Francisco Proença de Carvalho:”É uma ingenuidade achar que as decisões não são influenciadas pelo mediatismo”

Tribunais, mediatismo na justiça, corrupção, juízes e gestão da pandemia. Temas abordados na entrevista a Francisco Proença de Carvalho, sócio da Uría da área de contencioso.

Francisco Proença de Carvalho é sócio da Uría Menéndez – Proença de Carvalho e é mais um dos advogados escolhidos pela Advocatus para a rubrica de “Como é fazer contencioso em tempos de pandemia”. Atualmente é Sócio do departamento de Contencioso e Arbitragem do escritório de Lisboa. Centra a sua prática em todas as áreas profissionais de Direito Contencioso e Arbitragem, e acumula experiência em fusões e aquisições.

Acusa os portugueses de terem uma tendência “bastante auto-destrutiva” de nos considerarmos um dos países mais corruptos do mundo, fala da necessidade de uma task force de especialistas que tivesse acompanhado António Costa na gestão da pandemia e assume que se deveria reduzir o tempo das férias judiciais.

Francisco Proença de CarvalhoHenrique Casinhas 14 outubro 2019

As férias judicias são um tema que é politicamente recorrente. Perante este contexto da pandemia, concorda que deveriam ser reduzidas, de forma a recuperar o tempo perdido? Parece-me uma solução simples mas que terá alguns anti – corpos.

Compreendo a existência das férias judiciais. São especialmente relevantes, por exemplo, para a organização de trabalho dos meus colegas em prática individual ou de escritórios de menor dimensão que exercem um papel essencial no Sistema de Justiça. No entanto, temos que ter alguma sensibilidade e flexibilidade perante a situação que, infelizmente, estamos a passar. Em 2020, o contexto da pandemia e as férias judiciais deixaram parte relevante do sistema judicial “suspensa” cerca de 5 meses. Na atual vaga, é provável que ultrapassemos os 2 meses de suspensão dos processos não urgentes. Neste contexto, creio que seria importante que, pelo menos este ano, houvesse alguma redução das férias judiciais de verão limitando-as ao mês de agosto. Nem que fosse pelo exemplo simbólico de que há um esforço para recuperação do tempo de suspensão. Não nos podemos esquecer que o sistema não existe para nós, mas para prestar serviços imprescindíveis aos cidadãos e empresas.

Fala-se ou falou-se em situações de pre rutura do SNS. E do sistema de Justiça? O que se pode esperar com esta paragem derivada da pandemia?

As estatísticas disponíveis dizem-nos que, nos últimos anos e até 2019, houve progressos na duração média dos processos e na redução do número de pendências, embora estes resultados tivessem sido facilitados pelo menor número de processos entrados no sistema. No entanto, parece-me inevitável que esta paragem tenha uma repercussão relevante no futuro próximo do sistema judicial. Não só vamos ter que recuperar o “tempo perdido” em relação aos processos pendentes, como tudo indica que esta crise (como quase todas) terá um potencial de geração de litigância bastante grande e levará a um aumento de pendências. Estou convencido que haverá ainda maior pressão sobre o setor.

Quem serão as maiores vítimas desta paragem?

Não gosto da expressão “vítimas” pelo funcionamento do judicial, quando há tantas “verdadeiras vítimas” da pandemia, seja na saúde, seja na economia, na sociedade, na vida familiar. Apesar de tudo, não fomos obrigados a encerrar como tantas outras atividades e, regra geral, não tivemos que deixar totalmente de trabalhar. É preciso não esquecer que, em princípio, o trabalho dos advogados não se faz exclusivamente nos tribunais. O Sistema de Justiça tem sofrido, mas os processos urgentes continuaram a ser tramitados e, especialmente nesta vaga, nota-se um esforço em tentar resolver o que pode ser resolvido.

