Alunos só vão poder usar internet grátis para as aulas, diz o secretário de Estado para a Transição Digital

O Governo quer entregar portáteis e net grátis a todos os alunos e professores, mas com limites para evitar abusos. Está previsto que as operadoras limitem o serviço apenas às atividades escolares.

O Governo quer pôr um computador nas mãos de todos os alunos e professores do país, num total de um milhão e cento e trinta mil máquinas, todas acompanhadas de um hotspot com internet grátis. O número representa cerca de 12% da população portuguesa e, de forma a evitar abusos e a não arrasar com o setor das telecomunicações, está previsto que as operadoras limitem o serviço apenas às atividades relacionadas com o contexto escolar.

Em entrevista ao ECO, o secretário de Estado para a Transição Digital, André de Aragão Azevedo, explica porque é que, dos 435 mil computadores que já estão contratualizados, apenas 84 mil, menos de 20%, chegaram efetivamente aos alunos mais carenciados: há escassez de equipamentos no mercado, até a nível internacional, e falta de componentes.

Fala ainda da literacia digital e mediática nas escolas e de como reduzir a infoexclusão, que diz ser a principal desvantagem de um Portugal cada vez mais digital.

Veja, oiça ou leia aqui as outras partes da entrevista:

O Governo está a emprestar computadores e hotspots com internet gratuita. Vai haver internet para todos?

O desafio da Transição Digital é o de que, na prática, temos de interagir com todas as áreas de governação. Em alguns casos podemos correr o risco de estar a ser mal interpretados, por estarmos a entrar na esfera de competências específicas de outros ministérios.

Do ponto de vista do conceito, o que posso dizer é que nós nos envolvemos desde o início naquilo que foi o desenho e o conceito da Escola Digital, que tem as componentes que também já são conhecidas, que passam por um equipamento, por uma conectividade móvel, por ferramentas digitais que permitam comunicação à distância e a colaboração, por gestão de sala de aula, por manuais e ferramentas digitais de aprendizagem, e por capacitação digital dos professores e de alunos. Essas são as seis componentes que previmos em termos “macro” do conceito, que está a ser implementado.

Sala de aula neste momento é coisa que não existe, porque é a sala de estar de cada um. Estamos em ensino remoto.

Existe a sala virtual. É o novo conceito, é o novo paradigma. Quando digo gestão de sala de aula, é gestão de sala de aula virtual. Não estou a falar de sala física, que pode funcionar em contexto físico da escola ou à distância. A ideia é que permita dar a ferramenta ao professor que possa ter uma experiência de gestão de sala de aula de base digital, mantendo o controlo do processo. Garantindo que replicamos em quase tudo, garantindo que os alunos que estão na sala de aula são aqueles que é suposto estarem e fazerem o registo, que a capacidade de gestão de alunos e de monitorização, por exemplo, de assiduidade, existe e é possível ser feita numa base digital. Basicamente é a adaptação a um contexto digital das preocupações normais de um funcionamento de uma sala de aula.

Foram distribuídos 100 mil portáteis desde novembro. Agora estão contratualizados mais 335 mil. Os 84 mil que já chegaram aos alunos são já desta segunda vaga de equipamentos ou são da primeira ainda?

São da primeira.

Então, da segunda vaga de 335 mil, ainda não houve nenhum computador a ser distribuído?

Não.

O plano está em que fase e porque é que está demorar tanto tempo?

Desde o início, foi claro — e por isso é que há o problema de se darem prazos, que são cronogramas expectáveis naquilo que seria uma situação de normalidade — que a situação de emergência em que vivemos não pode deixar de ter impacto. O que acontece é que, por um lado, o Governo entendeu que deveria, como não podia deixar de ser, garantir o cumprimento escrupuloso das regras de contratação pública e isso implica concursos públicos internacionais com uma escala enorme e com uma dilação em termos temporais muito grande.

O segundo aspeto tem a ver com o desafio de, no mercado internacional, haver escassez não só de computadores prontos como de componentes que, às vezes, impedem a assemblagem e a oferta e disponibilização por alguns fornecedores de equipamentos completos. Por vezes é um ecrã, noutras é um CPU…

Neste momento há um défice efetivo.

Há — internacional — porque decorre daquilo que é uma procura mundial a computadores porque toda a gente está a passar pelo mesmo desafio.

O Programa Escola Digital prevê a distribuição de mais de um milhão de computadores a professores e alunos. Mas, neste momento, estão contratualizados, no máximo, 435 mil computadores. Faltam mais computadores.

