O pai do Serviço Nacional de Saúde, António Arnaut, explica a proposta que lançou para reformar este serviço, através do livro "Salvar o SNS", em co-autoria com João Semedo.
António Arnaut, pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS), redigiu a lei fundadora deste serviço há quase 40 anos. Agora, face ao atual contexto e a alterações que acredita estarem a deteriorar o serviço, decidiu rescrevê-la com a ajuda do médico e ex-líder do Bloco de Esquerda, João Semedo. A proposta, para ser discutida no Parlamento, vem em forma de livro, com o título “Salvar o SNS”. Após o lançamento, o ECO foi falar com Arnaut para perceber os problemas que vê na Saúde e as soluções que defende.
Porquê agora a publicação de uma Nova Lei de Bases da Saúde?
O estudo que nós propusemos destina-se a restituir ao SNS a sua dignidade constitucional e a sua matriz humanista. A constituição diz que a saúde é um direito fundamental. Se é um direito fundamental, é garantido pelo Estado, e a forma de garantir esse direito é através do SNS. A lei de 90 [que veio impor alterações à Lei de Arnaut, de 1979] tem uma filosofia neo-liberal. Isso significava que o cidadão português podia recorrer ao público, ao privado, ao social, pagando sempre o Estado. No fundo, a lei de 90 equiparava o serviço nacional de saúde a um subsistema como a ADSE, alterando o fundamento base. O Serviço Nacional de Saúde está dentro do sistema nacional de saúde, que inclui a medicina privada, empresarial ou individual. Eu estou preocupado com o serviço mas também com o sistema, que gosto que tudo funcione bem. A medicina privada tem uma função complementar.
Onde se traça a barreira entre o público e o privado?
Tem de se evitar a promiscuidade ruinosa, que causa um grande prejuízo para o SNS. Por exemplo, alguns médicos, podendo fazer uma cirurgia, não a fazem, e ao fim de seis meses em lista de espera, conforme as situações, como já passou o tempo que a lei prevê, mandam para o privado. Há prestações de cuidados de saúde que são feitas no privado e que podiam ser feitas no SNS, poupando ao Estado muitos milhões. E, portanto, há aqui uma promiscuidade, um sistema de vasos comunicantes, que é preciso travar. Para quê? Para justamente evitar que o setor privado viva um pouco à custa do setor público, à custa do SNS. O setor privado expande-se à custa da desqualificação do setor público, é sempre assim. Se não há medidas de fiscalização, os trabalhadores do privado fazem várias coisas e apresentam a conta ao Estado. Isto tem de ser saneado. Trava-se dizendo que a saúde é garantida pelo SNS e que os cidadãos só podem recorrer ao privado pagando o Estado quando o SNS não possa prestar os devidos cuidados.
Tendo em conta a atual fragilização do SNS, isso não acontece a maior parte das vezes?
Há coisas absurdas. Se o cidadão for ao privado, beneficiando da ADSE, paga menos taxa moderadora do que paga no SNS, o que é um absurdo. Nós também propomos que não se paguem taxas moderadoras. O Estado tem todo o campo aberto para a iniciativa privada: para quem tiver seguros de saúde, para quem quiser pagar e ainda para receber solicitações do SNS quando o SNS não possa prestar os cuidados. E isso vai acontecer sempre, porque o SNS, por qualquer razão, pode não ter condições –- sobretudo nos picos da gripe, ou quando há uma epidemia. Se o Estado tem a obrigação de garantir os cuidados de vida aos seus cidadãos e não os pode prestar, o Estado faz convenções com o setor privado.
Há alguma situação em que as PPP sejam compatíveis com um SNS saudável? Com maior fiscalização ou melhorias na contratualização, por exemplo?
Há sempre formas de fugir a isso [à fiscalização ou melhor contratualização]. A nossa ideia é que a partir de agora o Estado não faça mais parcerias. A questão porventura mantém-se, porque há contratos que têm de ser celebrados, mas a ideia é essa. Eu não compreendo bem por que um hospital público há de ser concessionado a um privado para o gerir. Não se afasta uma parceria para a construção de um hospital. Afasta-se é para o funcionamento. O Estado tem capacidade para gerir. Eu conheço bem funcionários públicos, pessoas dignas. Eles têm é de ter uma mentalidade arejada, não podem ser uns burocratas. Nós propomos que os cargos sejam todos por concurso público. Agora, normalmente, muda o Governo muda a gestão. Não é logo, mas muda muito. Não pode ser.
É preciso é vontade política. É só ver quanto nós gastámos nos bancos: quando o dinheiro é preciso para qualquer coisa ele aparece.
Outra das suas preocupações é a motivação dos profissionais. O que está a desgastá-los e como propõe combater esta situação?
Este projeto pretende dignificar as carreiras. Os profissionais de saúde ganham muito mal, trabalham até à exaustão. Eu agora estive internado dois meses e já o sabia, mas fiquei a saber melhor. A justificação para pagar mal é que “vão para o privado ganhar o resto”, mas vão para o privado precisamente porque ganham mal. É um ciclo vicioso. Já há muito tempo que sugeri que deviam ser equiparados nos vencimentos aos magistrados sociais. Porque a carreira é a trave mestra do Estado social.
Tem existido, contudo, uma constante suborçamentação da saúde. Porque é tão difícil inverter este ciclo?
O Estado, através do Governo, deve garantir ao SNS o financiamento necessário ao cumprimento da sua missão. A maior parte dos políticos não são utentes do SNS. Porque se fossem, como eu sempre fui, eles tinham outra preocupação com o SNS. As verbas existirão se houver vontade política, é preciso é vontade política. É só ver quanto nós gastámos nos bancos: quando o dinheiro é preciso para qualquer coisa ele aparece. Eu não quero que todos tenham um carro mas quero que todos tenham acesso ao ensino, à saúde e ao trabalho! Eu preocupo-me com toda a gente mas preocupo-me mais com os pobres, aqueles que sem o SNS não tinham acesso à saúde e que poderiam morrer sem assistência médica — isso é de uma tremenda injustiça. Basta imaginar o país sem SNS. Porque eu sou desse tempo, do tempo em que as pessoas realmente morriam em casa sem assistência médica, porque não tinham dinheiro para ir ao hospital. É por isso que eu sou muito sensível a esta questão.
Eu gostaria que todos os partidos parlamentares dessem o seu contributo a uma nova lei – um pacto em defesa do SNS.
Considera que o Governo tem feito a defesa adequada?
O Governo tem feito o que pode mas apanhou uma herança muito difícil de gerir, pois o subfinanciamento dos últimos quatro anos criou realmente muitas dificuldades ao SNS. Isto, apesar do Paulo Macedo [ex-ministro da Saúde] ter feito aquilo que podia e ter travado o ímpeto neo-liberal do primeiro-ministro. Foi a sensibilidade social do Paulo Macedo que evitou males maiores. O Governo já tomou medidas, sobretudo nos cuidados continuados, e vai fazer as reformas necessárias, mas é preciso também um pouco de tempo. E eu confio neste governo. O SNS é de todos os portugueses, e esta não pode ser vista como uma questão ideológica, que não é. É uma questão ética. Eu gostaria que todos os partidos parlamentares dessem o seu contributo a uma nova lei – um pacto em defesa do SNS. Simplesmente, o PS tem a responsabilidade histórica porque foi um ministro socialista, e depois um deputado socialista, que tomaram essa iniciativa, não é verdade?
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A última entrevista de António Arnaut. Pai do SNS dizia que “dinheiro não falta, basta vontade política”
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