Em qualquer caso, não tenho dúvidas que, por um lado, esta crise atrasou a resolução de muitos processos importantes e, por outro, tem tido um impacto muito relevante nas condições de vida de vários advogados que exercem a sua profissão em regime liberal e com muito poucos apoios em situações como esta. É uma situação preocupante.

O discurso dos atrasos na Justiça é recorrente. Já foram adiadas 50 mil diligências devido à Covid-19. Esta passará agora sempre a ‘desculpa’ para esses mesmos atrasos?

É uma desculpa que durante algum tempo terá fundamento. Seja como for, apesar da melhoria que acima referi nos últimos anos, ainda estamos longe da produtividade desejada e da que outros países que nos são próximos têm conseguido. Para lhe dar um exemplo drástico da minha própria carreira: estou a trabalhar num caso que começou em 1987 (tinha eu 7 anos e nem sonhava que seria advogado) e em 2021 ainda não transitou em julgado. Certamente que a culpa não foi da pandemia…

Não é fácil ser PM ou ministra da saúde nesta fase. Mas como avalia a atuação do Governo ao lidar com a pandemia? Estamos reféns das opiniões de demasiados especialistas?

Como num processo judicial o julgamento sério só poderá ser feito quando a matéria de facto estiver estabilizada e este pesadelo terminar. No campo do controlo da pandemia já fomos o melhor aluno, depois passámos a pior e agora parece que somos outra vez um dos melhores, o que demonstra bem a dificuldade e volatilidade desta situação.

Feita esta ressalva, a perceção que tenho é que as mensagens foram algumas vezes erráticas e temos um Estado demasiado burocrático com dificuldade em responder rápida e eficazmente às exigências que este tempo nos trouxe. No entanto, creio que há erros que são compreensíveis pois claramente ninguém estava preparado para o que nos aconteceu. Creio que nos devemos perguntar: outro Governo faria melhor? Nunca saberemos, mas ao longo deste ano não vi propriamente serem apresentadas alternativas concretas ao caminho seguido, pelo que entendo que foi mais importante a estabilidade e coesão neste combate do que entrarmos num excesso de “litigância política” que pouco beneficiaria os Portugueses.

Não gostaria de estar no lugar de quem tem a missão hercúlea de nos governar num momento nunca antes vivido na nossa história democrática e que afeta todo o mundo, pelo que não posso deixar de reconhecer o assinalável esforço de convergência dos principais protagonistas políticos no combate a esta pandemia e no apoio aos setores mais afetados (incluindo parte da oposição). Tenho várias divergências sobre o modelo de desenvolvimento económico defendido pelo Governo e parece-me difícil que não sofra a prazo o desgaste político deste intenso combate, mas os seus protagonistas não deixarão de ficar na história como os que tiveram que manter o país “à tona de água” num momento sem precedentes nesta geração.

Quanto aos especialistas, esta pandemia tem-nos dado a conhecer os mais variados. Desde os epidemiologistas e intensivistas das redes sociais até outros verdadeiramente especialistas que desconhecíamos, mas que assumiram um papel relevante nesta fase. No entanto, opinar é claramente mais fácil do que decidir e, em democracia, isso só pode caber ao poder executivo que assume a responsabilidade democrática pelas suas decisões e é suposto ter em conta todas as variáveis para além da epidemiológica.

Creio que nos devemos perguntar: outro Governo faria melhor? Nunca saberemos, mas ao longo deste ano não vi propriamente serem apresentadas alternativas concretas ao caminho seguido, pelo que entendo que foi mais importante a estabilidade e coesão neste combate do que entrarmos num excesso de “litigância política” que pouco beneficiaria os Portugueses”

Assumo a minha ignorância nesta matéria. Mas, mais do que as reuniões fastidiosas no Infarmed, preferia que o Governo fosse permanentemente assessorado por uma task-force reduzida de especialistas de elite para ajudarem cientificamente nas suas decisões.

Francisco Proença de CarvalhoHenrique Casinhas 14 outubro 2019

Fazer contencioso em confinamento é possível?

