UE à procura de regras orçamentais simples e flexíveis
A União Europeia arranca a discussão do futuro das regras orçamentais à procura de simplicidade, mas mantendo os limites ao défice e à dívida. Há muitas propostas, mas a expectativa é baixa.
Com as regras orçamentais da União Europeia suspensas até ao final do próximo ano, o seu futuro começa agora a ser discutido na Cimeira da Recuperação esta quarta-feira, o último dia da presidência portuguesa do Conselho da UE. Arranca aqui o debate “oficial” sobre este tema que tem sido amplamente discutido nos últimos anos, após a crise financeira e a descida das taxas de juro, mas que ganhou impulso político com a pandemia. Ainda assim, as divisões do passado entre países mantêm-se e não há acordo à vista.
A Comissão Europeia prepara-se para apresentar uma proposta de reforma das regras no final deste ano e em antecipação as várias partes posicionam-se. Em termos políticos, esta é uma das discussões económicas mais difíceis a nível europeu. Por um lado, um grupo de países liderado pela Áustria já se posicionou como sendo contra o aliviar das regras orçamentais e o influente ex-ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, defendeu o mesmo no Financial Times, temendo uma “pandemia de dívida”.
Por outro lado, há mais países europeus do que no passado com uma dívida superior a 100%, incluindo França, e na Alemanha há eleições que podem retirar os conservadores do poder, resultando numa nova correlação de forças que pode facilitar entendimentos na UE. Acresce que mesmo vozes mais reticentes a mudanças admitem que as regras têm de “tornar-se mais flexíveis”, como disse este mês o presidente do banco central holandês, Klaas Knot, citado pela Bloomberg, repetindo um pedido que o Banco Central Europeu (BCE) tem feito nos últimos anos para que a política orçamental tenha um papel mais preponderante.
Ao ECO, Paulo Trigo Pereira, ex-deputado do PS, mostra-se “convencido” de que não haverá “grandes alterações”, admitindo apenas “umas pequenas simplificações nas regras”. Perante a expectativa baixa que tem, deixa um conselho ao Governo português: “O país tem de preparar-se para que as regras se mantenham parecidas“. Na opinião do economista especializado em finanças públicas, as regras deviam ser simplificadas, dando mais importância à trajetória da dívida pública, e clarificadas para que os “técnicos da Comissão Europeia não introduzam regras adicionais”.
Como explicava em março ao ECO André Sapir, ex-conselheiro económico da Comissão Barroso, o problema desta discussão na UE é que existe um “nível elevado de dívida e mais divergências entre países” europeus. “Não é viável aplicar-se a mesma solução a todos os países“, defendeu, aconselhando que se dê prioridade à sustentabilidade da dívida pública. Para Sapir “queremos regras orçamentais que previnam que dentro da Zona Euro alguns países tenham uma crise das dívidas soberanas como durante a crise financeira” pelo que a abordagem “tem de ser mais sofisticada do que simplesmente definir um número”. Contudo, reconheceu a dificuldade de chegar a uma solução económica que seja viável em termos políticos.
Independentemente das diferenças, parece ser inevitável uma mudança. Num artigo publicado no Bruegel em fevereiro deste ano, Thomas Wieser, ex-presidente do grupo de trabalho do Eurogrupo, assumiu que as “regras atuais são genericamente consideradas pouco claras, difíceis de implementar e não são nem politicamente sensíveis nem economicamente significativas”. Isso não significa que o limite de 3% do PIB ao défice e de 60% do PIB à dívida pública desapareçam, mas a sustentabilidade das contas públicas poderá ser avaliada de outra forma. E as ideias não faltam.
Parlamento Europeu pede regras simples, flexíveis e transparentes
A eurodeputada portuguesa Margarida Marques (PS) é a autora do relatório que pretende fixar a posição do Parlamento Europeu nesta discussão. O relatório, que já foi aprovado na comissão de Assuntos Económicos e Monetários e que irá a plenário na próxima semana, tem o objetivo de enquadrar a forma como serão reativadas as regras orçamentais em 2023 e como estas serão aplicadas após a pandemia.
Em declarações ao ECO, Margarida Marques argumenta que deve haver “diferenciação” entre os países em 2023, tendo em consideração a fase da recuperação económica e os desequilíbrios nacionais em cada Estado-membro. “É irracional voltar às regras de agora“, diz. Na sua comunicação em março, a Comissão Europeia já tinha deixado em aberto que quando os limites ao défice e à dívida pública voltarem a aplicar-se em 2023 haverá “toa a flexibilidade” para os países com uma recuperação mais lenta.
Quanto ao futuro, os eurodeputados consideram que é preciso “outra forma de olhar para a dívida”, dando mais atenção ao custo do financiamento, principalmente agora que os juros estão em níveis historicamente baixos, e que a atenção deve estar mais no crescimento do que na austeridade, garantindo a sustentabilidade das contas públicas. Defendem ainda que se preserve o investimento público, algo que foi afetado pelas crises anteriores, e que se explore as potencialidades da “bazuca” europeia nos próximos anos.
