Manipulações democráticas digitais

A Comissão Nacional de Eleições não tem capacidade para verificar a (des)informação que grassa nas redes sociais e não tem maneira de controlar gastos nem períodos de transmissão de informação.

As regras para a publicidade política nas redes sociais são inspiradas no modelo americano onde o dinheiro corre sem limites, não há consequências pela propagação de mentiras e os interesses obscuros fazem grande parte do trabalho sujo de um e do outro lado. Não faz qualquer sentido que os processos eleitorais do resto do mundo estejam sujeitos a estas regras. Ainda menos sentido faz que existam obrigações claras a cumprir pelas campanhas no que toca a publicidade televisiva e que nada disso exista para as redes, onde é efetivamente impossível monitorizar quem faz o quê. Alguns países europeus estão a estudar mecanismos de controlo, e nações como a Índia já regularam partes das campanhas digitais. Mas isso não chega.

Na última campanha presidencial americana viu-se um tremendo aproveitamento das ferramentas de manipulação oferecidas pelas redes – ferramentas de manipulação essas que existem para todas as áreas e que permitem que se excluam ou direcionem anúncios para determinados perfis de utilizadores. Muitas vezes a mensagem não era estritamente de campanha, no sentido em que não pretendia publicitar um candidato: o objetivo era afastar certos grupos das mesas de voto incentivando a abstenção ou promovendo o descontentamento entre as bases de apoio de outros candidatos. E todo este ecossistema tóxico facilita a manipulação por parte de entidades estrangeiras interessadas em manipular processos eleitorais.

O direcionamento de publicidade para utilizadores vulneráveis a certos tipos de desinformação é algo que as redes praticam diariamente. O Youtube aproveita quem vê vídeos sobre uma teoria da conspiração sobre o 11 de setembro para promover vídeos contra as vacinas ou a favor das teorias de que a terra é redonda. Já o Facebook só em outubro fechou uma categoria que permitia direcionar informação para utilizadores interessados em “teorias de conspiração sobre a extinção dos brancos” depois de uma denúncia do Intercept.

Outros casos, como a tipificação de um utilizador como tendo um manifesto “ódio aos judeus” ou o impedimento de certas minorias acederem a anúncios de arrendamento, só foram parados também depois de denúncias públicas. As máquinas publicitárias imparáveis das redes sociais não querem saber da democracia nem da liberdade, querem apenas explorar o seu modelo para aumentar o retorno financeiro – e se isso implicar a manipulação do processo democrático por entidades externas, que seja.

Com umas eleições europeias à porta que irão certamente fazer disparar os resultados dos populistas que beneficiam de um ambiente informativo tóxico, as redes sociais estão objetivamente a fazer o jogo político dos extremistas. E não dão sinal de querer parar. Em vez de pura e simplesmente banirem a política da sua máquina publicitária, comprometem-se a certificar anunciantes (Google e Twitter) e a criar arquivos dos anúncios produzidos (Facebook). É muito pouco, demasiado tarde. E isto deixa de fora redes como o Instagram e o WhatsApp, (ambas propriedade do Facebook), que quase não têm mecanismos de verificação mas que se sabe terem sido responsáveis por várias ações de manipulação no Brasil e na Índia.

Ora, não há razões para que, em Portugal e na generalidade da Europa, se permita um tipo de campanha política como aquela que se vê nos Estados Unidos. A Comissão Nacional de Eleições não tem capacidade para verificar a (des)informação que grassa nas redes sociais e não tem maneira de controlar gastos nem períodos de transmissão de informação. E, se em Portugal um candidato não pode passar a campanha eleitoral a gastar o que lhe apetece em anúncios televisivos, porque é que há-de poder fazê-lo no Facebook?

Há várias provas de que as redes reagem apenas a um único tipo de pressão: a financeira. Quando na Alemanha se passou uma lei que previa multas até 50 milhões de euros para as redes que alojem falsa informação e discurso de ódio, o número de revisores contratados pelo Facebook aumentou exponencialmente (apesar de os alemães serem apenas 2% dos utilizadores da rede, 15% dos revisores estão lá sedeados). A Irlanda também já foi pelo mesmo caminho e Portugal também deveria ir. Mas mais importante ainda será que estas regras tenham força em toda a União Europeia, não só para banir de vez as práticas duvidosas das redes como para limitar alguns países cujos governos têm objetivamente beneficiado do discurso de ódio, como a Polónia e a Hungria.

Ler mais: O Disinformation Report é um documento para os anais do combate à democracia liberal e foi produzido por um think-tank americano chamado New Knowledge. Funciona como uma autópsia aos grandes processos de desinformação durante as últimas presidenciais americanas conduzidos pela Internet Research Agency, o braço armado digital do Kremlin. O relatório é bastante rigoroso e não deixa margem para dúvidas no alcance e dimensão das manobras de desinformação online a que estão sujeitos os processos eleitorais.

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