Precisamos de um “nevoeiro londrino” para passarmos à acção?

  • Luís Veiga Martins
  • 3 Março 2020

As emissões globais de CO2 provenientes do uso de energia (e que compõem grande parte dos gases de efeito estufa) permaneceram inalteradas, mesmo com a economia mundial a crescer quase 3%.

Em dezembro de 1952, a cidade de Londres foi assolada por um nevoeiro intenso que ficou conhecido como o Great Smog of London. Tal fenómeno resultou de um período de tempo frio, combinado com um anticiclone e condições sem vento, que praticamente paralisou a cidade durante quatro dias. As condições atmosféricas registadas provocaram uma espessa camada de poluição resultante, na sua grande maioria, da utilização crescente do combustível fóssil predominante no aquecimento das casas, propulsão dos motores dos automóveis, sistema de transportes públicos (autocarros) e grande parte da indústria inglesa – o carvão.

Na realidade, não estávamos perante um tradicional nevoeiro londrino. Rapidamente houve comboios e aviões cancelados, e os carros abandonados nas ruas passaram a ser acontecimentos comuns durante esses dias. A crise instalou-se na cidade!

As consequências para a população reforçaram a excecionalidade do que estava a acontecer. Os problemas respiratórios provocados nas crianças, idosos e doentes levou à morte imediata de 4.000 pessoas. Estatísticas posteriores apontam para cerca de 12 000 mortes prematuras. Cerca de 150.000 pessoas foram sujeitas a tratamentos médicos e muitos animais morreram. Como resposta a este “acontecimento”, em 1956, foi assinado o Clean Air Pact, a fim de reduzir a poluição nas áreas urbanas ao restringir a utilização do carvão nas mesmas.

No final do ano passado, o mundo foi surpreendido pelo aparecimento de um novo vírus. Este denomina-se coronavírus (conhecido cientificamente como COVID-19) e causa infeções respiratórias graves como uma pneumonia. Não estando clara a sua origem, esta tem vindo a ser associada a um mercado de venda de alimentos e animais vivos (peixe, mariscos e aves) em Wuhan (República Popular da China). Até final de fevereiro, foram já confirmados cerca de 85.000 casos e cerca de 2.930 mortes, mais de 97 % na China. Fora deste país, surgiram casos em 53 países, com baixas registadas em dezanove deles.

Pouco se sabe ainda sobre este novo vírus, mas os sintomas desta possível epidemia levaram não só a uma atuação rápida por parte das autoridades chinesas (a evacuação de grandes zonas, cidades e aeroportos), mas também a que as pessoas começassem a usar máscaras protetoras tentando, naturalmente, prevenir qualquer tipo de situação. Apesar de ter surgido em paragens longínquas, o fenómeno da globalização tem vindo a aumentar o receio de uma propagação mundial.

Mas qual a relação entre o Great Smog of London e o surto do COVID-19?

As alterações climáticas estão na ordem do dia há muito tempo. Os passos dados para a sua reversão têm sido alguns, mas não têm sido dados de maneira uniforme e generalizada. São cada vez mais evidentes as consequências da atuação lenta de quem tem capacidade para agir e fazer frente à aceleração de um processo de aquecimento global que ainda tentamos acreditar que é possível contrariar.

Apesar de tudo, de acordo com a International Energy Agency, as emissões globais de CO2 provenientes do uso de energia (e que compõem grande parte dos gases de efeito estufa) permaneceram inalteradas em 33 giga toneladas em 2019, mesmo com a economia mundial crescendo quase 3%. Boas notícias!

Os desafios associados às alterações climáticas encerraram em si um conjunto de oportunidades a nível económico. De acordo com a organização New Climate Economy, a transição para uma economia de baixo carbono terá um impacto económico direto de 26 biliões de dólares até 2030. A implementação de um conjunto de medidas ambiciosas poderá gerar mais de 65 milhões de novos empregos no mesmo ano, o equivalente à mão de obra atual do Reino Unido e Egito combinadas.

Nos últimos anos, temos vindo a ser confrontados com vários “nevoeiros londrinos” que ou são muito localizados, passando inclusive despercebidos, ou mais espalhados geograficamente, fazendo com que não nos apercebamos a não ser através de um post das redes sociais ou de um vídeo, dependendo do emissário. Será que ainda nos lembramos do verão de 2003, na Europa, em que morreram cerca de 70 000 pessoas devido às ondas de calor?

Porém, quando nos toca diretamente então somos como a rã que pula imediatamente quando em contacto com o calor. Se o aquecimento for gradual, a rã vai-se habituando, aclimatando e adaptando. Assim somos nós.

Será que só um acontecimento como o de 1952, numa cidade ou num país desenvolvido, com a cobertura mediática e eventual impacto do coronavírus, vai fazer despertar definitivamente o mundo e os decisores políticos para garantir que ao invés de se acomodarem e serem indiferentes à sucessão de acontecimentos, demonstrem claramente uma vontade de mudar o rumo dos acontecimentos decorrentes das alterações climáticas?

As medidas tomadas pela China para conter o coronavírus, levaram a uma quebra da atividade industrial e energética e do número de voos internos. Com isto as emissões de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono (CO2), com origem na produção energética, caíram em duas semanas cerca de 25%. E as imagens de satélite comprovam o declínio dramático nos níveis de poluição na China. São necessárias mais evidências para se passar à ação?

Os desafios associados às alterações climáticas apelam à urgência de atuação, norteados pelos compromissos que os países assumiram sob a égide das Nações Unidas. Caso isso não aconteça, não tiramos partido das oportunidades de crescimento económico ligadas às alterações climáticas, levando também a que o retorno positivo que a inação poderá ter a curto prazo seja irremediavelmente anulado no futuro com impacto em todos nós.

  • Luís Veiga Martins
  • Chief Sustainability Officer da Nova SBE

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