Like & Dislike: Ferreira Leite e os 6 meses sem democracia e 9 meses sem défice
Quando era ministra das Finanças defendeu um défice zero. Hoje diz que o défice é muito baixo e defende a reestruturação da dívida.
“Este défice é absolutamente suicida em relação ao país, não tenho nenhuma dúvida em afirmar isto. Ninguém nos obriga a este défice, e ele tem um preço: este nível de carga fiscal e esta degradação dos serviços. Não é possível, evidentemente, é baixar os impostos, melhorar os serviços e o défice ficar na mesma. A política devia ser deixar crescer o défice, não para os 3%, mas também não para estarmos à procura de superávites. Isso é a verdadeira loucura”.
Esta frase foi proferida esta semana no programa Pares da República, da TSF. A frase foi dita por alguém que, em 2018, foi ao Parlamento dizer que “não é possível pagar a dívida pública portuguesa”. Esta frase foi proferida por alguém que, em 2014, assinou o manifesto para a reestruturação da dívida. A frase foi pronunciada por quem, em 2002, defendeu que o país deveria ter um défice zero. Este frase foi dita por quem, em 2003, vendeu créditos fiscais ao Citigroup para baixar artificialmente o défice, comprometendo as receitas do Estado nos anos seguintes. Esta frase é de Manuela Ferreira Leite.
Tal como Manuela Ferreira Leite, o país teve muitos outros ministros das Finanças que pensaram que a “política devia ser deixar crescer o défice”. E quando precisavam de cumprir as metas de Bruxelas, deitavam mãos a um sem número de artifícios contabilísticos para baixar artificialmente o défice. A herança que nos deixaram foi esta: uma dívida astronómica, de 130%, a terceira maior da Europa, só atrás da Grécia e da Itália.
Mas nem sempre Manuela Ferreira Leite foi defensora de uma política orçamental mais laxista. Aliás, foi a ortodoxia financeira da ex-ministra das Finanças de Durão Barroso que levou o então Presidente Jorge Sampaio a proferir esta célebre frase: “Há mais vida para além do Orçamento”. E foi esta vida “para além do Orçamento” e “para além das nossas possibilidades” que, em 2011, levou o país a entrar em bancarrota, pela terceira vez em 40 anos de democracia.
É fácil sugerir que se “deixe crescer o défice” ao mesmo tempo que se pede um perdão da dívida. Mas vamos pressupor (e é uma preposição relativamente segura de se fazer) que os nossos credores não estão disponíveis para perdoar ou reestruturar a nossa dúvida. Nesse cenário, o que poderemos fazer para baixar a dívida pública que, ainda esta semana, o Banco de Portugal nos veio dizer que é de 252,4 mil milhões de euros? A resposta é esta: não podemos ter défices e temos de gerar excedentes orçamentais primários para reduzir o endividamento.
Há duas maneira de se fazer isto: a maneira correta e a maneira de Manuela Ferreira Leite. Comecemos por aquilo que Manuela Ferreira Leite fez quando era ministra das Finanças.
Em 2002, para alcançar a meta de 3% fixada por Bruxelas, Ferreira Leite introduziu portagens na CREL e vendeu a rede fixa de telecomunicações à PT, conseguindo um encaixe extraordinário de 653 milhões.
No ano seguinte, agarrou em 11,4 mil milhões de euros de dívidas por cobrar do Fisco e Segurança Social e vendeu-as ao Citigroup por 1,76 mil milhões de euros, encaixe que serviu novamente para reduzir artificialmente o défice. Uma operação que o Tribunal de Contas arrasou, avisando na altura que iria ter “um efeito positivo sobre as receitas em 2003, mas um efeito negativo sobre as receitas de 2004 e anos seguintes”. E assim foi; o Citigroup garantiu um juro astronómico de 17,5% com a operação e o Estado teve um prejuízo futuro de 300 milhões.
Como se não bastasse, Ferreira Leite transferiu ainda o Fundo de Pensões dos CTT para a CGA para garantir receita extra para baixar o défice (novamente de forma artificial), tal como fez no ano seguinte Bagão Félix com o fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos.
Ferreira Leite antecipou receitas e adiou despesas. As reformas estruturais adiam receitas e antecipam despesas.
Esta forma de baixar o défice é errada porque apenas adia o problema. Portugal foi adiando o problema até 6 de abril de 2011, dia em que José Sócrates e Teixeira dos Santos chamaram a troika.
A forma correta de resolver o problema é garantir que o país tem receitas iguais ou superiores às despesas, o que se deve traduzir num equilíbrio orçamental e num excedente primário que permita ir reduzindo a dívida. Isso faz-se de duas maneiras: colocando os serviços públicos a pão e água (e esta frase é um claro exagero porque os serviços públicos são hoje melhores do que eram no tempo de Ferreira Leite) e mantendo a carga fiscal elevada (mesmo assim, é mais baixa do que a média europeia).
Se não quisermos viver para sempre com o cinto apertado em nome do défice, podemos fazer reformas estruturais (como fez a troika, por exemplo, com a Lei dos Compromissos) que não dão frutos imediatos, mas garantem sustentabilidade das contas no futuro. Ferreira Leite antecipou receitas e adiou despesas. As reformas estruturais adiam receitas e antecipam despesas. A primeira dá resultados imediatos e hipoteca o futuro; a segunda implica custos e sacrifícios presentes, mas garante sustentabilidade no futuro.
Mas nem todos acreditam em reformas. “Eu não acredito em reformas, quando se está em democracia. E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia”. Esta frase foi dita por Manuela Ferreira Leite, em 2008, quando era líder do PSD.
No ano passado, e pela primeira vez na história da democracia, Portugal conseguiu chegar a setembro com um saldo orçamental positivo. Graças às reformas que foram feitas nos últimos anos. Foram nove meses com as contas equilibradas. Este ano, não fosse o Novo Banco, e voltaríamos a ter excedente. E para 2020, Mário Centeno prevê novamente um superávite, de 0,3%. Isto tudo em democracia, com o povo a eleger livremente os seus governantes. Com a credibilidade conquistada junto dos credores (os tais a quem Ferreira Leite quer pedir um perdão de dívida), os nossos juros estão em mínimos históricos (0,7% a 10 anos), gerando poupanças que têm ajudado a amenizar os problemas nos serviços públicos e a aliviar os impostos. Isto tudo em democracia.
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