Trump governou pelo Twitter. Como vai ser a comunicação de Biden?

Biden prepara-se para assumir as rédeas da nação, depois de um mandato de Trump marcado pelas polémicas relacionadas com a governação via Twitter. Como será com o novo presidente?

A chegada de Donald Trump à Casa Branca em 2016 inaugurou um novo estilo de governação no país. De uma forma inédita até então, o ainda presidente foi usando o Twitter para falar ao país e fazer valer as suas posições, recorrendo à plataforma, também, para atacar adversários e comunicar com o eleitorado.

Vencedor das Presidenciais de novembro de 2020, Joe Biden prepara-se para assumir os comandos da nação. E, mesmo não tendo ainda tomado posse como 46.º presidente dos EUA, é já possível antever uma governação com um estilo bem diferente de comunicação. Mais institucional, menos confrontativa.

Comecemos pela equipa. Biden escolheu uma mulher, Jen Psaki, para ser a responsável pela comunicação da Casa Branca. Não é a sua primeira experiência deste tipo. No currículo, Psaki soma experiências como a de porta-voz do Departamento de Estado quando John Kerry era Secretário de Estado. Foi ainda diretora de comunicação do antigo presidente, Barack Obama.

Segundo a NPR, uma das novidades está já definida: ao contrário dos antecessores, Jen Psaki tenciona promover conferências de imprensa diárias na Casa Branca, colocando-se à disposição de perguntas dos jornalistas. Tal deverá permitir à imprensa um maior escrutínio das ações do presidente e uma maior fluidez na informação.

“Penso que, mais do que em qualquer outra altura, parte da responsabilidade de ser porta-voz da Casa Branca é reconstruir a confiança com os americanos”, afirmou àquela rádio. Na mesma entrevista, prometeu basear-se “em factos” tanto quanto possível.

Pelo contrário, Donald Trump ficou conhecido pelos constantes arrufos com a imprensa. Em várias ocasiões, categorizou a imprensa de “inimiga do povo”, adotando uma postura de claro confronto na generalidade das conferências de imprensa.

A própria figura de porta-voz esteve várias vezes em causa, com Trump a registar quatro desde o início do mandato: Sean Spicer, Sarah Sanders, Stephanie Grisham e Kayleigh McEnany. O primeiro não resistiu ao cargo mais do que 182 dias. E quem se recorda de Anthony Scaramucci, escolhido por Trump como diretor de comunicações a 21 de julho de 2017, que acabou por sair em rutura com o presidente dez dias depois da nomeação?

Jen Psaki não estará sozinha. Toda a equipa de comunicação da Casa Branca é composta por mulheres, algo que a equipa de transição garantiu ser a primeira vez que acontece na História dos EUA.

Não é tudo. O ataque ao Capitólio dos EUA a 6 de janeiro de 2021 expôs ainda mais o método de comunicação divergente entre o presidente cessante e o presidente eleito. Donald Trump recorreu várias vezes às redes sociais para comentar o ataque e chegou mesmo a publicar um vídeo gravado, no qual apelava à desmobilização dos atacantes (seus apoiantes), ainda que tenha continuado a reforçar a ideia (falsa) de que a vitória de Biden resultou de uma eleição manipulada.

Joe Biden, nesse dia, surgiu em direto nas televisões. Tinha planeado fazer um discurso sobre o estado da economia e os estímulos, mas acabou por endereçar diretamente o caos que se vivia no Capitólio: “Peço a esta multidão que recue e permita que a democracia avance”, atirou. “Isto não é decente, é o caos.”

A par de tudo isto, há ainda diferenças assinaláveis na própria postura de Trump e Biden. O primeiro debate televisivo das Presidenciais, moderado por Chris Wallace, trouxe a lume essas diferenças, com Trump a atacar Biden repetidamente, enquanto este último, várias vezes, optou por falar diretamente para as câmaras.

Numa análise de opinião à linguagem corporal dos então candidatos para a CNN, publicada pouco depois do debate, Bill McGowan e Juliana Silva, respetivamente fundador e consultora do grupo de consultoria de comunicação Clarity Media Group, escreveram que “a expressividade” dos dois políticos encontrava-se em polos opostos do espetro.

“O comportamento padrão de Trump foi de zangado, hostil e desdenhoso de todo o processo. Na verdade, quando Chris Wallace finalmente repreendeu Trump por quebrar as regras do debate que a sua própria campanha acordou, as suas contorções faciais pareciam as de uma criança petulante a ser repreendida. Biden, por outro lado, frequentemente manteve um olhar acessível e empático, que ressalta uma das suas maiores vantagens sobre o adversário: a simpatia”, consideraram os especialistas naquela análise.

The White House/Flickr

Uma presidência mais “profissional”…

Francisco Seixas da Costa prevê que a presidência de Joe Biden será “muito profissional” em comparação com a de Trump. “Não diria by the book, mas será uma presidência segura, forte”, calcula o embaixador, em conversa com o ECO.