Certo é que para a eurodeputada portuguesa “todas estas mudanças podem ser feitas dentro dos tratados“, um ponto importante uma vez que antevê que a revisão dos tratados fosse piorar em vez de melhorar a governação económica. “São questões muito sensíveis”, classifica Margarida Marques, apostando numa clarificação das regras — as quais quer simples, flexíveis, transparentes e exequíveis –, dentro do enquadramento legal existente
Mais cético está o eurodeputado José Manuel Fernandes (PSD) que argumenta que as regras já são “flexíveis na sua interpretação” e que a “prova disso é que em situações de dificuldades ninguém as cumpre”. Apesar de admitir que é necessário haver debate e até alterações, o social-democrata deixa o alerta de que os “países não podem continuar a endividar-se” e que tal “não pode ser a desculpa para não se fazer as reformas” necessárias.
“Mesmo que [as regras orçamentais] sejam alteradas, nunca vão ser as que se quer. É uma narrativa que dá jeito, mas que nos põe na cauda“, afirma José Manuel Fernandes, criticando também o primeiro-ministro por estar sempre à espera do dinheiro europeu e por ter perguntado à presidente da Comissão Europeia se já podia ir buscar o dinheiro ao “banco”. “É exatamente a pergunta que não se deve fazer”, afirma.
Académicos abrem discussão com vários caminhos a seguir
Nos últimos meses os artigos científicos sobre o futuro das regras orçamentais da UE têm proliferado como cogumelos. Existe consenso de que as regras não estão adaptadas à nova realidade económica e que é preciso mudanças, seja por causa de desafios como a emergência climática e o envelhecimento da população, seja por causa das consequências das duas crises económicas na política monetária. Acresce que é necessário mais simplicidade e menos regras que acabam por ser pró-cíclicas.
Três membros do European Fiscal Board (o Conselho das Finanças Públicas europeu) assinaram um artigo no Vox.eu onde identificam dois extremos nesta discussão da sustentabilidade das contas públicas: mais consolidação orçamental com corte de despesa e aumento de receitas ou políticas promotoras do crescimento financiadas com dívida? Para estes académicos tanto uma como outra não têm “viabilidade política” nem são “economicamente alcançáveis”. A receita terá de conjugar ambas as estratégias, argumentam, colocando a esperança no Plano de Recuperação e Resiliência para aumentar o crescimento económico e as reformas estruturais. Na ausência disso, mesmo que o relaxamento das regras possa “comprar tempo”, este não vai resolver o “problema subjacente da sustentabilidade” da dívida pública em vários países europeus.
Uma das questões mais levantadas pelos académicos é a ausência de capacidade orçamental centralizada na UE, em específico da Zona Euro, tal como identificava Vítor Gaspar, diretor do departamento dos Assuntos Orçamentais do Fundo Monetário Internacional (FMI) num discurso antes da pandemia. O PRR, financiado através do Próxima Geração UE (a “bazuca” europeia), veio resolver essa questão, mas durará até 2026 e não se sabe se poderá manter-se. Será que os Estados-membros vão continuar a permitir que a Comissão Europeia se endivide no futuro em nome da UE com montantes avultados?
Gaspar pedia ainda simplicidade nas regras: consolidação do braço preventivo e corretivo do Procedimento por Défices Excessivos (PDE), mudar para apenas uma “âncora” orçamental (dívida pública em percentagem do PIB) e um objetivo operacional (regra do crescimento da despesa). “Fazer depender o crescimento da despesa do crescimento potencial da economia iria servir na estabilização da economia e na sustentabilidade da dívida, ao mesmo tempo que oferecia um objetivo operacional claro que é mais fácil de medir, comunicar e monitorizar“, defendia o ex-ministro das Finanças.
Outra das medidas que parece começar a ganhar forças é a diferenciação, para o efeito das regras orçamentais, entre o investimento de qualidade e a despesa pública corrente. Esta é um dos pontos defendidos por um conjunto de economistas da London School of Economics num artigo de abril de 2021 onde lembram que a última década de austeridade teve um impacto negativo no investimento público, prejudicando o crescimento das economias. Além disso, defendiam que a regra do saldo estrutural deve ser abandonada e que, no médio prazo, a UE tem de aceitar e saber viver com rácios de dívida mais elevados, como acontece noutras economias avançadas.
Os menos ambiciosos (ou mais politicamente realistas) antecipam apenas uma mudança na interpretação de regras que já existem, principalmente a redução anual de 1/20 da diferença do rácio da dívida pública entre o nível atual e os 60% do PIB, o que para alguns países significa diminuições muito significativas e economicamente questionáveis.
Mais disruptiva é a análise do ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, num working paper publicado pelo Peterson Institute for International Economics (PIIE), que considera que avaliar se uma dívida pública corre o risco de tornar-se insustentável não depende apenas do nível em si e do défice, mas de vários “fatores políticos e económicos”. “As regras orçamentais, mesmo as mais complexas, não têm em conta esta incerteza porque é impossível prever“, escreve, concluindo que as regras levam a erros.
A alternativa é fixar “standards” (padrões) que distingam “o bom do mau comportamento em termos qualitativos em vez de em termos numéricos”. Quem avaliaria seria uma entidade independente, como a Comissão Europeia, analisando a probabilidade de uma dívida ser insustentável. Se a probabilidade for elevada, então o Estado-membro teria de fazer consolidação orçamental, “num ritmo que equilibre os custos do ajustamento no crescimento económico com os riscos da demora”. Os proponentes admitem que esta nova abordagem implica mudar leis nacionais e tratados europeus, mas argumentam que agora é o momento ideal para avançar com uma mudança estrutural na governança económica da UE.
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