Como desperdiçar uma oportunidade – tresler a transição energética

  • Pedro Martins Barata
  • 5 Maio 2021

A oportunidade da transição energética é a de utilizá-la como forma de democratizar o acesso à energia, energizar a cidadania activa das nossas comunidades.

É hoje cada vez mais claro que a transição energética está em curso: a antecipação do fecho das centrais de carvão em Portugal é apenas um exemplo. À medida que o preço de carbono atinge valores cada vez mais altos – hoje já nos €50/tonelada CO2 – veremos o efeito cada vez mais real na transição, inclusive do setor do gás natural para as renováveis e para o surgimento de uma nova economia de hidrogénio.

Uma vez aqui, importa contudo dizer que nem todas as transições têm o mesmo nível de ambição, nem todas as transições são consentâneas com os objetivos climáticos de longo prazo e sobretudo, nem todas as transições irão resultar nos ganhos sociais, económicos e ambientais que deveriam nortear as sociedades europeias.

Um primeiro elemento que importa rejeitar desde logo é a ideia de que a neutralidade carbónica não apresenta dificuldades maiores: há ainda possibilidade de novas tecnologias ainda por explorar, que permitirão a manutenção das indústrias e fontes de energia que nos causaram as alterações climáticas, argumenta-se. É o caso da “captura e sequestro de carbono”: ao fim de muitos anos, nunca se tornou rentável na principal aplicação em que seria necessária – na produção de energia a partir de carvão -, e que hoje deixou na prática de ser útil para esse fim dado o encerramento prenunciado dessa produção a nível global (em Portugal já este ano). Sendo ainda promovida como tecnologia noutras aplicações industriais, está ainda na maioria dos casos em fase muito precoce de desenvolvimento.

Todas as soluções tecnológicas que visam a continuidade da rentabilidade de infraestruturas ligadas à economia fóssil reclamam subsídios e incentivos que seriam mais necessários e úteis para a escalabilidade das novas energias, ao mesmo tempo que premeiam tecnologias que irão, cedo ou tarde, resultar em mais custos afundados e irrecuperáveis. Tomando exemplos recentes e atuais em Portugal, seja a exploração de petróleo, seja a utilização de infraestrutura fóssil no contexto do chamado “hidrogénio azul” são falsas soluções nesse sentido.

Contudo, uma segunda forma de tresler a transição energética é a de pensar que a mesma não trará consequências do ponto de vista social. É hoje absolutamente claro que a transição energética trará consigo mudanças ao nível macro (o fim dos “petro-estados” e a reconfiguração do Médio Oriente, por exemplo). É também claro, contudo, que ao nível micro, não se trata apenas de mudar um vetor energético por outro. Um caso: ao tomarmos como certo o crescimento do parque automóvel elétrico, subestimamos por exemplo o papel que a mesma mobilidade elétrica teve nas plataformas de mobilidade partilhada e do seu modelo de negócio, ou o papel das formas de mobilidade urbana ainda mais recentes (bicicletas e trotinetes). A revolução urbana que silenciosamente se está a operar, por exemplo, na redução do desperdício de ocupação de espaço urbano com estacionamento automóvel, é absolutamente notável.

Tal tornar-se-á ainda mais claro na evolução que a penetração de energias renováveis no setor residencial trará a conceitos como a “democracia energética”, a democratização do acesso à produção de energia e a crescente autossuficiência ao nível comunitário. Repare-se que estas não são mais possibilidades utópicas de peritos banhados em filosofias “woodstockianas”, mas realidades concretas da transição em curso: há hoje comunidades em diferentes países de cidadãos energéticos que produzem, comercializam, trocam energia entre si, com pleno domínio das suas opções energéticas.

Tal como no exemplo do hidrogénio ou da exploração do petróleo, a corrida aos grandes projetos de energia renovável concentrada – parques eólicos, parques solares – deve ser considerada à luz dos imensos danos ambientais que poderão ocorrer, em detrimento de uma visão diferente, distribuída e democrática, de organização do setor elétrico e energético. Não porque uma inviabilize a outra – as forças sociais para a descentralização serão cada vez mais imparáveis – mas porque deixaremos uma conta, mais uma, para as gerações futuras, com a construção, mais uma vez, de megaestruturas energéticas.

A oportunidade da transição energética é a de utilizá-la como forma de democratizar o acesso à energia, energizar a cidadania ativa das nossas comunidades, ao mesmo tempo que ultrapassar o abismo entre a ambição climática global e poder da ação individual. É nas comunidades e ao nível dos cidadãos que o desafio climático poderá e deverá ser enfrentado. Não a desperdicemos a custo das gerações futuras.

  • Pedro Martins Barata
  • Membro da direcção da Coopérnico - Cooperativa de Energias Renováveis e consultor em energia e alterações climáticas da Comissão Europeia, OCDE, Banco Mundial e Ministério do Ambiente

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