O verdadeiro sabor da maçã
Apesar de toda a publicidade, a Apple é uma tecnológica como todas as outras: mente para angariar utilizadores e abusar da privacidade individual e coletiva.
A ditadura chinesa tem acesso aos iPhones dos seus cidadãos para censurar o que pensam e esmagar a liberdade individual, graças à tecnologia da Apple que gentilmente oferece este mecanismo de abuso para proteger os seus lucros. Agora, com a criação de uma porta de acesso aos conteúdos dos iPhones de todos os utilizadores, a empresa continua a tentar proteger os seus lucros – pondo em causa a privacidade individual e coletiva. A Apple usa o argumento do combate à pedofilia para abrir caminho à vigilância de todas as mensagens e imagens dos aparelhos dos seus utilizadores.
A ideia é nobre e, à superfície, completamente inatacável. O problema é os riscos que a sua implementação acarreta. Esses riscos servem precisamente os objetivos que a Apple quer atingir e o argumento do combate à pedofilia é apenas uma desculpa bonita ganhar a simpatia dos incautos. Os especialistas não demoraram a criticar a manobra, e uma das razões é porque podem efetivamente abrir caminho a novos tipos de abusos de menores. Mas isso interessa pouco à empresa, que aposta na substituição de uma tecnologia de encriptação por outra de vigilância institucionalizada para abrir caminho a abusos por todo o mundo, como já se vê hoje em países onde a ditadura de pensamento impera. Aliás, a principal razão para esta ação é garantir a simpatia dos governos que se preparam para legislar sobre o monopólio anti-concorrencial da App Store – e a Apple espera que ao oferecer esta tecnologia de vigilância possa efetivamente proteger os lucros absurdos que tem.
A principal questão é que a decisão vai ao arrepio de tudo o que foi prometido aos utilizadores ao longo dos anos – como todos sabem graças ao sucesso do Facebook, quanto mais se mente aos utilizadores, melhor se promove o próprio produto. Mas ao menos o Facebook e a Google e, quando exploram a nossa privacidade, têm a decência de oferecer serviços. A Apple não: cobra um preço exorbitante por aparelhos muito bem conseguidos que, a partir de agora, fazem o mesmo que os outros e mentem para explorar a nossa privacidade. Em 2019 Tim Cook escreveu um texto para a Time afirmando que todos os utilizadores “merecem privacidade online” e que ninguém deve ter de tolerar “a recolha irresponsável de perfis de utilização acompanhados de fugas de informação e a incapacidade de controlar as nossas vidas digitais.” Poucos meses depois a marca promoveu um enorme cartaz para garantir que “o que se passa no iPhone, fica no iPhone”. Em janeiro deste ano apelou à criação de “leis globais e acordos internacionais que garantam a minimização da recolha de dados, protejam os utilizadores de serem reconhecidos e garantam a segurança dos dados privados.” E há menos de dois meses, o atual CEO da Apple fez um anúncio dirigido aos europeus em que afirmou que a “privacidade é um direito humano fundamental”.
Esta semana o mesmo líder afirmou, sem se rir, que os aparelhos da marca vão ser transformados em pequenos sistemas de vigilância controlados à distância. Com a implementação desta tecnologia, vamos começar a ouvir as seguintes histórias: atualizações ao algoritmo de verificação de imagens por causa dos erros repetidos que colocam inocentes na alçada da justiça; relatos de funcionários da Apple que abusaram do seu poder para espiar os aparelhos de utilizadores; alertas de ataques de hackers que vão explorar as mesmas ferramentas que a Apple criou; notícias de como a Apple cedeu o controlo da sua tecnologia para que ditaduras como a chinesa possam espiar os cidadãos no mundo todo.
A relação da Apple com a China é perfeita para que se perceba quão rápida ela é a abdicar dos próprios princípios. Apesar de encher a boca com os direitos humanos, tem repetidamente cedido às exigências chinesas quando está em causa a censura e o abuso dos direitos humanos. No início de 2019, a empresa pura e simplesmente censurou o emoji com a bandeira de Taiwan, que deixou de ser acessível dentro da China. Logo a seguir impediu o acesso a uma app que permitia as manifestações democráticas em Hong-Kong e a sites de notícias que cobriam os protestos. Depois disso, fez pior: construiu para o Governo de Pequim um enorme complexo de servidores onde aloja toda a informação dos utilizadores chineses, oferecendo a chave da vida privada de um sexto dos cidadãos do planeta à ditadura que os controla. Belos princípios.
Repetidamente, a Apple tem demonstrado ser apenas mais uma empresa de tecnologia que mente tanto quanto as outras e apenas quer abusar dos seus clientes para aumentar os lucros, não tendo problemas em contribuir para violações repetidas dos direitos humanos. A Apple foi rápida a exigir novos padrões de privacidade às aplicações que acolhe, mas mantém os seus próprios produtos longe dela. O Safari, que é o segundo browser mais usado para aceder à internet, continua a recolher uma enormidade de dados dos seus utilizadores – que ficam guardados nos servidores da empresa para sempre. O escândalo Pegasus já tinha confirmado que os iPhones estavam tão sujeitos a violações como os outros telefones.
Agora, o mito da privacidade dos aparelhos da Apple está finalmente destruído. E confirma que os nossos aparelhos digitais são apenas máquinas de vigilância continuada sempre prontos a abusar dos nossos direitos, seja para nos tentarem vender mais bugigangas ou para nos impedir de pensar livremente. E isto deveria fazer tremer de medo qualquer ser humano preocupado com o futuro da espécie. Na realidade a empresa da maçã está tão pouco preocupada com os seus utilizadores como todas as outras empresas de tecnologia. E a única coisa que separa Tim Cook dos outros magnatas é que ele ainda não tentou ir ao espaço.
Claro que a solução não é adotar uma postura anti-tecnológica e fugir para uma qualquer caverna perdida no mato. A solução é simultaneamente individual e coletiva. Individualmente, devemos fazer escolhas conscientes e ter uma noção do que estamos a perder – para além de que quem se preocupa com estas coisas deve sinalizar que há mercado para inovadores que desenvolvam produtos que respeitam a privacidade. Coletivamente, devemos exigir mais destas empresas e recuperar a privacidade que nos foi roubada apenas para que outros lucrem com ela. Devemos também exigir mais justiça, permitindo que os empreendedores digitais tenham a capacidade de inovar sem estarem sujeitos a ser destruídos pelos monopólios.
Ler mais: Quem ainda acredita na pureza da Apple quando proclama a privacidade dos utilizadores fará bem em ler este artigo científico chamado Mobile Handset Privcy. Publicado em Março, explica bem a quantidade de dados que a empresa da maçã recolhe dos aparelhos dos seus utilizadores, enviando informações a cada 4 minutos e meio – incluindo as informações que foram especificamente bloqueadas, como a localização ou os aparelhos que se encontram nas proximidades.
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