Impostos, benefícios, equidade e patranhas

Quando o Estado concede um benefício fiscal, abdica de receita. E, assim, favorece uns em desfavor de outros. O problema é quando não se reduzem as desigualdades ou promovem o desenvolvimento.

Porque pagamos impostos? A maioria das pessoas responderá (e bem), para o Estado arrecadar receita. Contudo, os impostos e a atuação do Estado têm (ou podem ter) outras duas finalidades: reduzir as desigualdades na distribuição de rendimentos e promover o desenvolvimento económico e social.

Os impostos podem reduzir a desigualdade por duas vias: de forma direta, usando impostos progressivos. É o caso do IRS. Quem ganha mais, paga, de forma progressiva, mais impostos. Mas os impostos também reduzem a desigualdade de forma indireta, financiando as prestações sociais. Financiam as prestações sociais em dinheiro, ou seja, o subsídio de desemprego, o RSI, o abono de família e as pensões não contributivas (de sobrevivência).

Desta forma, transferindo dinheiro para as populações no limiar da pobreza, ou no caso do subsídio de desemprego, atuando na prevenção de uma situação limite de perda total de rendimento que está associada ao desemprego, estas prestações reduzem a taxa de pobreza. E diga-se que os estudos realizados mostram uma elevada eficiência destes apoios no combate à pobreza. Mas também financiando as prestações sociais em espécie, ou seja, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a escolaridade obrigatória.

O SNS é um instrumento de redução de pobreza muito eficaz e imediato. Sem um SNS universal e tendencialmente gratuito, a esmagadora maioria dos Portugueses não teria acesso a cuidados de saúde. E o nosso SNS funciona, regra geral, bem e com qualidade (o que não invalida que não possa ser melhorado e não haja desperdícios e ineficiências a corrigir).

Os impostos também servem para promover o desenvolvimento económico e social, por duas vias: de forma direta, concedendo benefícios fiscais e/ou regimes fiscais preferenciais (menor tributação ou condições fiscais privilegiadas) a investimentos relevantes (como sucedeu com a AutoEuropa, a Siemens, a nova fábrica da Portucel entre outros), ou de forma indireta, financiando a despesa com subsídios.

Pelo que, quando o Estado concede um benefício fiscal abdica de receita fiscal. Um benefício fiscal pode tomar diversas formas: um regime de tributação mais favorável (por exemplo só tributar parte do rendimento, como sucede, em alguns casos, com pessoas portadoras de deficiência), ou uma redução da taxa de imposto a um determinado grupo, setor ou produto/serviço, ou no limite uma isenção. No entanto, um benefício fiscal, ao gerar uma perda de receita, favorece uma determinada situação. Pelo que só deverá haver a atribuição de um benefício fiscal quando claramente há um efeito na redução das desigualdade ou a promoção de um maior desenvolvimento.

Vem este longo preambulo a propósito de duas medidas tomadas em matéria fiscal. A primeira foi tomada há uns meses, e reduziu o IVA na restauração de 23% para 13%.

Ao conceder este benefício, o governo transferiu 400 milhões €/ano para um setor. Repare-se que para 2017, 400 milhões é sensivelmente o que o governo prevê cobrar com o aumento de impostos indiretos e o adicional do IMI. Ou seja, para subsidiar um setor, o governo tributa a generalidade dos Portugueses. E quem beneficia deste “brinde” de 400 milhões? Se os preços das refeições se mantiverem (como tudo aparenta que sim), então o subsídio é embolsado pelos donos dos restaurantes. Se os preços descerem, então o subsídio é dirigido aos consumidores. Sucede que, quem mais consome, em volume e em preço, serviços de restauração são as pessoas de maiores rendimentos. Logo temos uma medida que agrava as desigualdades sociais. E achar que esta descida do IVA aumenta o investimento ou gera mais emprego é “whisfull thinking”.

Mas a semana passada, os nossos deputados, em toda a sua sabedoria, brindaram-nos com mais uma pérola fiscal. Desta vez, trata-se de dar isenção de IVA à medicina não tradicional (acupunctura, fitoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropráxia, medicina tradicional chinesa e eu sei lá mais o quê). Ora, esta isenção têm três problemas:

  1. É uma isenção a um conjunto de práticas que não têm validade científica. Claro que nenhuma é uma fraude do nível da homeopatia (basicamente vende água), mas não há estudos científicos validados, que demonstre os benefícios deste tipo de tratamentos (salvo raras exceções, no SNS, de uso da acupuntura para controlo da dor crónica, mas esses casos, ao serem no SNS, já estão abrangidos pela isenção de IVA).

    A medicina convencional baseia-se em fatos, ciência e conhecimento racional, validado em muitos estudos, com um sistema de blind referee. Quem tiver dúvidas, sugiro que leia um fantástico ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, chamado “Pseudociência”, da autoria do Professor David Marçal. Mas também que consultem a base de dados da Cochrane e vejam os estudos de meta-análise feitos sobre estes tratamentos. A Cochrane é uma organização académica que se dedica a fazer revisões sistemáticas de estudos na área médica. A própria Organização Mundial de Saúde não recomenda nenhum destes tratamentos.

    Portanto, estamos a dar uma isenção que se aplica a tratamentos de saúde a um conjunto de tratamentos que, na melhor das hipóteses, não são mais que placebos.

  2. Mais uma vez, estamos a dar um benefício fiscal à camada de população que aufere maiores rendimentos, e que é a que pode pagar este tipo de tratamentos. Não me entendam mal. Eu não tenho nada contra quem quer recorrer a este tipo de tratamentos. Cada um gasta o seu dinheiro onde muito bem entende. O que me choca, enquanto economista, é ver a política fiscal a ser tão mal conduzida.
  3. A norma que os nossos deputados, no seu imenso conhecimento, aprovaram, tem natureza interpretativa. O que quer isso dizer? Que os prestadores destes serviços, que não liquidaram IVA nos últimos anos (porque entenderam que tinham direito à isenção), e que estão em conflito com a Administração Tributária, verão os seus casos resolvidos. Aqui, a justiça dos nossos deputados foi salomónica: sacamos aos contribuintes, mas dividimos por todos: uma parte, referente aos últimos anos, para os prestadores. Outra parte, daqui para a frente, para os consumidores.

O mais engraçado nesta charlatanice fiscal é que, desta vez, o PS votou contra. A ideia inicial partiu do Bloco e do PAN (quem mais?). No caso do PAN, são os idiotas úteis. Só falta mesmo passar a deduzir ao IRS as despesas com os animais domésticos e equipará-los às crianças, para o niilismo social desta gente ser completo.

No caso do Bloco, além de fazerem companhia ao PAN, parece que há aí um ex-dirigente a sair muito beneficiado por esta decisão. O que não diriam os dirigentes do Bloco se esse privilégio fosse dado a alguém ligado ao PSD ou ao CDS? Rasgariam as vestes e estariam neste momento a vociferar contra “a utilização do dinheiro dos contribuintes para fins obscuros” e as “negociatas com o Estado”.

Mas o mais extraordinário, quase tão esotérico como estes tratamentos, foi o voto favorável do PSD e do CDS. Esse, caro leitor, não consigo explicar. Nem a forma como se faz oposição. Mas isso talvez vá lá com acupuntura.

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