Sobre a reinvenção do capitalismo
Quando se debate o tema da reinvenção do capitalismo, muitas vezes levanta-se o fantasma do decrescimento, das consequências de uma interrupção abrupta do mantra do crescimento contínuo
«If you can dream it, you can do it.” Walt Disney
O capitalismo é um sistema económico que assenta na livre iniciativa, na propriedade privada dos meios de produção e na prossecução do lucro. A par da revolução tecnológico-científica, na génese da Revolução Industrial, e da expansão das democracias liberais, foi um sistema decisivo para o progresso (material) dos últimos 200 anos. Desde 1820, o PIB per capita mundial cresceu mais de 13 vezes (de 712 USD, em 1820, para 10 mil USD, em 2019) e a esperança média de vida duplicou (de cerca de 40 anos, em 1820, para cerca de 80 anos, em 2019), em grande medida porque a mortalidade infantil diminui drasticamente.
O progresso dos últimos 200 anos não só melhorou as condições de vida da maioria das pessoas, como foi capaz de amortecer um crescimento populacional ímpar na história da Humanidade. Em apenas 200 anos, a população mundial cresceu de mil milhões de pessoas, em 1820, para quase 8 mil milhões. Porém, esta aceleração extraordinária na história da Humanidade teve um sério preço, de que nos apercebemos agora: por um lado, a séria degradação da biosfera; por outro, a erosão da diversidade cultural, por via da globalização de estilos de vida dominantes, e o aumento das desigualdades e surgimento de novos fenómenos de exclusão e mal-estar social.
Procurando ilustrar aspetos a melhorar no capitalismo, a sua irracionalidade, vejamos o exemplo da produção de uma t-shirt de algodão (1). Sem ter consideração os impactos decorrentes do seu uso, da produção do algodão (algures nos EUA?), ao fabrico da t-shirt (algures na Ásia?), até à sua venda em loja (algures na Europa?), uma única t-shirt de algodão consome, em média, 2,7 mil litros de água (o suficiente para satisfazer três anos do consumo médio de uma pessoa), viaja 14 mil quilómetros (dando origem a uma pegada carbónica quase equivalente ao seu peso), os químicos utilizados como pesticidas, herbicidas e no seu tingimento contaminam solos, rios e oceanos, e do seu preço de venda final menos de 5% terá por destino remunerar os 100 pares de mãos dos trabalhadores envolvidos ao longo de toda a cadeia de valor.
Assim, quando compramos uma t-shirt por sete ou oito euros numa loja de Lisboa – e achamos que fizemos um bom negócio –, obviamente não estamos a pagar os seus impactos ecológicos e sociais, presentes e futuros. Em linhas muito gerais, é este o drama do capitalismo: ser um sistema focado no curto prazo e na criação de riqueza, no qual o valor dos bens não incorpora os seus diversos impactos, presentes e futuros, isto é, decorre apenas do preço que o mercado está disposto a pagar por eles.
Sendo este modelo de capitalismo insustentável, o que fazer então para o reformar, se possível para o tornar regenerativo? Vejamos 5 Rs importantes para a reforma do capitalismo:
Reduzir, Reciclar e Reutilizar: É urgente transitar de um modelo de desenvolvimento assente numa economia linear, isto é, numa lógica extração-produção-desperdício (lógicas lineares em planetas finitos estarão sempre condenadas ao fracasso), para um modelo de desenvolvimento assente numa economia circular. Em 2019, a economia global consumiu 100 mil milhões de toneladas de recursos naturais (a maior dos quais não renováveis) e bateu o recorde de emissão de gases com efeito de estufa, tendo sido circular em apenas 8,6% (2). Os níveis atuais de impacto na biosfera e desperdício de recursos são totalmente inviáveis. Atualmente, já seriam necessários dois planetas Terra para que os nossos estilos de vida, consumistas e materialistas, fossem viáveis – porém, só temos um (e emigrar para Marte não é opção) Reduzir, reciclar e reutilizar são prioridades urgentes.
Reinventar: é fundamental investir em larga escala em R&I – por exemplo, novas tecnologias e novos materiais –, bem como em novos modelos de negócio – menos assentes na compra e posse dos ativos, e mais no seu usufruto. Paralelamente, e para que os hábitos de consumo e produção se reinventem, à escala e com a rapidez necessárias, será fundamental reinventar também as regras do jogo, isto é, redesenhar o conjunto de soluções ao alcance da política pública – por exemplo, novos incentivos, regulamentação e política fiscal.