Contudo, perante a alta fragmentação do povo norte-americano, Seixas da Costa estima que Biden terá pela frente um enorme desafio comunicacional: “Biden tem de encontrar uma linguagem para esta América, para cidadãos que não votaram nele e que o detestam. Não pode esquecer essa América”, destaca, recordando que tanto Biden como Trump tiveram das maiores votações em termos nominais da história do país.

O embaixador lembra ainda que a comunicação de Trump “funcionou de forma brilhante” para o seu eleitorado e recorda que “a utilização intensa do Twitter permitiu-lhe garantir a possibilidade de fugir à mediação da comunicação tradicional”, evitando, por exemplo, algumas conferências de imprensa.

Deste modo, a eficácia da comunicação de Biden estará em jogo, depois de uma experiência com Trump em que as palavras do presidente até faziam mover os mercados. “O modo como a comunicação com Trump se passou e a sua eficácia, entre aspas, acabarão seguramente por fazer pensar as pessoas que estão à volta de Biden sobre a melhor maneira de estabelecer uma relação com os cidadãos”, diz ainda o embaixador.

Biden tem de encontrar uma linguagem para esta América, para cidadãos que não votaram nele e que o detestam. Não pode esquecer essa América.

Francisco Seixas da Costa

Embaixador

… e também mais “tradicional”

Gregory P. Margarian, professor de Direito da Washington University School of Law em St. Louis, também começa por recordar que “o estilo de comunicação de Trump” não teve precedentes. “Ele usou o Twitter tanto para anunciar políticas importantes como para lançar ataques mesquinhos contra oponentes de quem não gostava”, acrescenta.

O professor recorda ainda que Trump também evitou dar entrevistas “a jornalistas que não fossem bastante conservadores”. “Biden vai ser, provavelmente, muito mais tradicional na sua abordagem”. Recorde-se que Biden começou no Senado no início dos anos 70. Ele usou formas mais antigas para comunicar. Vai certamente usar as redes sociais, porque é um meio importante de comunicação. No entanto, não espero que ele use o Twitter de forma semelhante à de Trump”, resume.

Contas feitas, “Biden vai provavelmente dar conferências de imprensa com regularidade, e vai provavelmente usar as redes sociais como forma suplementar de informar o público, ao invés de uma forma de expressar as suas opiniões”, diz Gregory P. Margarian. “Também deverá fazer mais discursos públicos numa ampla variedade de fóruns, ainda que a pandemia vá complicar isso”, conclui.

EPA/Morry Gash

Novo presidente terá “menos alcance”

A atitude mais confrontativa de Donald Trump também lhe foi garantindo mais interações nas redes sociais. Concordando que Joe Biden será mais “institucional” na forma de comunicar, João Miguel Lopes, professor de marketing digital do IPAM, antevê que o democrata terá um “alcance” menor nas redes sociais.

“Há aqui uma situação que parece uma coisa mais ou menos discreta, que tem a ver com a atitude no meio: quando falamos de marketing político, tem tudo a ver com o carisma do candidato ou da personagem de que estamos a falar. Tem a ver com o conteúdo em si, a forma como o apresenta — se é de uma forma mais agressiva, menos agressiva. Tem a ver com as plataformas”, continua.

Dito isto, João Miguel Lopes vai direto à questão: “Não vejo que Biden vá fugir de uma comunicação no Twitter. Vai tentar, também por aí, comunicar. Mas não vejo que tenha o alcance ou [promova] o mesmo tipo de publicações que Trump partilhava.”

Assim, para o professor do IPAM, a atitude de Biden deverá ser “muito mais institucional” e “low-profile“, mais em linha com o estilo do antigo presidente Barack Obama. Para Biden, as redes sociais serão “sempre um acessório”, “ao contrário de Trump, que sabia perfeitamente que o que partilhava no digital iria criar furor”.

Expulsão gera debate sobre o poder das redes

Durante os últimos anos, Trump acabou por beneficiar de um estatuto especial nas plataformas como o Twitter. A poucos dias do final do mandato, acabou expulso desta rede, e de outras, como o Facebook, por decisão tomada por estes grupos privados.

A suspensão permanente do presidente dos EUA, por ter instigado a violência no Capitólio, gerou uma discussão pública mundial e expôs o poder deste tipo de empresas no controlo do espaço público. Pôs também fim a uma era em que o Twitter, em concreto, beneficiou da exposição de Donald Trump e das suas dezenas de milhões de seguidores.

A postura mais institucional de Biden, e o seu menor “alcance”, como apontaram os especialistas ouvidos pelo ECO, poderá representar mais um desafio para estas empresas. Uma comunicação confrontativa deverá gerar menos interações. E interações significam receitas.

Para já, a proposta do Digital Services Act da Comissão Europeia deverá regulamentar o que podem as redes sociais fazer em situações como a que levou à expulsão de Trump, prevendo, por exemplo, a suspensão após um primeiro aviso por quebra da lei ou dos termos e condições do serviço. É, no entanto, uma abordagem exclusivamente europeia a uma problemática global. Resta saber qual será a posição do novo inquilino da Casa Branca.

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