“Não é viável aplicar a todos os países a mesma solução” de redução da dívida no pós-Covid, diz André Sapir

Foi conselheiro económico da Comissão Barroso e agora é professor e investigador. Em declarações ao ECO, André Sapir diz que é "inevitável" uma divisão entre Norte e Sul da UE após a pandemia.

André Sapir, um dos economistas mais conhecedores das regras orçamentais e da integração europeia, avisa que é “inevitável” que a divergência entre os países do Norte e os do Sul da Europa se aprofunde no pós-pandemia, desde logo por causa do nível da dívida pública. Em conversa com o ECO, o investigador dos think tanks Bruegel e Centre for Economic Policy Research (CEPR) defende que deve haver soluções diferentes para situações que não são iguais. O ex-conselheiro económico de presidentes da Comissão Europeia como Romano Prodi e Durão Barroso pede ainda um foco no investimento público, cujo corte durante a crise anterior considera ter sido um “grande erro”. Esta entrevista foi realizada antes de a Comissão ter decidido propor aos Estados-membros que as regras orçamentais continuem suspensas em 2022, regressando em 2023, com base no critério de o PIB voltar ao nível pré-crise.

Arrancou a discussão europeia sobre se a suspensão das regras orçamentais, nomeadamente o limite de 3% do défice, deve manter-se em 2022. Qual é a sua opinião?

É bom que a Comissão Europeia tenha começado a discussão. A discussão começou em todo o lado, nomeadamente nos EUA, mas na Europa é evidente porque temos regras comuns na Zona Euro. A discussão sobre o impacto orçamental da crise — que sabemos que é muito importante — e as implicações disso é muito importante de se ter. O problema real será depois da crise de saúde. Agora, do ponto de vista orçamental, é o “whatever it takes” [palavras de Mario Draghi]. Há quem ache que não estejamos a fazer o suficiente, mas a mentalidade geral é essa: temos de salvar a vida das pessoas, do ponto de vista da saúde, e temos de salvar as condições de vida, do ponto de vista económico. Isso custa dinheiro, mas penso que toda a gente aceita isso e todos os países dentro da Zona Euro estão mais ou menos a enfrentar o mesmo problema.

Não há a divergência política que marcou a crise anterior?

Hoje em dia não há uma luta entre países. Todos estão no mesmo barco. Não há países que já tenham ultrapassado a crise de saúde. Isso poderia ter acontecido… Alguns países podiam já ter ultrapassado e estar a dar argumentos com base numa realidade diferente. Mas não estamos nesse patamar. Além disso, o processo de vacinação também está a ocorrer ao mesmo ritmo em todos os países. Estamos todos a enfrentar o mesmo problema. Assim, a discussão centra-se na perspetiva de daqui a um ano ou daqui a dois anos. Não estamos perto do precipício como na crise anterior em que os governos estavam sempre atrás da curva. Os mercados é que estavam a agir. [Nessa altura] no dia seguinte de manhã poderia haver uma crise grande, como foi o caso de Portugal, Grécia, entre outros. Os acontecimentos eram mais rápidos do que a situação política. Agora é o contrário e isso é muito importante: os políticos estão no banco do condutor e não a ser conduzidos pelos acontecimentos, do ponto de vista orçamental. É uma boa notícia que tenhamos tempo para discutir estes assuntos [das regras orçamentais europeias].

Esta é a segunda grande crise em 10 anos que tem impacto no crescimento económico e nas finanças públicas e, por isso, no rácio da dívida pública.

André Sapir

Economista

Mas os países terão de chegar a uma decisão sobre as regras orçamentais. Será mais fácil agora com a pandemia?

A discussão não será fácil. Assim que nos aproximemos do momento em que a crise sanitária esteja resolvida e em que haja um regresso à “normalidade”, vai haver uma discussão sobre o que significa a normalidade pós-Covid e o que devemos fazer nessas circunstâncias. A discussão não estará centrada no que se está a fazer agora — por exemplo, ninguém está a dizer para não se gastar agora demasiado por causa do futuro –, mas estará centrada no momento em que se deve parar ou abrandar nos apoios, se devemos reintroduzir as regras [orçamentais europeias] e a que velocidade. Em termos políticos, estamos numa situação mais confortável em comparação a ter de tomar uma decisão rápida e sem preparação [como na crise anterior]. Mas não podemos escapar a esta discussão… Haverá diferenças entre países, principalmente na situação económica, nomeadamente o nível de dívida pública.

Haverá um aprofundamento da já conhecida divisão entre Norte e Sul da Europa?

Alguns dos países que já tinham um nível elevado de dívida antes da crise pandémica, como é o caso dos países do Sul que foram muito atingidos pela crise financeira, foram atingidos novamente. Portugal, Grécia, Espanha e Itália foram muito atingidos pela crise de Covid-19 do ponto de vista económico. É a segunda grande crise em dez anos que tem impacto no crescimento económico e nas finanças públicas e, por isso, no rácio da dívida pública. Outros, incluindo Alemanha e alguns países nórdicos, foram atingidos um pouco menos e entraram na crise com níveis de dívida mais baixos. Portanto, à medida que se sair da crise, vamos ver mais divergência em termos do rácio da dívida pública comparando com a situação anterior, na qual já havia uma diferença considerável. Estes são os factos… A questão é como é que os países irão ler isto e como vão abordar o problema. Inevitavelmente haverá uma divisão entre o Norte e o Sul. É inevitável. A Comissão Europeia, o Eurogrupo e os Estados-membros têm de encontrar uma solução para isto. É um problema complicado.