Mas há mais um R fundamental para a reinvenção do capitalismo: o de Recusa. Temos simplesmente de recusar um sistema assente na exploração do planeta e das pessoas. Os desequilíbrios que o atual modelo de desenvolvimento provoca na biosfera e na coesão social são uma séria ameaça à nossa qualidade de vida, às democracias liberais e, até, à viabilidade da presença humana na Terra. Basicamente, o capitalismo padece de três vícios que a teoria económica deve passar a recusar: a prevalência do curto prazo sobre o longo prazo, a prevalência do económico e objetivo sobre o social, o ecológico e o subjetivo (como a felicidade), e a prevalência da liberdade sobre a responsabilidade.
Regressado ao exemplo da t-shirt de algodão, já há várias opções ao nível dos materiais e das tecnologias de produção, que já podem ser introduzidas nas cadeias de valor das empresas. Mas o mais importante será reinventarmos os nossos estilos de vida e as políticas públicas, no sentido de acelerar a transição para a sustentabilidade. Temos de consumir e produzir menos e melhor. Para isso, para além do preço, todos os produtos deveriam tornar pública a sua pegada ecológica e social (algo que tecnologias emergentes como o blockchain permitem) e o seu preço deveria internalizar todos os seus impactos atuais e futuros. É verdade que a generalidade dos bens aumentaria de preço, mas essa tendência seria amortecida por uma melhor distribuição da riqueza, para não penalizar os mais pobres.
Quando se debate o tema da reinvenção do capitalismo, muitas vezes levanta-se o fantasma do decrescimento, das consequências de uma interrupção abrupta do mantra do crescimento contínuo. É um tema fundamental, sobre o qual há que ter presente o seguinte: por um lado, nos últimos 30 anos, a UE conseguiu aumentar o seu PIB (em 61%), enquanto diminuiu as emissões de gases com efeito de estufa (em 23%) e a intensidade de incorporação de capital natural na economia; por outro lado, nunca a Humanidade foi tão rica, de modo que a prioridade não pode ser mais riqueza, mais sim melhor redistribuição e transição para sociedades com estilos de vida menos assentes no consumo.
Atualmente, o PIB per capita mundial é 10 mil dólares, valor que seria suficiente para que todas as pessoas tivessem uma vida digna, isto é, alimentação, habitação e acesso à saúde e à educação. Porém, nunca o mundo nunca foi tão desigual na distribuição da riqueza, com os 26 mais ricos do planeta a ter o mesmo volume de riqueza que metade da população mundial (i.e., quase 4 mil milhões de pessoas) (3). O valor de investimento anual que se estima ser necessário para alcançarmos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, até 2030, não só seria uma fatia relativamente reduzida do PIB mundial, como é quase equivalente ao valor atual anual do comércio oficial de armas – 2,5 biliões de USD (4). Ou seja, a reforma do capitalismo passa também por reinventarmos os usos a dar à riqueza disponível.
É certo que, assegurada uma qualidade de vida mínima digna para cada pessoa, a única forma das futuras gerações não serem vítimas do drama dos comuns e do drama do horizonte, isto é, da nossa falta de motivação para cuidar do que é de todos e do futuro, é atuando ao nível da nossa edução, formal e informal, racional e emotiva. Porém, não temos tempo para esperar pelos seus efeitos, temos de agir já na reinvenção dos estilos de vida, das políticas públicas e do conceito de empresa.
As empresas do futuro são as que tiverem um propósito (bem) maior do que o lucro, as que não ambicionem ser as melhores do mundo, mas sim as melhores para o mundo. A boa notícia é que a maioria dos stakeholders – por exemplo, reguladores, investidores, clientes e trabalhadores – já compreende e prefere um capitalismo sustentável, isto é, que valorize e incorpore devidamente os fatores ESG (environmental, social e de corporate governance). A alternativa é um planeta socialmente instável e ecologicamente moribundo – ora, nada pior para a vitalidade do capitalismo e das empresas do que um planeta agonizante!
Não será fácil a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável ou regenerativo, ao ritmo e com a escala necessários. Os desafios são múltiplos. Serão sempre. Mas, em bom rigor, só temos de garantir que as soluções ganham a corrida aos problemas – e, para tal, dispomos dos três maiores superpoderes da Humanidade: inteligência, criatividade e empatia. Vamos a isso?
1) https://treefy.org/2020/06/24/template-2/ou www.worldwildlife.org/stories/the-impact-of-a-cotton-t-shirt
2) https://pacecircular.org/sites/default/files/2020-01/Circularity%20Gap%20Report%202020.pdf
3) www.businessinsider.com/worlds-richest-billionaires-net-worth-2017-6
4) www.oecd.org/development/global-outlook-on-financing-for-sustainable-development-2021-e3c30a9a-en.htm
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