A nossa vida ficou limitada em muitas vertentes tão relevantes e esta não foi exceção. Várias diligências foram adiadas, os prazos não urgentes suspensos, pelo que provavelmente houve um impacto nesta área como não houve noutras, como por exemplo, laboral e comercial. Mas, especialmente este ano, não me parece que tenha havido uma paragem tão acentuada e tem havido uma procura de soluções para tentarmos resolver os problemas dos nossos clientes dentro das condições que temos.

Aprendi a viver de uma forma diferente nesta época e tento retirar alguns ensinamentos sobre o que é realmente importante na vida. Apesar disso, como tanta gente, anseio diariamente pelo regresso à normalidade da minha atividade profissional.

Para lhe dar um exemplo drástico da minha própria carreira: estou a trabalhar num caso que começou em 1987 (tinha eu 7 anos e nem sonhava que seria advogado) e em 2021 ainda não transitou em julgado. Certamente que a culpa não foi da pandemia…”

As diligências feitas à distância são uma miragem, um discurso enganoso do poder político? A Justiça ainda não é suficientemente tecnológica?

Talvez não pareça de fora, mas houve alguma evolução tecnológica no Sistema de Justiça. Eu ainda advoguei no tempo em que não havia Citius e sei bem a utilidade que esta plataforma representa hoje para nós. Independentemente da pandemia, creio que temos que prosseguir um caminho da digitalização e modernização do sistema que continua repleto de dossiers, papeis e demasiada burocracia. Seria importante que todos os processos estivessem bem organizados digitalmente para serem mais fáceis de gerir e tratar pelos diferentes intervenientes, melhorando a eficiência.

Quanto a diligências à distância creio que há cada vez mais soluções tecnológicas que as permitem realizar com razoável qualidade. Mas, na minha opinião, têm uma utilização limitada. Podem servir para situações em que se discutem questões puramente jurídicas ou técnicas, mas não substituem a importância do contacto presencial. Por exemplo na justiça penal, a imediação e a tensão própria das audiências presenciais são fundamentais para a realização da Justiça. A Justiça é uma atividade profundamente humana, em que a perceção pessoal será sempre importante, pelo que considero isso insubstituível por qualquer videoconferência.

Dá-se ao “luxo” de poder recusar casos?

Aprendi com o meu pai uma máxima: “não são os advogados que escolhem os clientes, mas sim estes que escolhem os advogados”. Sinto que é sempre uma honra quando os clientes escolhem o nosso escritório para prestar serviços jurídicos. Portanto, não gosto de recusar casos, mas numa firma ibérica com as características da Uría Menéndez – Proença de Carvalho é sempre necessária uma análise prévia à aceitação, no sentido de verificar se há algum conflito de interesses e se o assunto se enquadra no perfil do escritório para que possamos dar a melhor assessoria possível. No âmbito dessa análise, por vezes, temos que nos dar a esse “luxo” de recusar casos.

O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?

Por vezes não podemos aceitar determinados clientes, especialmente por conflitos de interesse. Num escritório de dimensão internacional como o nosso esse é um tema muito relevante. Faz parte das regras e eu aceito-as com tranquilidade. Somos uma equipa com diferentes áreas e o interesse coletivo do escritório deve prevalecer sobre o interesse individual dos advogados que nela trabalham. Não tenho dúvidas que esse espírito de firma nos dá mais força junto dos clientes.

Em qualquer caso, há solidariedade e “cross selling” entre Departamentos que potenciam as nossas oportunidades.

Aprendi com o meu pai uma máxima: “não são os advogados que escolhem os clientes, mas sim estes que escolhem os advogados”.

Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?

Não sinto isso. Somos um escritório “full service”. As diferentes áreas são complementares e trabalham, frequentemente, em conjunto. Temos 7 sócios no Departamento do Contencioso e uma jovem e competente equipa de cerca de 30 advogados com um volume de trabalho relevante, pelo que sentimos o mesmo reconhecimento que todos os Departamentos do escritório.

