O alojamento local tem vivido tempos difíceis com sucessivos cancelamentos. Primeiros os britânicos, depois os alemães e seguem-se outros países. A dúvida persiste: reembolsar os hóspedes ou não?
Deve o hóspede ser reembolsado por uma reserva da qual não pode usufruir ou deverá perder aquele dinheiro uma vez que o proprietário também não tem culpa? Este é o dilema que tem marcado o verão do alojamento local, à medida que os cancelamentos surgem uns atrás dos outros com as sucessivas restrições decretadas, apanhando de surpresa os turistas e o setor. Primeiro foram os britânicos e depois os alemães. Os próximos deverão ser os franceses e os turistas com origem nos Países Baixos. Em junho contavam-se mais de 50 mil reservas perdidas, mas desde então o número subiu.
A 3 de junho, o Governo britânico retirou Portugal da “lista verde”, obrigando os britânicos a ficarem de quarentena no regresso a casa. As consequências não tardaram. “Só neste fim de semana foram cinco cancelamentos, eram as cinco reservas para este verão”, escreveu um proprietário de alojamento local poucos dias depois, num grupo dedicado a profissionais do setor no Facebook. “[Oferecem] um voucher, aplicam a política de cancelamento ou um mix”, questionou, pedindo a opinião dos restantes colegas.
No final de junho, a Alemanha decretou o mesmo em relação a Portugal, colocando o país na “lista vermelha”. “Já começaram cancelamentos. Amanhã tinha um check-in por 28 dias de um hóspede emigrante na Alemanha. Hoje o hóspede contactou-me a pedir o reembolso pois não poderia cumprir o que o Governo alemão decretou no regresso à Alemanha“, escreveu um proprietário, dois dias depois do anúncio. A decisão do Governo alemão foi, entretanto, revertida, mas houve tempo para se sentirem as consequências.
Nas publicações de grupos de proprietários de AL nas redes sociais, as opiniões são muitas… e variadas. Se, por um lado, há quem não abdique do valor da reserva, do outro lado há quem se mostre mais compreensivo. “O risco é dos dois lados. Com um ano e meio de pandemia já não há desculpas para viajar informado e a perceber que quem os recebe também corre riscos financeiros e não pode ficar ‘de mãos a abanar’ só porque afinal não vamos!”, escreveu outra proprietária. “Eu só trabalho em não reembolsável. Eles [turistas] sabiam o risco de reservar, agora aguentem. Eu não vou perder dinheiro”, lê-se noutro comentário.
Outra alternativa é a entrega de um voucher ao hóspede, permitindo a remarcação dessa reserva, mas apenas nesse mesmo alojamento. “Na minha empresa percebemos muito bem a situação, mas não devolvemos tudo, apenas 50%, de acordo com a política de cancelamento (até sete dias antes). Mas não vamos ficar simplesmente com esses 50%, vamos emitir um voucher que pode ser utilizado nos nossos alojamentos“, explica ao ECO Carla Costa Reis, uma das fundadoras da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP) e administradora do grupo de Facebook.
Houve quem optasse por preços elevados com uma política de cancelamento flexível e quem baixasse os preços assumindo os riscos partilhados.
Ao ECO, João Mesquita, dono de um AL, conta que adotou duas políticas de cancelamento diferentes: “uma moderada, em que o hóspede pode cancelar até cinco dias antes do check-in, e mesmo depois de ultrapassar os cinco dias receberá 50% das noites não usufruídas; e outra não reembolsável, com 10% de desconto”. E acrescenta: “Assim como não me sinto no direito de alterar a política de cancelamento mais favorável ao cliente, também não estou disponível para devolver o valor da reserva a quem, de livre vontade, escolheu uma tarifa não reembolsável, em plena pandemia”.
