Assim não há confiança que resista
Há sociedades em que funciona o princípio do “até prova em contrário as pessoas estão a ser honestas”. Por cá, parte-se da presunção de desconfiança, exigindo que cada um prove a sua honestidade.
Há várias formas de olhar e analisar uma das notícias da semana, aquela que nos revelou uma auditoria do Tribunal de Contas que nos disse que a Segurança Social continua a pagar pensões de sobrevivência a pessoas que morreram, nalguns casos há mais de 10 anos. Os casos identificados na auditoria foram mais de duas centenas, representando 3,7 milhões de euros de perdas de dinheiro dos contribuintes.
A primeira maneira é encolher os ombros e ironizar com o assunto sem nos preocuparmos em demasia. Podemos dizer que nenhum país, como o nosso, tem um Estado Social tão abrangente que até trata os mortos como se estivessem vivos. Ou então, basta referir que a Segurança Social paga pensões de sobrevivência a mortos e a piada está feita.
Num registo sério, devemos questionar-nos que sistemas tem — ou não tem — a Segurança Social para evitar a fraude e as tentativas de a enganar. Aqui, o que espanta não é haver falhas no sistema de controlo, que sempre as há em qualquer organização e em qualquer processo. Mas manterem-se pagamentos de pensões a pessoas que morreram há mais de 10 anos ultrapassa em muito a benevolência que se possa ter para as normais falhas.
Mais ainda se pensarmos que não temos um, mas sim dois Estados, a velocidades muito distintas. Um que investe para construir sistemas informáticos muito eficazes que permitem saber que ontem à tarde fui ao supermercado aqui ao lado e gastei 44,61 euros em produtos de alimentação e higiene, qual a composição exacta do meu agregado familiar ou o ano de registo de matrícula do automóvel. Este é o da Autoridade Tributária.
O outro, como o da Segurança Social, é um sistema em que o braço direito não sabe muito bem o que faz o braço esquerdo. Isso impede que o departamento responsável pelo pagamento de pensões não saiba de forma funcional que subsídios de funeral foram pagos pela morte de quem.
Ou em que a Segurança Social não tem acesso de forma prática às certidões de óbito. Como estas, ainda por cima, são emitidas noutro departamento do Estado (o Registo Civil), tudo fica ainda mais difícil mesmo na era em que a Autoridade Tributária funciona como sabemos.
Perguntamo-nos para que serve, afinal, tanta burocracia e o que faz o Estado a tanta papelada que nos exige por tudo e por nada.
Só no site da Segurança Social, há 239 modelos diferentes de “Formulários” disponíveis cujo preenchimento e entrega são exigidos aos cidadãos para várias finalidades. Não é fácil para os beneficiários e contribuintes mas também não deve ser nada agradável para os funcionários que têm que lidar com estes procedimentos. Alguém já se ocupou a verificar o que faz e não faz sentido? Qual é o circuito de cada um daqueles papéis e a sua verdadeira utilidade?
Também não espanta que o Instituto da Segurança Social, que gere a máquina, tenha desde logo descartado qualquer “responsabilidade financeira” nas falhas detectadas pelo Tribunal de Contas. Vá lá, pelo menos o sistema automático de comunicação do óbito está quase pronto a funcionar.
Mas há uma terceira forma de olhar para o ocorrido, bem sublinhada por Teresa de Sousa no Público deste domingo: então e não se diz nada sobre o “comportamento daqueles que as foram recebendo indevidamente”?
Sim, podemos e devemos dizer. Se o Estado está a ser enganado é porque há cidadãos que o enganam, com comportamentos reprováveis que não devem passar em claro nem impunes.
A questão da honestidade dá pano para mangas. Teresa de Sousa conta um episódio que se passou com ela aquando da candidatura de uma filha a uma universidade britânica e outros podemos acrescentar. Das máquinas de venda de jornais nos Estados Unidos, que pelo preço de um jornal dão acesso a todos os exemplares que lá estão confiando que cada pessoa só leva um, até aos sistemas de “honesty bar” e “honesty coffee”, em que se confia que quem se serve sem vigilância regista ou paga o que consome.
São culturas e hábitos muito diferentes do nosso. Há sociedades em que se parte do princípio da confiança e funciona o princípio do “até prova em contrário assumimos que as pessoas estão a ser honestas e a dizer a verdade”. Por cá, é o inverso: o ponto de partida é o da presunção de culpabilidade, exigindo que cada um prove a sua honestidade.
O fenómeno não é novo e está bem ilustrado em vários inquéritos que, invariavelmente, colocam Portugal entre os países onde os níveis de confiança interpessoal são mais baixos.
Este trabalho do Público feito em 2015 ilustra isso muito bem: “Em 2013, o indicador “confiança nas pessoas” cifra-se em Portugal em 3,6, numa escala de 1 a 10, na Dinamarca em 7. Já quanto à “percepção de honestidade”, Portugal fica em 4,8, a Dinamarca em 7,3. Na “percepção da prestatividade das pessoas” Portugal tem 3,8, a Dinamarca 6,2”.
Não faço ideia como se muda esta cultura, mas sabemos como ela é nefasta. Dos cafés que guardam os pacotinhos de açúcar longe do alcance dos clientes porque, dizem, há quem os leve para casa, até à desconfiança em abrir o capital da empresa unipessoal ou familiar a novos sócios com meios financeiros, porque a desconfiança é muita.
A relação com o Estado consegue ser pior, com a desconfiança mútua a transformá-la muitas vezes num jogo do gato e do rato.
É a desconfiança que faz com que, por exemplo, os licenciamentos para o que quer que seja, em Portugal, sejam uma prolongada dor de cabeça. Há que garantir, à partida, que todas as leis, regulamentos e regras estão em conformidade, em vez de se proceder a vistorias posteriores que impliquem pesadas penalizações para quem não estiver a cumprir.
E é esta tentativa desconfiada de garantia prévia máxima de cumprimento das regras – muitas delas estúpidas à nascença, ultrapassadas no tempo ou verdadeiramente dispensáveis porque não trazem nenhum benefício colectivo – que transforma muitas vezes os cidadãos em “baratas tontas” a levar um papel aqui, um formulário ali, a deixar uma assinatura mais acolá.
Quando toca a dinheiros tudo se complica quando o Estado está do outro lado. Há a ideia que o dinheiro do Estado aparece por geração espontânea e não custa a ganhar a ninguém. A noção de que os meios do Estado são dos contribuintes é ausente ou difusa. Por isso, o dito dinheiro público é de quem o apanhar, sem pesos na consciência.
Os sucessivos grandes escândalos bancários e empresariais de larga escala, os pequenos golpes de responsáveis e decisores políticos e a sensação de impunidade que vai reinando, formam o caldo de cultura que perpetua o pior dos mundos: máxima desconfiança, enorme permeabilidade de facto às burlas e práticas desonestas e grande percepção de impunidade dos prevaricadores.
Não sabemos como se sai daqui, mas sabemos que os países mais prósperos são aqueles onde a confiança interpessoal é maior e a mão é mais pesada para quem a viola.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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