Quando a pobreza energética toca a (quase) todos

  • Ana Rita Antunes e Pedro Martins Barata
  • 19 Janeiro 2021

Estima-se que 27% dos agregados familiares portugueses estejam em pobreza energética. É, por isso, um fenómeno mais vasto do que outras formas de pobreza e deve ter uma política própria.

Hoje a “pobreza energética” tornou-se omnipresente no discurso público. No entanto, a expressão não designa senão uma realidade que acompanhou a sociedade portuguesa desde sempre: o facto de que largas faixas da população portuguesa não são servidas nem têm meios, para aquecer e arrefecer as suas casas a valores consentâneos com os rendimentos das famílias portuguesas.

Estima-se que 27% dos agregados familiares portugueses estejam em pobreza energética. É, por isso, um fenómeno mais vasto do que outras formas de pobreza e deve ter uma política própria.

É interessante perceber que noutros países, o fenómeno da pobreza energética já foi identificado há décadas. No Reino Unido, a prevalência identificada na década de 1970 de mortes prematuras em casas com má qualidade de isolamento levou progressivamente à introdução de medidas específicas de apoio a agregados familiares para fazer face às contas de aquecimento de inverno, assim como à identificação de grupos de risco vulneráveis a quebras de serviços de energia. No Reino Unido, há exemplos de famílias colocadas em casas do estado, ou com aquecimento pago pelo estado quando não conseguem aquecer as suas casas e os médicos de família encaminham os doentes com problemas respiratórios para os departamentos sociais que avaliam as condições de habitabilidade.

Em Portugal, talvez por virtude do mito do país de clima ameno e temperado, bem como a prevalência de outras “pobrezas” mais prementes, levou a que o tema fosse sempre menorizado. Assumiu-se durante demasiado tempo que a pobreza energética seria resolvida com a introdução de nova tecnologia e novos serviços de eficiência energética. Contudo, não é isso que vemos quando confrontados a semana passada com uma vaga de frio continuada. Existem razões consensuais na base da pobreza energética que ainda estão por resolver:

– O “stock” residencial português continua com taxas de reabilitação muito baixas, não podendo atingir, mesmo com reabilitação “business as usual”, níveis de conforto térmico razoáveis;

– Os preços de eletricidade no mercado liberalizado, apesar de terem historicamente caído pós-liberalização, não se fizeram refletir na taxa de esforço dos agregados familiares mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, a eletrificação dos consumos de energia para aquecimento e arrefecimento não tem, na maior parte dos casos, o grau de exigência necessário. Os equipamentos de aquecimento (aquecedores a óleo, ventiladores e semelhantes) utilizados pela maioria das famílias são ineficientes e muito consumidores de energia. Não temos ainda o hábito cultural (e a capacidade financeira) para a instalação de sistemas eficientes de aquecimento e arrefecimento.

O atraso estrutural do parque imobiliário português em termos de conforto térmico tem implicações claras: no desempenho educativo das nossas crianças, no estado de saúde dos nossos idosos, no rendimento disponível das famílias mais carenciadas, na fatura energética do país e no clima do planeta. Tudo o que possamos fazer para reduzir a pobreza energética não é apenas política social, é também política económica, educativa, cultural e ambiental. A política de combate à pobreza energética tem de ser estruturada a médio prazo para dar frutos e não pesar nos cofres do estado e de quem assegura a tarifa social.

A forma mais eficiente de combate à pobreza energética, é apostar na reabilitação dos edifícios a médio prazo. Esta estratégia e plano tem de ter várias componentes:

1) Exigência nos resultados: Transformação dos edifícios em edifícios com necessidades quase nulas de energia;

2) Implementação regional: cada região tem necessidades diferentes de aquecimento e arrefecimento bastante tipificadas e a estratégia nacional tem de ser executada ao nível regional para conseguir os melhores resultados;

3) Os recursos financeiros públicos para a política de eficiência energética têm de ser todos revistos à luz desta estratégia (incluindo o Plano para a Promoção da Eficiência do Consumo, Fundo Ambiental, Fundo de Eficiência Energética, Plano
de Recuperação e Resiliência);

4) Os fundos públicos devem ser gastos inversamente proporcional aos rendimentos de cada família. Quem tem rendimentos mais baixos têm mais apoio público para a reabilitação, apoio que vai diminuindo com o aumento dos
rendimentos das famílias;

5) Mecanismos de divulgação da informação. As políticas e dinheiros públicos não podem chegar apenas aos que têm internet, computador e são informaticamente literatos. É preciso diversificar os meios de comunicação com os cidadãos para que a informação chegue a todos.

Mas tal acontece no meio de um quase deserto de conhecimento factual sobre o que pode ser feito por compradores e vendedores de imobiliário, proprietários e inquilinos. Há muito que pode ser feito, mesmo ao nível do inquilino, para diminuir a sua fatura energética nestes dias. As cooperativas europeias de energia renovável têm uma preocupação acrescida com este tema e desdobram-se em iniciativas para apoiar os seus membros. A Coopérnico também já começou este caminho com o aconselhamento direto aos nossos membros e clientes que nos contactam. Alguns conselhos podem ser revistos na página Poupa Watts e convidamos todos a acompanharem os seus consumos na plataforma ID Energia.

Para que não se ouça daqui a vinte anos o que ainda hoje se constata diariamente: que há mais frio nas casas portuguesas do que nas casas finlandesas ou polacas. Queremos casas portuguesas, suecas e polacas quentes, sem ter de recorrer a combustíveis fósseis ou apoio estatal para pagar a fatura ao final do mês.

  • Ana Rita Antunes
  • Coordenadora Executiva da Cooperativa Coopérnico
  • Pedro Martins Barata
  • Membro da direcção da Coopérnico - Cooperativa de Energias Renováveis e consultor em energia e alterações climáticas da Comissão Europeia, OCDE, Banco Mundial e Ministério do Ambiente

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