Bullies do mar, nobres e povo
Há um chegar a uma antiga colónia que não se explica: espécie de orgulho nostálgico artificial, um "isto já foi tudo nosso", um familiaridade de voltar a uma casa onde vivemos mas que já não o é.
Quando eu tinha nove anos e usava bandolete, um duo daqueles que só os anos 80 podiam parir foi candidato ao Festival da Eurovisão (não devia ser Euroaudição?) com a canção “Conquistador”. Eles eram os Da Vinci e a música ensinou de cor à criançada toda, o que as aulas de História não tinham conseguido desde o fim do Estado Novo: enumerar as ex-colónias portuguesas.
A letra era um hino catchy ao Quinto Império que podia ter saído de uma colaboração entre os Heróis do Mar e a Lena D’Água, no qual os “tugas”, inspirados por sonhos de poeta, se tinham metido em mil epopeias e semeado laços de ternura e oceanos de amor. E os meus professores confirmavam, a colonização portuguesa era melhor que a dos outros porque o nobre povo se dava ao nobre gozo e fazia um povinho híbrido e feliz.
Os anos passaram, a bandolete foi à vida e eu comecei a viajar para países onde o custo de vida era francamente mais barato do que o da Europa. Mais barato para um europeu porque, para um local a vida continuava a ser caríssima. O contraste entre pobres e ricos tendia para o mais infinito e o desenvolvimento era o verdadeiro desafio.
Curiosamente todos os países para onde viajei tinham sido colonizados por europeus (com exceção da Tailândia e da China), em todos, a minoria no poder descendia dos colonizadores e, em todos, os nativos eram uma classe pária ou votada à miséria ou com um caráter decorativo para turista fotografar.
Rapidamente percebi que o lado B da História não vinha nos nossos livros e que o outro lado do espelho da Golden Age portuguesa tinha sido uma Idade das Trevas neste hemisfério. Mas nas estrofes otimistas dos Da Vinci, não havia adjetivo que rimasse com racismo e escravidão. A versão pop do hino de Portugal era só mesmo para português ouvir.
Há um chegar a uma antiga colónia que não se explica: é uma espécie de orgulho nostálgico artificial, um “isto já foi tudo nosso”, uma familiaridade de voltar a uma casa onde vivemos mas que já não nos pertence. É uma ilusão.
No museu Stadthuys, na cidade de Malaca (que foi dominada pelos portugueses durante 130 anos), a imagem da nossa nação valente é mortal e tudo menos heroica. O estreito de Malaca era o ponto estratégico para dominar o comércio Índico e Afonso de Albuquerque, O Grande, o César do Oriente, o Leão dos Mares, o Terribil e o Marte Português entrou a matar e mandou o sultão à fava (com laços de ternura). O saque da conquista de Malaca é considerado um dos maiores tesouros naufragados nunca encontrados, afinal os oceanos de amor eram traiçoeiros.
Só que os bullies têm o mesmo problema que os arranha-céus: há sempre um maior. E passados 130 anos, eis que chegam os holandeses (que muito provavelmente nos acharam com os mesmos direitos que nós dávamos aos muçulmanos) a querer espalhar os laços de ternura e a luz da cultura ao sítio em questão, sem imaginar que daí a uns séculos ia tudo cair nas mãos dos ingleses.
Se os sítios fossem pessoas, Malaca tinha um historial de trauma inconsolável. Felizmente, o choro e o sangue não têm a força da pedra e o que o tempo não destrói, a UNESCO eleva a Património. Malaca de hoje é a alegre e harmoniosa mistura malaia de emigrantes de toda a Ásia, suas religiões, costumes e pratos preferidos. Se em vez de “Conquistador”, a música se chamasse “Colaborador”, talvez não tivéssemos ganho só com o Salvador!
Em cima de Malaca, a colónia, construí a Malaca de hoje, uma cidade alegre e leve, com casas pintadas ao longo do rio, os mercados da Jonker Street, a comida Baba e Nyonia (descendentes do chineses), a mesquita no mar, a “gereja” vermelha, os rickshaws com a bonecada, a fortaleza, o moinho, a velha nau.
E claro, o bairro dos descendentes dos nossos marinheiros, que ainda dizem pai, mai, maridu e muleh, que fizeram um Cristo Rei à revelia e fazem peixe e marisco como ninguém. É aos fins de semana que a Malásia inteira se quer vir enfiar neste bairro à beira-mar para comer do bem bom.
Afinal, a verdadeira conquista do coração é feita pelo estômago mas, para saber isso, aquela miúda de bandolete ia ter de esperar mais dois anos, por outra música que Portugal amou e a Dina cantou.
“Crónicas asiáticas” são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. O ECO publica as melhores histórias da viagem à Ásia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui. Leia ou releia também as “Crónicas africanas” e as “Crónicas indianas”.
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