40 anos a reclamar
Em 2019, foram apresentadas 413.100 queixas. Se pensarmos que Portugal tem cerca de quatro milhões de famílias, percebemos que, em média, só 10% delas apresentaram uma reclamação.
Este é o meu primeiro artigo dos “enta”. Sim, é verdade, fiz recentemente 40 anos. E, como habitualmente desde o advento das redes sociais, foram muitas as pessoas que tiveram a amabilidade de me dar os parabéns no Facebook. A maioria não me conhece pessoalmente e, no entanto, algumas das mensagens de felicitações vieram acompanhadas do desejo de que estivessem gramaticalmente bem formuladas. A minha fama de exterminadora de erros na utilização de Língua Portuguesa precede-me.
Mas, confesso, é uma fama com o respectivo proveito. Quem está nas relações públicas dos meios de comunicação pode atestá-lo, que não é raro receberem um e-mail meu a pedir a correcção de um erro ortográfico, de pontuação ou de sintaxe. Há quem encontre nesta actuação exibicionismo, vontade de ser irritante ou uma obsessão com a Gramática. Mas faço-o por imperativo de cidadania, convencida, segundo o aforismo de Gandhi, de que devo fazer parte da mudança que quero ver no mundo. E, por isso, não me resumo a e-mails para jornais e canais de televisão e não me restrinjo a questões gramaticais. Pelo contrário, reclamo muito.
No Memorando de Entendimento que assinámos com a troika, uma das prioridades para a economia portuguesa era aumentar a concorrência. Encontramo-la como objectivo para os sectores da saúde, das telecomunicações e serviços postais, dos transportes, da energia e dos outros serviços. Há mesmo um capítulo que lhe é inteiramente dedicado.
Há um ano, na sua missão de acompanhamento pós-programa, a Comissão Europeia concluiu que, em vários sectores, ainda havia uma série de barreiras àquela e que a margem para melhorar o ambiente de negócios através da política de concorrência era grande. Essa conclusão foi obtida também pela OCDE, na avaliação que fez em 2019 à economia portuguesa. E, olhando em detalhe para os resultados do último Global Competitiveness Report, publicado pelo Fórum Económico Mundial, percebemos que o nosso desempenho nesse indicador é negativo.
Incentivar a concorrência promove a eficiência e a inovação. Mas é também a melhor forma de proteger os consumidores e de salvaguardar os seus direitos ‒- e dos trabalhadores, mas isso ficará para outro dia. As posições dominantes no mercado estão, muitas vezes, associadas a desrespeito pelo consumidor. Sabendo que este não tem muitas alternativas, as empresas portuguesas seguem um novo adágio, o de que o cliente nunca tem razão. Sobretudo quando o sistema judicial não funciona bem, algo que as instituições acima referidas também apontam, ou quando os reguladores são ineficazes.
E, por isso, quando queremos contactar telefonicamente uma empresa que nos vendeu um qualquer produto ou nos presta um serviço, muitas vezes só encontramos um número cuja chamada tem um custo além do tarifário base, em clara violação da Lei n.º 24/96 e da Directiva 2011/83/UE. Por isso, temos operadoras de telecomunicações a cobrar conteúdos e serviços de internet que se subscrevem inadvertidamente, com um simples toque, de forma dissimulada, a roçar a burla, o chamado wap billing. Por isso, a empresa a quem comprámos online um livro não o entrega no prazo com que se comprometeu e não se responsabiliza pelos prejuízos que a sua falha gerou, nem se dignando a pedir desculpa pelo atraso. Por isso, o carteiro devolve encomendas alegando que os destinatários são desconhecidos nas suas próprias moradas.
Quanto ao serviço postal dos CTT, tivemos a semana passada a notícia de que a ANACOM obrigou a baixar os preços por falta de cumprimento dos indicadores de qualidade. E, de repente, temos um vislumbre de como deveria ser o mundo, em contraste com a sensação que experimentamos quase sempre de que somos impotentes perante os atropelos aos nossos direitos enquanto consumidores.
Mas a verdade é que tomamos a priori essa noção de que não há nada a fazer. Sentimo-nos incapazes mesmo sem tentar agir. De acordo com o relatório anual referente ao Livro de Reclamações, em 2019, foram apresentadas 413.100 queixas. Se pensarmos que Portugal tem cerca de quatro milhões de famílias, percebemos que, em média, só 10% delas apresentaram uma reclamação; suspeito que é um número bastante inferior ao de publicações indignadas no Facebook a propósito de empresas abusadoras e desrespeitadoras.
Infelizmente, o relatório da Direcção-Geral do Consumidor não nos conta qual o desfecho das reclamações recebidas, mas aposto que conhecê-lo reforçaria o típico sentimento de impotência e de impunidade, até porque é fácil ignorar reclamações quando elas não são uma prática generalizada e parecem uma excentricidade de quem reclama. Mas sabendo que 97% do montante das coimas impostas pela Autoridade da Concorrência não é pago, percebo que até consumidores exigentes achem os exercícios de cidadania uma quixotice.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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