Devolver a totalidade da estadia é ainda mais complicado para estes proprietários, numa altura em que já tinham “preparado os calendários com preços mais baixos para garantir hóspedes”. Mas, em contrapartida, com uma “política de cancelamento mais rígida”. “Houve quem optasse por preços elevados com uma política de cancelamento flexível e quem baixasse os preços assumindo os riscos partilhados”, explica Carla Costa Reis.
Ainda assim, a reação dos turistas perante esta “tentativa de os reconquistar” nem sempre é a melhor. Se ficam desagradados por não lhes ser devolvido o valor da reserva, muitos também não aceitam bem o voucher. “Há hóspedes que ficam muito gratos pela ação [voucher] e percebem perfeitamente, outros ficam incomodados e a sentir-se enganados”, nota Carla Costa Reis, sublinhando que “todos temos razão, temos é de encontrar cedências e justificações de parte a parte”.
Consumidores com direito ao reembolso?
No Airbnb, por exemplo, uma das plataformas mais usadas para reservar alojamentos locais, há seis políticas de cancelamento diferentes, consoante a antecedência. Contudo, são os proprietários que decidem qual aplicar ao imóvel. Por isso, na maioria dos casos, os proprietários estão dentro da lei ao não quererem devolver o valor da reserva aos hóspedes. O que está em causa é haver, ou não, compreensão de que o mundo vive uma situação excecional e de que limitações às viagens têm sido aplicadas de um momento para o outro, apanhando turistas e anfitriões de surpresa.
No ano passado, com o eclodir da pandemia, foi criada uma lei que previa a entrega de um voucher em situações de cancelamento de viagens ou estadias em alojamento local. Contudo, esse regime terminou em setembro. “Não existe nenhuma lei concreta para estes casos”, diz ao ECO Sónia Covita, coordenadora do departamento jurídico e económico da Deco Proteste. Contudo, esta entidade tem defendido que “os consumidores têm direito ao reembolso”.
“No entanto é possível recorrer a outras soluções, tais como a emissão de um voucher ou a marcação do alojamento para novas datas. Neste caso, tal só pode ocorrer, mediante o acordo do consumidor“, nota a especialista.
“Apoios têm de ser mais rápidos e mais simples”
Carla Costa Reis recorda ao ECO como “tudo estava a correr bem, dentro daquilo que é o novo correr bem” no início do ano, e que as expectativas para o verão eram positivas. “Estávamos à espera de alguma retoma em julho, agosto, setembro e até mesmo outubro, para dar fôlego as finanças”, diz. Os calendários estavam com taxas de ocupação de 50% a 60%, as reservas eram mais last minute e os preços, “obviamente, mais baixos”. Mas as restrições impostas pelo Reino Unido e a Alemanha foram o suficiente para abalar o setor.
“Assim que o Reino Unido e a Alemanha nos tiraram das ‘listas verdes’, o Algarve viu cancelamentos em barda”, recorda. Dados da ALEP mostram que a imposição de quarentena por parte do Reino Unido e da Alemanha provocou mais de 50 mil cancelamentos de reservas no setor, com os operadores, citados pelo Jornal de Notícias, a sublinharem que o nível de cancelamentos atingiu em junho “os valores mais altos dos últimos 12 meses”. A associação liderada por Eduardo Miranda pedia, assim, apoios a fundo perdido, sob risco de o setor não resistir.
Os apoios [do Governo] têm de ser mais rápidos e mais simples. Estamos noutro limiar, a lutar pela sobrevivência. Os pequenos e médios empresários estão mesmo com a corda na garganta.
“Já andámos há um ano e meio a fazer este esforço. Os apoios do Governo foram alguns, mas não foram suficientes e eram revestidos de muita complexidade e burocracia”, diz Carla Costa Reis ao ECO, defendendo que os apoios do Estado apoios “têm de ser mais rápidos e mais simples”. “Estamos noutro limiar, a lutar pela sobrevivência. Os pequenos e médios empresários estão mesmo com a corda na garganta”, remata.
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Reembolsar ou não? O dilema do alojamento local num verão de cancelamentos
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