É um processo gradual que tem diferentes fases. A ideia é começar pelas áreas mais prioritárias. O que se entendeu desde o início foi comprar uns primeiros 100 mil computadores como reserva de emergência para responder face àquilo que o mercado conseguia disponibilizar de imediato para responder aos casos mais gritantes, para que ninguém fosse impedido de assistir em caso de novo confinamento. E é isso que está a permitir responder nesta fase. Os alunos que há um ano eventualmente não tinham respostas, agora já podem ter.

100 mil computadores, como é óbvio, fazem muita diferença, tem muito impacto e permite responder aos casos já identificados. E a ideia é irmos alargando sucessivamente com critério de prioridade, que decorre da menor capacidade económica dos respetivos agregados familiares. A ideia é que, com esta nova tranche dos 335 mil computadores, se consiga fechar todo o ciclo de alunos que são beneficiários da Ação Social Escolar, escalões A e B.

Depois teremos uma outra fase, à frente, que há de permitir a universalização e para a qual estamos ainda a trabalhar para que ela possa ocorrer.

São quantos milhões?

Um milhão e 130 mil computadores é o objetivo da universalização, porque é o número de alunos e de professores que temos em Portugal. São um milhão e nove mil alunos e são 120 mil professores.

O objetivo é dar um computador a cada um?

Sim.

É muito computador. Ou seja, são computadores que são emprestados com um dispositivo de internet. Essa internet é ilimitada?

A ideia que também está tratada com os operadores é de que haja aqui uma capacidade de fazermos alguma seleção do tipo de serviços que estão disponíveis para que consigamos garantir que o consumo de dados só é elegível se for para contexto educativo.

Esse plano é a quanto tempo?

Não lhe vou dar timings porque, no contexto que atravessamos…

Mas é, por exemplo, até ao final da legislatura?

Não lhe vou dar… não me quero comprometer [com um prazo], porque o nosso objetivo é que seja o mais breve possível. Não vou inventar. Porque não depende de nós. Está condicionado a uma dinâmica do mercado que é, em parte, aleatória. Estaria a especular. Nós temos o nosso cronograma do que gostaríamos e do que seria possível mesmo com regras de contratação pública apertadas. Mas há um fator externo que não controlamos, que é a capacidade dos fornecedores de entregarem. Isso implica que tenhamos aqui alguma cautela nas datas e não vou mesmo poder avançar.

A ideia é que, com esta nova tranche dos 335 mil computadores, se consiga fechar todo o ciclo de alunos que são beneficiários da Ação Social Escolar, escalões A e B.

André de Aragão Azevedo

Secretário de Estado para a Transição Digital

“No digital nunca está tudo feito”

Porque é que a literacia mediática não é hoje ensinada bem cedo nas escolas?

Há, com certeza, vários fatores. É uma área que nos preocupa e para a qual estamos a trabalhar, para garantir que o nível de exposição dos nossos jovens àquilo que é uma cultura mediática, e cívica, e de intervenção de cidadania, mais rica, com novas perspetivas e nova capacidade crítica, é algo que vamos querer promover e que está pensado em termos de conceito do que deve ser uma escola digital alinhada com as preocupações do século XXI.

O que se ensina hoje às crianças nas escolas é suficiente para garantir uma base saudável de literacia digital às futuras gerações?

Estamos a fazer um caminho. Não diria que está tudo feito. No digital nunca está tudo feito. Mas acho que estamos melhor do que estivemos no passado.

É preciso termos a capacidade de nos distanciarmos um bocadinho do momento histórico e percebermos — quando olhamos para as grandes tendências, e vemos isto com um espaço temporal um bocadinho mais alargado — que temos feito um caminho muito interessante. O aspeto que gostava de salientar é que Portugal tem convergido nesta matéria como em quase todas com aquilo que é a média europeia e, em algumas situações, suplantando a média europeia, afirmando-se como um líder, neste caso, digital.

Há algumas dimensões em que isso já acontece. Já estamos hoje reconhecidos internacionalmente por algumas dessas conquistas e, portanto, na parte da escola, com o investimento que está a ser feito, que é significativo, é obviamente uma área de foco importantíssima. Estamos a formar as novas gerações. Não podemos deixar que a escola não reflita, também, esse novo quadro mental e de vivência social que queremos promover.