As regras orçamentais terão de tratar de forma diferente o que é diferente?

Antes de se chegar às respostas é preciso identificar os problemas: temos um nível elevado de dívida e mais divergências entre países. O que torna isto mais complicado é que afeta mais uns países do que outros. Uma conclusão disto é que se tem de diferenciar e há discussão sobre isso. Não é viável aplicar-se a mesma solução a todos os países. Isto está relacionado com a regra de redução da dívida pública: quando voltarmos às regras — se voltarmos –, os países com dívida acima dos 60% do PIB terão todos os anos de reduzir 5% da diferença entre o seu nível de dívida e os 60%. E também há implicações disso no défice e no saldo estrutural e primário. A discussão é sobre se devemos mudar esta regra ou suavizá-la, ajustando-a a países diferentes. Os países terão de discutir isto.

A proposta avançada pelo Conselho das Finanças Públicas europeu vai no caminho certo?

Pessoalmente, penso que são necessárias regras numa União Monetária. Não vale a pena discutir o que os EUA fazem ou o Reino Unido ou Japão porque não é relevante para nós. O que é relevante para nós é que temos uma moeda comum, mas políticas orçamentais nacionais. Com este contexto, temos de ter regras. Mas que tipo de regras orçamentais? As regras atuais não seriam as que eu teria desenhado enquanto economista. Sempre pensei, assim como vários economistas têm dito recentemente, que devíamos estar preocupados com a sustentabilidade da dívida pública. Não é sobre se a dívida pública está nos 60% ou 80% do PIB, mas sobre se a dívida é sustentável. Este país está a caminho de uma crise de endividamento? É isto que queremos evitar.

Um país até pode estar a cumprir o limite do défice, mas não deixa de haver um problema de sustentabilidade da dívida pública.

André Sapir

Economista

As regras orçamentais que havia em 2010 não evitaram uma crise das dívidas soberanas…

Exato, queremos regras orçamentais que previnam que dentro da Zona Euro alguns países tenham uma crise das dívidas soberanas como durante a crise financeira. E pode haver uma crise de dívida em diferentes níveis de endividamento. Não existe um número a partir do qual seja certo: não basta dizer que está acima dos 100% do PIB e portanto irá ter uma crise. É mais complicado do que isso. Claro que é mais arriscado ter um nível de dívida mais elevado — não há dúvida — e, portanto, devemos ser prudentes, mas isso não é suficiente. Vimos o que aconteceu durante a crise financeira a países como Espanha e Irlanda que tinham níveis de dívida baixos, mas tiveram uma crise de dívida. Não foi só a Grécia que já tinha uma dívida elevada. Isto significa que a abordagem tem de ser um pouco mais sofisticada do que simplesmente definir um número. No passado, a discussão orçamental no seu país e no meu e na maioria dos países é sobre se se está a cumprir o limite de 3% do défice.

O debate orçamental centra-se nesse limite…

Um país até pode estar a cumprir o limite do défice, mas não deixa de haver um problema de sustentabilidade da dívida pública. [Essa regra] não é suficiente nem é necessária. São necessárias regras mais inteligentes e estas devem ter como objetivo a sustentabilidade da dívida e não um número. Cada vez se ouve mais essa abordagem. Outra questão é a viabilidade política. Isso está relacionado com a confiança entre países. As regras atuais podem não ser tão inteligentes, mas são regras que funcionam num sistema onde há confiança uns nos outros. O objetivo é impedir que haja muita discricionariedade nas regras, porque não se confia em quem aplica a discricionariedade.

Mas essa discricionariedade existe atualmente ou não?

Recentemente, a discricionariedade tem vindo da Comissão Europeia, em parte, e há países que acham que a aplicação tem sido desigual. Até me lembro que durante a crise financeira houve acusações por parte do ministro das Finanças alemão contra a Comissão, dizendo que não estava a fazer bem o seu trabalho. A questão é que se tivermos regras mais inteligentes haverá mais discricionariedade. A sustentabilidade da dívida pública não é uma ciência exata. Podemos olhar para os mesmos números e podemos ter uma interpretação diferente sobre se a situação de Portugal é sustentável ou não. Há os números, mas é preciso fazer uma avaliação sobre o futuro e é preciso confiança entre os diferentes países de que é possível fazer uma boa avaliação. É isto que tem de ser discutido: é possível chegar a um acordo político em que haja confiança suficiente? A verdade é que as regras atuais não correspondem ao ideal, mas talvez sejam o ideal em termos políticos.

