“É bué estranho, esta cena do vírus da China”
A teoria da evolução ajuda-nos a perceber bem como, num repente, aparece um vírus letal e contagioso que pode liquidar proporções muito grandes de populações de qualquer organismo vivo.
A frase que uso no título roubei-a à passageira do banco de trás do comboio, que explicava a uma amiga que o marido tinha um bocado a mania das conspirações, mas talvez tivesse alguma razão. Realmente há todo um mundo dos interesses ligados às vacinas, para além dos efeitos imediatos na economia mundial. É realmente estranho que de repente apareça assim um vírus do nada, quando sempre houve morcegos, explicava.
Matt Ridley tem um livro muito interessante que responde bem a estas observações. Chama-se a Rainha de Copas, é um livro sobre biologia da evolução, e a Rainha de Copas do título é a da Alice no País das Maravilhas, a rainha que corria porque tudo à volta passava rapidamente e, para se ficar no mesmo lugar, era mesmo preciso correr.
A teoria da evolução – que convém lembrar que não diz respeito à sobrevivência do mais forte, mas à sobrevivência do mais apto – ajuda-nos a perceber bem como, num repente, aparece um vírus letal e contagioso que pode, em alguns casos, liquidar proporções muito grandes de populações de qualquer organismo vivo.
Por exemplo, quando a mixomatose entrou na Europa em meados do século XX – depois de ter sido voluntariamente introduzida na Austrália com o objectivo de controlar a praga de coelhos –, 90 a 95% da população de coelho foi dizimada (arrastando atrás de si diminuições muito importantes das populações de predadores que tinham nesta espécie a sua principal presa, como o lince).
O mesmo pode acontecer com qualquer das culturas agrícolas de que dependemos (é incrivelmente pequena a quantidade de espécies de que a humanidade depende para se alimentar, cerca de uma dúzia de plantas e cinco animais, com o arroz, o milho e o trigo a serem responsáveis por 60% das calorias e proteínas que obtemos das plantas).
O aparecimento e difusão de uma nova doença ou praga, muito bem descrito no livro que citei e que recomendo fortemente, resulta da reprodução por via sexuada.
Quando a reprodução se faz por via assexuada, os filhos são exactamente iguais ao progenitor, como no caso dos clones que hoje produzimos para agricultura, florestas e pecuária, que são exactamente iguais, com a mesma informação genética.
Sabemos exactamente o que queremos daquela planta, animal ou fungo, trabalhamos as características que nos interessam – produtividade, resistência à salinidade do solo, resistência ao frio, ou à seca, ou um parasita, ou quaisquer outras – e criamos clones, para obter de forma mais eficiente o que pretendemos obter.
O que ganhamos em eficiência com a estabilização das características que valorizamos, perdemos na capacidade de adaptação que a reprodução sexuada garante.
Fungos, bactérias e outros elementos potencialmente patogénicos vão produzindo gerações e gerações (pode ser de meia em meia hora em organismos de vida curta) que, sendo provenientes de reprodução sexuada, nunca são exactamente iguais às anteriores, herdando características dos dois progenitores, numa mistura que é sempre original, a que se juntam alterações provenientes de mutações.
Em qualquer momento uma destas gerações pode ganhar características que lhe permitam furar os sistemas de defesa dos seus hospedeiros – nós ou outro organismo vivo qualquer – dando origem a uma doença nova para que alguns de nós não têm defesas.
Quando isto acontece, e se a doença for mortal, os que não têm resistências são afectados, os que têm resistências não são afectados e, consequentemente, a população do hospedeiro tende a alterar-se de modo a que os que são resistentes se tornem dominantes e a nova doença acabe por deixar de ser um problema grave.
Os novos organismos, sejam do coronavírus, sejam das vacas loucas, sejam da pneumonia hemorrágica viral do coelho, seja da ferrugem do trigo, são uma ameaça permanente que justifica as políticas de conservação da biodiversidade: nunca sabemos quando precisamos de um pequeno macaco resistente ao vírus da sida para compreender o que o torna imune à doença, usando essa informação a nosso favor.
Não há nada de estranho nestas alterações genéticas e no facto de, de tempos a tempos, nos termos de confrontar com elas: primeiro identificar exactamente a estirpe que provoca a doença, depois aplicar procedimentos sociais imediatos para reduzir a velocidade de propagação – por exemplo, os 14 dias de quarentena que se pensa que podem existir entre a contaminação e a manifestação dos sintomas da doença, neste caso – procurar novos tratamentos para a ameaça identificada e desenvolver vacinas, o mais rapidamente possível.
A alternativa a estes métodos científicos – os tais interesses de que falava a minha companheira de comboio – é bem conhecida de quem estudou a peste negra medieval ou a mais recente gripe espanhola que, em quatro meses de 1918, matou tanta gente como a primeira guerra mundial em quatro anos: deixar morrer os que não têm resistências e esperar que os outros transmitam as suas resistências à descendência.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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