O contencioso já foi mais valorizado do que é?

Obviamente que houve uma grande evolução na advocacia que, no essencial, me parece positiva. Hoje em dia há muitos advogados que nunca vestiram uma toga ou foram a um Tribunal (com exceção das intervenções obrigatórias do estágio). Isso não me choca. Apesar de considerar importante que a formação dos advogados se faça com uma experiência o mais transversal possível, entendo que os advogados “sem toga” não são menos advogados, como também não acho que continuar a vestir toga e a advogar nos Tribunais nos diminua. Todas essas vertentes valorizam a advocacia, pois o cliente que hoje está a negociar um contrato, amanhã poderá ter que estar a discutir o seu cumprimento num Tribunal e gosta ter assessoria especializada nas diferentes fases. Pessoalmente, gosto de ter uma prática o mais diversificada possível. Tenho muito orgulho em vestir uma toga e alegar num Tribunal, mas também aprecio participar numa boa negociação de um contrato.

E as boutiques nesta área fazem sentido?

Claro que sim. Desde logo porque têm menos potencial de conflitos de interesse. Considero que a existência de diferentes modelos de escritórios só valoriza a classe, permite mais concorrência e qualidade de serviço aos clientes.

Já foi ameaçado ou insultado em tribunal?

Que eu tenha reparado, não. Mas eu normalmente não reparo nessas coisas.

Qual foi o caso em que saiu do tribunal e pensou “saí-me mesmo bem!”? Sem falsas modéstias.

Tento sair sempre com a consciência tranquila de que fiz o que estava ao meu alcance para promover a Justiça e defender os interesses dos meus clientes. Sei que os advogados são, por vezes, percecionados como pessoas de “ego grande”, mas tenho ideia que não sou muito de autoelogios e autocomplacências. Desde muito cedo na minha carreira tive a oportunidade e privilégio de trabalhar em casos complexos e interessantes, pelo que quando termino uma audiência ou um processo já estou a pensar no próximo desafio profissional.

Para mal da minha saúde, sou mais do estilo de “sentir na pele as dores dos clientes” nos momentos de aperto do que a felicidade nos momentos de vitória ou sucesso. No entanto, aquilo que mais emociona é ver a cara de pessoas que, apesar de inocentes, viram a sua vida despedaçada anos e anos por processos judiciais persecutórios e injustos, e no fim são absolvidas. A memória da expressão de reconhecimento dessas pessoas e dos seus familiares é aquilo que concluo como um “saí-me mesmo bem”, ainda que o resultado pudesse ser o mesmo com qualquer outro advogado.

Seja como for, devo reconhecer que gostaria muito de ter aquele momento clássico da série de advogados “Boston Legal” em que dois advogados celebram uma vitória judicial, num rooftop, com um copo, um charuto e uma bela conversa. Mas, na vida real, isso não me tem acontecido, também não sou de demasiados copos e não fumo, aprecio mais uma boa música para festejar. Pode ser que com a idade a coisa melhore…

A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?

Não é fácil um advogado explicar isso, pois é normalmente visto como “parcial”. Portanto, digo às pessoas que opinam com grande “justiceirismo” que só entenderão a importância dos princípios do Estado de Direito se tiverem o azar de serem confrontadas na vida com um processo injusto e para o qual necessitam que se apliquem princípios tão estruturantes como a presunção de inocência (que vive uma grande crise na atualidade, diga-se). Já aconteceu a algumas dessas pessoas terem o azar de virem a perceber o significado das minhas palavras ao lidarem com o sistema. Só perceberam que estavam erradas quando tiveram essa experiência pessoal.