Certo é que, se forem mudadas, demorará bastante tempo até alterar as regras e é preciso uma solução para 2022. Concorda com a proposta do CFP europeu de que as regras só devem aplicar-se quando os países chegarem ao nível do PIB pré-crise?

O que tentei explicar é que há uma lógica económica e uma lógica política. É preciso encontrar um equilíbrio entre as duas lógicas. Provavelmente não teremos a melhor solução económica por causa da política e da confiança, mas penso que é possível fazer melhor do que no passado. E fazer isso, na minha opinião, passa pela proposta do CFP europeu. Parece-me que eles têm em mente essas duas lógicas: não fazer algo estúpido a nível económico, mas mantendo a noção da parte política, isto é, reconhecer que há diferentes visões sobre isto, alguns países estão mais preocupados, etc. O CFP europeu colocou em cima da mesa uma abordagem e um compromisso útil. Às vezes há compromissos inúteis quando são piores do que o que existe, mas não é a avaliação que eu faço da proposta deles. O que propõem não é algo radical como uma mudança das regras e optar pela sustentabilidade da dívida, mas fizeram uma proposta útil para avançar com uma solução no imediato. Não podemos apenas discutir quais são as melhores regras e, no entretanto, entrar numa crise por não termos chegado a um acordo. Aí sim haverá um problema. Se é possível ir além disso e ter uma reforma profunda… Isto não é uma reforma profunda, é gerir as regras de forma inteligente. Já é progresso e penso que isto é viável em termos políticos.

Podemos ter países sujeitos às regras em anos diferentes? Por exemplo, países como a Alemanha e a Holanda já em 2022 e países como Portugal e Espanha apenas em 2023?

Sim, é isso. Parece-me que é bastante razoável. Mas deixe-me acrescentar uma coisa: obviamente que as notícias de Itália estão a ajudar.

Uma crise de dívida [em Itália] seria um duro golpe por causa do tamanho do país, do tamanho da dívida e da política.

André Sapir

Economista

O novo Governo de Mario Draghi?

Sim, exatamente. Não é apenas e só o novo Governo, mas o programa do novo Governo. Não estou a olhar só para a pessoa de Mario Draghi — que é visto como “um anjo que veio para nos salvar” –, mas também para o programa. E qual é o programa deste Governo liderado por Draghi? É um programa tranquilizador. A Itália é o país que levanta mais preocupações na questão da divergência entre Norte e Sul. Sem dúvidas. Há preocupação sobre Portugal, Espanha e alguma até sobre França, mas de todos os países o que gera maior preocupação é Itália porque é um país sistémico para a Zona Euro. Uma crise de dívida [em Itália] seria um duro golpe por causa da dimensão do país, da dívida e da política. É um círculo vicioso. A economia italiana regista um crescimento baixo há 25 anos. Baixo crescimento, más políticas e dívida elevada: é um cocktail muito preocupante. Se Itália conseguir implementar algumas reformas e mudanças na sua capacidade de crescimento económico, restaurando algum crescimento, isso iria mudar a preocupação que os países da Zona Euro têm em relação à sustentabilidade da dívida italiana. Para ter sustentabilidade não basta olhar para a dívida, mas também para o crescimento. Ter uma dívida elevada e baixo crescimento é uma preocupação.

Para terminar, como vê a divergência da resposta orçamental entre os EUA e a Zona Euro, tal como aconteceu na crise anterior? É um problema?

É um assunto, mas não sei se é um problema. Certamente que pode ter implicações. Há implicações tanto para os EUA como para a Zona Euro. Podemos estar preocupados com uma maior divergência [na recuperação económica] entre a Zona Euro e os EUA como aconteceu na crise financeira, altura em que esteve relacionada com a política orçamental. Não é que tenha sido muito boa nos EUA, mas foi terrível na Zona Euro. Mas agora nos EUA também há um debate sobre se não estará a ir longe demais. Larry Summers [ex-secretário de Estado do Tesouro de Bill Clinton] disse que o pacote de estímulos de 1,9 biliões de dólares provavelmente é demasiado. Também é preciso pensar na recuperação, isto é, o dinheiro não deve servir apenas para salvar a economia no curto prazo, mas para investimento no futuro. Ele não é contra o pacote de estímulos de Biden, só não quer que seja utilizado apenas para distribuir cheques aos norte-americanos. Ele quer que um bilião seja para isso, mas o restante para investimento. É uma questão de alocação de recursos.

Na Zona Euro, a redução do investimento público foi um dos instrumentos utilizados pelos países para baixar o défice…

Na Europa, é fantástico termos o plano de recuperação, o qual é mais orientado para o médio prazo. Devíamos fazer mais? Sim, provavelmente, na parte do investimento. Mas provavelmente estamos a fazer o suficiente no curto prazo, ou seja, a ajudar as pessoas e as empresas a ultrapassar 2020 e 2021. Temos de pensar mais no investimento. Temos de evitar o que fizemos na última crise em que se cortou o investimento público através da austeridade. Foi um grande erro. E não basta discutir quanto é o dinheiro, mas discutir para onde o dinheiro vai. Essa discussão é muito importante, tal como disse Summers, e é preciso tê-la na União Europeia.

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