; estabelecer protocolos de cooperação com plataformas que disponibilizam serviços de gestão de clientes e processos, de tarefas e de prazos, gestão documental, automatizações, contabilidade, faturação, entre outros; instituir protocolos com empresas credenciadas que possam assegurar os serviços de gestão documental, segurança digital, serviços de informática, de contabilidade, de arquitetura, de engenharia e outros; e continuar a programar e desenvolver a formação contínua e diversificada nas diversas áreas do direito, na formação especializada como o desenvolvimento profissional, o marketing, a ia, etc.) na formação generalizada e multidisciplinar, como a informática, empreitadas, gestão de empresas, compliance.
No caso dos serviços públicos, dou como exemplo o caso da agência para a integração, migrações e asilo com a qual quero concretizar uma proposta já apresentada, enquanto presidente do Conselho regional de Lisboa ao anterior presidente da AIMA – a criação de uma plataforma digital de gestão do fluxo de trabalho com os advogados, dignificando quer o seu trabalho, quer os migrantes que servem. E por fim, com algumas ações para dignificar a profissão, em qualquer altura da vida dos colegas:
remodelar a tabela de quotas promovendo a sua não atualização durante o mandato inteiro e o incremento de um patamar intermédio e revisão de valores; Criar a plataforma para arquivo digital dos dpa’s e procurações feitas por advogados com atribuição de código de acesso aos clientes; criar uma comissão contra o isolamento da advocacia para que se possa criar uma efetiva rede de apoio à classe, sistematizando as necessidades dos advogados nas diferentes regiões do país; exigir a aplicação do regime fiscal geral a todas as sociedades de advogados, mesmo que estas não sejam integradas por sócios Que não se encontrem inscritos no exercício da advocacia, acabando com a discriminação criada pela atual lei que favorece claramente terceiros em detrimento dos advogados; Defender a implementação de uma linha de crédito bonificada para jovens advogados que pretendam iniciar a sua atividade; analisar e propor a implementação de apoios do estado para viabilizar os meios financeiros necessários aos estágios remunerados dos advogados, impostos pela lei. esse apoio pode passar por bolsas ou pelo acesso a outros meios de financiamento, como os apoios do instituto de emprego e formação profissional ou similares; contratar um seguro de responsabilidade civil que permita ao advogado visado a livre escolha do seu mandatário sem limitações ou imposições da seguradora, ao contrário do que atualmente se prevê nas condições da apólice do seguro de grupo; criação do museu do advogado, dando a conhecer a profissão e a sua evolução ao público em geral e às gerações mais novas, enquanto se promove a memória da advocacia e dos notáveis colegas que antes de nós exerceram honrosa e meritoriamente a nossa profissão; equacionar e implementar a casa do advogado, para alojar colegas que, no final da sua vida, por razões financeiras, de saúde ou familiares, necessitem de recorrer a esse apoio e onde possam residir a tempo inteiro ou usufruir como centro de dia; e um projeto que me é muito caro, porque é uma ideia bem sucedida já implementada no conselho regional de Lisboa: desenvolver um projeto de apoio na saúde mental, criando uma rede de apoio médico psicológico para ajudar todos aqueles que Se vejam numa situação de pressão psicológica ou stress profissional, pelo exercício da profissão.
Também quero aqui deixar uma palavra aos colegas de outras nacionalidades e, especificamente, aos colegas brasileiros, que têm um papel muito relevante porque são, neste momento, cerca de 10% dos advogados existentes no país: sempre entendi que esta questão tem sido abordada de forma errada, o que levou ao lançamento de uma marca de incompetência sobre todos estes colegas, porque se fez uma generalização sobre o seu desempenho. A grande vantagem da advocacia em Portugal é a sua diversidade pelo que temos de conseguir juntar toda a gente e trazer as valências de todos para melhorar a advocacia.
Acho que os colegas brasileiros podem trazer uma visão diferente do direito e, naturalmente, nós devemos ajudá-los a integrarem-se em Portugal e a adaptarem-se ao sistema jurídico nacional.
Com isto quero dizer que a situação de discriminação que vivemos no último ano e meio é para acabar e que a ordem vai trabalhar na forma correta de garantir que os colegas brasileiros – ou de outras nacionalidades – podem aceder aos instrumentos corretos para trabalharem em igualdade de direitos – e deveres – com os colegas portugueses.
Quero acabar como comecei. Cem anos é muito tempo, muitas realizações e muito trabalho. A Ordem ainda tem muito para dar e há muito para fazer nos cem anos que aí vêm. Para já, estas são algumas das prioridades e metas imediatas para o período que temos agora pela frente. A Ordem tem uma visão e um programa, alicerçado aliás em muitas propostas que recolhemos pelo país fora. Conto com todos para o trabalho que nos espera.
O caminho não é fácil, mas é nosso. Unidos, com determinação e integridade, seremos sempre a voz da justiça e da liberdade. Porque ser advogado é, acima de tudo, nunca desistir. Que nunca nos falte a coragem de lutar, a humildade de ouvir e a determinação de servir o cidadão e as empresas.
Viva a advocacia, viva a justiça!
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