Visto que os advogados podem ser vistos como “parciais”, creio que já era tempo de os jornalistas (cada vez mais especializados na área da Justiça) promoverem uma maior serenidade na abordagem dos casos judiciais, serem mais pedagógicos nestas matérias e ajudarem a comunidade a compreender que a Justiça não se faz apenas condenando. Enquanto continuarem a promover julgamentos públicos pré-condenatórios de cidadãos com base em meras suspeitas ou acusações e deixarem as absolvições para notas de rodapé, não será fácil as pessoas entenderem o verdadeiro sentido da Justiça.

Creio que já era tempo de os jornalistas (cada vez mais especializados na área da Justiça) promoverem uma maior serenidade na abordagem dos casos judiciais, serem mais pedagógicos nestas matérias e ajudarem a comunidade a compreender que a Justiça não se faz apenas condenando”

Como é a sua relação com a magistratura. É do tipo de advogado conflituoso, diplomata, respeitador ou mais provocador?

Regra geral, a experiência que tenho é que as relações entre advogados e magistrados são boas e de respeito mútuo. Com diferentes papéis, estamos todos ao serviço da comunidade e da administração da justiça. Admito que possa haver alguns (poucos) magistrados que acham que os advogados são dispensáveis e só atrapalham os seus desígnios. Mas, nesse caso, o problema não é certamente dos advogados, mas dos que exercem uma função para a qual, claramente, não têm perfil.

Um advogado deve ter bom senso e sentido de oportunidade. Procuro que o meu comportamento profissional se balize pelo sentido de Justiça e pela defesa dos interesses dos clientes. Para isso, conforme o momento, por vezes, temos que ser mais agressivos/conflituosos, diplomatas ou provocadores. Ninguém espera que um advogado seja “passivo” quando, por exemplo, os direitos fundamentais do seu cliente estão a ser arbitrariamente esmagados e isso, infelizmente, acontece. Em qualquer caso e independentemente do estilo necessário para cada momento, tento ser respeitador das Instituições e dos seus protagonistas. Se não for, terei que mudar de profissão.

Penso que a melhor maneira de nos darmos ao respeito perante a magistratura é defendermos no limite das nossas capacidades, com profissionalismo, frontalidade, transparência e honestidade intelectual, os interesses dos nossos clientes.

Se fosse ministro da Justiça quais seriam as suas três prioridades?

Antes de mais, é preciso ter noção que o Ministro da Justiça em Portugal tem poderes bastante limitados no funcionamento prático do sistema cuja autonomia foi entre nós levada ao extremo, em comparação com muitos outros países democráticos. Assim, o seu papel está essencialmente na disponibilização de meios que, por sua vez, está normalmente dependente das disponibilidades concedidas pelo Ministério das Finanças.

Portanto, neste contexto de poderes limitados, seriam estas as minhas 3 prioridades: Digitalização e desburocratização do setor; adaptação do sistema penal e prisional ao Século XXI, conferindo maior dignidade às pessoas e um verdadeiro sentido de “reintegração social”; promoção do acesso à Justiça (na modalidade pública e na resolução alternativa de litígios) que tem custas incomportáveis para a classe média e uma avaliação independente do sistema.

E bastonário da Ordem dos Advogados?

Defender, energicamente, os direitos fundamentais dos cidadãos; ajudar os advogados na transição digital da profissão, disponibilizando através da OA as plataformas necessárias para uma prestação de serviços mais eficiente; ressuscitar a importância da Ordem na definição das políticas para o setor da Justiça.

E, finalmente, se fosse PGR?

É um exercício muito difícil para alguém que não tem, nem de perto nem de longe, “espírito de Procurador”.