André Azevedo, Secretário de Estado da Transição Digital, em entrevista ao ECO - 11FEV21
Hugo Amaral/ECO

Este trabalho está a ser feito com o Ministério da Educação? Até poderia eventualmente envolver novas unidades curriculares ou alterações na parte curricular, que incluíssem, por exemplo, formação cívica digital?

A abordagem que nós propomos não é tanto de garantir uma disciplina em concreto sobre digitalização. É mudar o paradigma de aprendizagem e de ensino para uma base digital by default. O que queremos é que toda a experiência de aprendizagem, seja ela numa disciplina de base tecnológica ou não tecnológica, tire partido do potencial que o digital pode introduzir.

Isso implica, desde logo, equipamentos (computadores), implica conectividade, que é essencial, porque um computador sem conectividade não responde (e sobretudo agora, em contexto pandémico, em que temos os alunos estão em casa e muitas vezes com fibra na escola). Temos de garantir que o aluno, mesmo em casa, tem condições de acessibilidade ao espaço digital. Mas que também corresponde àquilo que é uma replicação de um modelo que nós encontramos hoje no espaço da vida laboral das pessoas, da população ativa, que é de facto um contexto de mobilidade.

Não faz sentido que nós restrinjamos o processo de aprendizagem ao perímetro escolar. Um dos impactos que a digitalização introduz, e a escola não é exceção, é o esbatimento destas fronteiras mais restritas. Na realidade, aprende-se em qualquer local, trabalha-se em qualquer local, vive-se em qualquer local.

É a desmaterialização da escola.

Também está a acontecer. Naturalmente, sem fundamentalismos e sem acabar com aquilo que é um paradigma de décadas, que continua a fazer sentido, porque promove outro tipo de competências que se relacionam ou decorrem da interação pessoal e social, e que tem de continuar a existir em contexto escolar.

A abordagem que nós propomos não é tanto de garantir uma disciplina em concreto sobre digitalização. É mudar o paradigma de aprendizagem e de ensino para uma base digital by default.

André de Aragão Azevedo

Secretário de Estado para a Transição Digital

Infoexclusão é “o nosso maior handicap

Para os mais velhos, como é que se assegura que a transição digital é inclusiva desse ponto de vista, quando ainda temos pessoas que usam regularmente cheques e vão fazer operações bancárias básicas aos balcões?

Esse é uma das preocupações. Por isso é que o pilar número um do Plano de Ação para a Transição Digital tem a ver com pessoas e com capacitação digital. A abordagem que nós propomos e que desenhámos tem uma lógica de ciclo de vida: começa com a Escola Digital, em que queremos mudar o paradigma como acabei de referir; tem depois uma forte componente de requalificação, de upskill e reskill para a nossa população ativa, que tem que ganhar novas competências para ganhar outro nível de competitividade e de incorporação de valor; e depois tem também uma terceira dimensão que tem a ver com a infoexclusão em que nós estamos referenciados, mesmo em termos de rankings internacionais, como sendo provavelmente o nosso maior handicap [desvantagem].

Mas o plano é um documento. O que é que está previsto em concreto?

Deixe-me só terminar a radiografia. Nós tínhamos, em 2019, 22% de população que declarava nunca ter utilizado a internet. Os dados que já temos do Eurostat do final de 2020 — e já estão de alguma forma confirmados — mostram-nos que esse valor baixou para 18%.

A pandemia teve um grande efeito.

Teve um grande efeito, mas mais do que isso. Teve um efeito, como é óbvio, em todos os países, mas nós também aqui conseguimos convergir. Decrescemos muito mais. É verdade que o patamar de partida era superior, mas do ponto de vista mesmo percentual decrescemos muito mais do que os outros em termos de população infoexcluída. E isso é muito bom porque mostra um esforço e uma capacidade de resposta e de agilidade na resposta a um contexto diferente que outros países não tiveram.

Sim, mas em concreto: que medidas?

Medidas concretas, o que está previsto em termos de Plano de Ação é um programa de atribuição de competências básicas digitais a esta franja da população que corresponde, sensivelmente, a cerca de dois milhões de pessoas. E o que queremos e está pensado em termos de plano é conseguirmos, até 2023, dar essas competências a cerca de um milhão de portugueses. Desse ponto de vista, alinharmos com a média europeia em termos de população infoexcluída. Acreditamos mesmo que não dominar essas competências significa deixar pessoas à margem da própria participação social e da capacidade de, profissionalmente serem ativas e tirarem partido das suas competências e capacidades.

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