A grande mentira do jornalismo

Acreditar que o jornalismo de qualidade se sustenta com a publicidade digital é um mito com consequências muito perigosas.

A grande mentira em vigor no jornalismo atual é a crença de que a publicidade digital viabiliza o jornalismo de qualidade. Esta é uma mentira que todos conhecem mas que ninguém quer admitir. Por causa dela, o jornalismo está a descer de qualidade de forma abrupta, confundindo-se cada vez mais com um entretenimento de qualidade duvidosa. A verdade é outra: o valor que se recolhe com os banners publicitários já não compensa o custo dos leitores que se afastam por causa da péssima experiência de utilização e da degradação do produto, que se afunda cada vez mais em busca dos ilusórios cliques.

A ficção vem do tempo dos jornais em papel, em que a publicidade sustentava e enriquecia as redações – é nesse mundo mítico que ainda vivem alguns responsáveis dos média. Hoje não é assim, porque 80% do mercado da publicidade digital está na mão de Facebook e Google e a pressão para descer o preço torna cada clique quase irrelevante.

Esta mentira é o que tem levado os jornais numa busca desesperada por audiências, em que nem importa que o pior seja melhor, desde que traga cliques. Um exemplo: o leitor já se perguntou qual é o valor jornalístico de uma fotogaleria como aquelas com centenas de fotos que se vêem cada vez mais nos media digitais portugueses? A resposta dá-se numa palavra só: zero. O “valor” estaria nos cliques dos leitores que se entretêm com elas – de tal forma que já há “jornalistas” especializados em fazer fotogalerias potencialmente virais. Mas esses cliques valem míseros tostões, não milhões.

Em Portugal, a indústria está presa pela vaidade e caridade de alguns poucos, enquanto a qualidade se degrada cada vez mais. Vão escapando os títulos que começam a ser geridos por uma nova geração mais consistente – e consciente – da realidade da indústria. Mas muito do que se está a fazer hoje degrada a imagem de todo o jornalismo, com consequências dramáticas. As fake news (que não são mais do que manobras de desinformação) existiriam sempre, mas não teriam o impacto que têm se os média de referência não tivessem feito questão de se misturarem com as invenções que polulam no Facebook.

A culpa da situação atual é de todos: dos leitores que não querem pagar por um produto de qualidade, dos anunciantes e das agências que insistem em repetir uma fórmula estafada que não distingue as marcas nem os produtos que se querem promover, dos diretores e editores que se deixam pressionar para baixar a qualidade do seu produto em troca de tráfego digital ilusório. Mas é, acima de tudo, culpa dos gestores incompetentes e dos diretores comerciais que não sabem viver de outra forma – especialmente aqueles que gerem um meio digital como se o negócio do papel ainda existisse. Não existe e o modelo de negócio não é o mesmo, como se percebe facilmente. Há títulos em Portugal que dependem de gestores que exigem “mais tráfego do Facebook” quando nem sequer sabem o que é o Facebook nem o mal que essa lógica faz ao jornalismo.

As redações e os seus jornalistas alinham nesta ficção de forma ativa: baixam a qualidade do produto jornalístico em troca de cliques e visualizações que rendem tostões mas custam milhões em termos de credibilidade. E é esta a única razão pela qual se vêem cada vez mais conteúdos irrelevantes nas páginas online dos jornais generalistas: porque “dão cliques”, porque “trazem audiências”, porque satisfazem a ilusão da “relevância”. E é assim, trocando supostos ganhos de curto prazo por perdas a longo prazo, que alguns gestores dos média estão a ajudar a matar o jornalismo – porque não sabem nem são capazes de mais que ultrapasse as suas vistas curtas.

Quer isto dizer que o jornalismo não pode ser um negócio? Não, não quer. Se for sério, o jornalismo nunca será um negócio com retornos especulativos, mas pode ser rentável ser for devidamente gerido por quem o preze e valorize. Há cada vez mais formas de procurar essa rentabilização, incluindo uma utilização mais inteligente e menos prejudicial da publicidade. Mas isso nunca poderá acontecer contra o leitor nem sem ele – porque o jornalismo é um serviço público imprescindível. O leitor é parte fundamental da equação e é essencial que os portugueses percebam que, se não pagarem por jornalismo de qualidade, comprometem a qualidade da democracia de forma irremediável.

E esse cenário está cada vez mais próximo.

Ler mais: Dos muitos milhares de livros que existem sobre a crise do jornalismo, há um que aborda algumas das questões aqui referidas: The Crisis of Journalism Reconsidered, publicado em 2016 pela Cambridge University Press. É um manual académico com vários ensaios que discutem a questão ética, a crise democrática provocada pela perda de relevância do jornalismo e o lugar que este deve ter na sociedade digital.

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