Diria que para poder assumir a responsabilidade pelo funcionamento e os resultados do MP, o PGR tem que exercer o poder que a Constituição lhe reserva e exercer a autoridade democrática que resulta da sua nomeação por órgãos de soberania democráticos. É difícil compreender a compatibilidade com a regra democrática da teoria por alguns defendida de que qualquer procurador individualmente considerado concentra em si mesmo o poder da Instituição MP e não está sujeito a orientações hierárquicas. O MP é por Estatuto uma magistratura hierárquica que deve guiar-se por critérios de legalidade e objetividade. Portanto, o PGR deve zelar afincadamente pelo cumprimento daqueles princípios por parte de todo o MP. Creio, portanto, que é necessário um efetivo, claro e transparente exercício da hierarquia dentro dessa magistratura.

Adotaria também uma estratégia de combate efetivo e pedagógico à justiça de “pelourinho” e à violação do segredo de justiça que, como parece notório, é fruto de uma lamentável promiscuidade entre determinadas pessoas do setor da justiça e determinadas pessoas da comunicação social.

Promoveria uma maior exigência no cumprimento dos prazos de inquérito pois considero incomportável para a saúde do sistema que existam investigações “vivas” durante anos e anos sem uma decisão de arquivamento ou acusação. Como pode constatar, certamente, não duraria muito como PGR…

Francisco Proença de CarvalhoHenrique Casinhas 14 outubro 2019

Qual foi ou é para si o melhor ministro/ministra da Justiça desde o 25 de abril?

Do ponto de vista prático, tem vingado entre nós o princípio de autogestão do sistema, pelo que nunca houve propriamente uma política de Justiça que se refletisse sobre o modelo e as suas necessidades de reforma. Creio que todos os Governos foram vivendo nessa “confortável inércia” de não tocarem muito no sistema, para além de alterações de legislação. Assim, não é fácil destacar um Ministro da Justiça com verdadeiro impacto na política de Justiça, como sucedeu noutros sectores, como a Saúde ou a Educação. Sem prejuízo disso, salvo raras exceções, creio que temos tido Ministros com espírito humanista e consciência clara da importância dos princípios fundamentais do Estado de Direito. Poderia referir vários, mas tenho especial consideração e simpatia pelo Senhor Juiz Conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio.

Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?

No contexto de alarido que se vive no nosso país, é difícil falar objetivamente sobre este tema sem corrermos o risco de sermos mal interpretados, se não respondermos o que é “politicamente correto”. Portanto, a resposta segura seria, certamente, eu responder qualquer coisa como isto: “a obsessão pela corrupção nunca é excessiva”. Mas, pessoalmente, acho que todas as obsessões são excessivas e contraproducentes, pois servem de justificação para tudo e em vez de nos ajudarem a enfrentar os problemas desviam-nos a atenção do essencial e da realidade.

Também eu sou intolerante com a corrupção que, como vemos em alguns países, mina totalmente as sociedades. Creio, no entanto, que há uma grande tendência para confundir realidade/factos com perceção. Ora, há uma diferença entre a perceção e a realidade. Os estudos que se vão fazendo sobre o tema consideram pouco a realidade e incidem mais sobre a perceção e, nesse capítulo, aparecemos muito mal cotados. A perceção é alimentada por muitas coisas que extravasam a realidade do dia a dia, como por exemplo, notícias sensacionalistas nos Media, redes sociais e “meia dúzia” de processos mediáticos da Justiça. Essa “alimentação da perceção” de corrupção interessa a alguns setores da Justiça que, com essa permanente narrativa e pressão sobre os políticos, reclamam permanentemente mais poder, mais meios e menos direitos para os cidadãos visados em processos.

Temos uma tendência bastante auto-destrutiva de nos considerarmos um dos países mais corruptos do mundo. Não creio que sejamos. Por um lado, desde a implementação da democracia e da aplicação em Portugal da generalidade das regras internacionais vigentes de combate a este fenómeno, temos melhorado de uma forma assinalável e, em geral, já não somos reféns de fenómenos corruptivos. Por outro lado, não creio que os nossos níveis de corrupção sejam especialmente diferentes dos países democráticos e de economia de mercado comparáveis com Portugal. Se fossemos menos burocráticos e menos “estatizados” certamente que poderíamos melhorar mais.

Seja como for, gostava que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024 não se ficasse pelo papel, pois tem um conjunto de ideias no campo da prevenção e educação que me parecem importantes para melhorarmos o nosso sistema.

Temos uma tendência bastante auto-destrutiva de nos considerarmos um dos países mais corruptos do mundo”

 

Pretende algum dia pôr em prática a regra de denúncia obrigatória por parte de advogados que se deparem com suspeitas de lavagem de dinheiro?

Não me parece que seja uma questão de pretender ou não. Espero não ter que por em prática, mas como advogado tenho obrigação de cumprir com a legislação vigente.

Seja como for, considero perigosos modelos de prevenção que pretendem que sejamos todos polícias uns dos outros.

Se pudesse escolher, em que jurisdição (europeia ou mundial) trabalharia e porquê?

Não há sistemas perfeitos, mas gosto do inglês e norte-americano. Essencialmente, porque existe uma boa harmonia entre consciência e proteção dos direitos fundamentais, transparência, pragmatismo, eficiência, qualidade e escrutínio democrático do sistema.

Os advogados têm horizontes mais abertos que os magistrados (juízes ou procuradores)?

Não me parece que os horizontes abertos se definam pela profissão. Os horizontes abrem-se através da cultura, da formação, das experiências e da mentalidade de cada um perante a vida. Como em tudo, há pessoas com todas as características humanas nas diferentes profissões: das melhores às piores.

As decisões judiciais – de primeira ou segunda instância – são muito dependentes ou influenciadas pelo mediatismo?

É uma ingenuidade acharmos que não são. A minha experiência diz-me que são cada vez mais e isso é trágico para a realização da Justiça e confiança no sistema. Ainda assim, também devo reconhecer que há muitos exemplos de Juízes que cumprem a nobre função que têm e decidem, exclusivamente, com base nos factos, provas e no Direito. Mas, ao contrário do que seria suposto, em alguns casos mediáticos, é necessárias uma coragem extrema e uma capacidade de resistência aos múltiplos ataques públicos que são dirigidos a quem, com fundamento, não decide de acordo com a “opinião instituída”. Compreendo perfeitamente que nem todos tenham estofo para decidir bem neste contexto mediático desequilibrado.

Mudaria as regras dos advogados poderem falar de casos concretos, de forma a que o vosso trabalho fosse mais compreendido?

Num mundo ideal não mudaria, porque entendo que o único local apropriado para se fazer Justiça é uma sala de Tribunal. Mas, no mundo real, em que todos falam dos nossos casos menos nós, talvez faça sentido flexibilizar essas regras.

Gostaria que houvesse uma instância totalmente independente – com maioria de não magistrados – que avaliasse a ética e imparcialidade de um magistrado. Um canal direto entre cidadãos, advogados e magistratura?

Não especificamente para avaliar a ética e imparcialidade, mas creio que seria muito importante que houvesse uma avaliação menos corporativista, mais independente, transparente e democrática do sistema. Por isso, sempre me fez sentido que houvesse uma maior componente de membros fora da magistratura e designados por órgãos democráticos, nos Conselhos Superiores da Magistratura e Ministério Público.

A prestação de contas dos nossos magistrados é necessária?

Num sistema que funcione regularmente, essa “prestação de contas” faz-se, por um lado, nos processos através das várias instâncias de recurso e, por outro, com um sistema de avaliação eficaz e exigente. A perceção que tenho é que ainda temos muito caminho a fazer neste âmbito.

Arbitragem versus tribunais. Este meio de justiça privada vai engolir os tribunais, mais cedo ou mais tarde?

Não acredito que isso vá acontecer, mas excecionando a justiça penal (em que não creio que haja “privatização” possível e caberá sempre – e bem – ao Estado), os mecanismos de resolução alternativa de litígios são muito úteis, devem ser acessíveis e promovidos sem preconceitos.

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