Com apenas o PNEC e a ENH2, torna-se claro que Portugal corre seriamente o risco de não conseguir cumprir as metas de descarbonização do sector dos transportes a que se comprometeu para 2030.
Foi recentemente publicado o 6º relatório do IPCC sobre as alterações climáticas. Foi confirmada uma vez mais a influência da atividade humana no aumento das temperaturas médias a nível global. Foi também reforçada a necessidade de reduzir urgentemente as emissões de gases de efeito de estufa, principalmente até 2030, de modo a evitar um aumento de temperatura global média acima dos 1,5 ℃.
Em Portugal já existe um plano de redução de gases de efeito de estufa até 2030: o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030), que foi aprovado em julho de 2020. Entretanto foi também aprovada a Estratégia Nacional para o Hidrogénio (ENH2) que complementa o PNEC 2030 através da incorporação de hidrogénio em setores de difícil eletrificação.
O PNEC 2030 compromete Portugal a reduzir até 2030 as emissões de carbono em 55% face ao máximo histórico de 2005. Esta é uma meta ambiciosa, como se pode ver no gráfico da Figura 1.
O PNEC também realizou o exercício de estabelecer metas de descarbonização entre os vários setores económicos, como se pode observar nas Figuras 2 e 3.
O que será necessário fazer nos próximos 9 anos para cumprir estas metas?
Neste texto focar-me-ei no setor dos transportes, responsável por 25% das emissões de carbono a nível nacional. Para cumprir as metas do PNEC 2030, será necessário um corte de 40% nas emissões neste setor face a 2018 (ver Figura 4).
Não é surpresa que os combustíveis fósseis líquidos consumidos nos transportes rodoviários sejam responsáveis pelo total de emissões de carbono neste setor. Isto deve-se ao facto de atualmente ainda serem a fonte de energia predominante, com apenas uma pequena percentagem de biocombustíveis incorporados, como está subjacente na Figura 5.
A Figura 5 representa o total de energia consumida [1] pelos transportes rodoviários por fonte de energia. Um corte de 40% nas emissões até 2030 implica uma redução de também 40% no consumo de combustíveis fósseis (amarelo no gráfico) e a sua substituição por energias alternativas, assumindo que se consumirá a mesma energia em 2030, tal como assume o PNEC.
As opções de descarbonização consideradas pelo PNEC e ENH2 para os transportes rodoviários são:
- Eletrificação da mobilidade rodoviária,
- Introdução de hidrogénio diretamente em veículos movidos a pilhas de combustível,
- Produção de combustíveis sintéticos produzidos através do hidrogénio, para substituição dos combustíveis fósseis líquidos em carros a combustão interna.
Para saber qual o potencial de descarbonização do hidrogénio, quer pela sua aplicação direta, quer através de combustíveis sintéticos, utilizei as quantidades previstas de produção de hidrogénio da ENH2. Esta prevê a aplicação de cerca de 10,5 mil toneladas de H2 diretamente em veículos movidos a H2 e 107 mil toneladas de H2 para produção de combustíveis sintéticos em 2030. Destas 107 mil toneladas, assumi que apenas 98 mil destinar-se-ão aos transportes rodoviários, com as restantes 9 mil aplicadas noutros meios (aviação e navegação).
Estas quantidades de hidrogénio corresponderão a apenas 4,4% do consumo de energia necessária para mover os transportes rodoviários em 2030. A restante descarbonização (37,8%) terá consequentemente de vir por via da eletrificação.
A Figura 5 também permite estimar qual será a composição do parque automóvel por tipo de combustível que será necessária em 2030.
Será possível atingir esta composição do parque automóvel em 2030?
Para responder a esta pergunta, utilizei os dados históricos de vendas de carros em Portugal e realizei uma projeção até 2030. Tive em conta os seguintes pressupostos:
a) o número total de veículos mantém-se constante de 2020 até 2030, o que é uma previsão otimista para o objetivo de descarbonização;
b) as vendas de automóveis novos seguem a tendência de subida pré-pandemia;
c) a quota de mercado das vendas de veículos elétricos atinge 40% em 2030, valor previsto por um estudo da Deloitte;
d) 1750 veículos a hidrogénio em 2030, segundo as melhores estimativas da ENH2.
Como se pode ver nos gráficos das Figuras 6 e 7, mesmo atingindo uma quota de mercado de venda de veículos sustentáveis de 40% em 2030, estes constituirão apenas 8.3% do parque automóvel. Este valor corresponde somente a 21% dos veículos elétricos e a hidrogénio que seriam necessários para cumprir as metas do PNEC (Figura 5).
Importa salientar a ínfima relevância de que a ENH2 dá ao sector dos transportes, ao planear apenas 1750 veículos e 100 postos de abastecimento para 2030. Para além da quantidade de veículos ser muito reduzida e insuficiente para cumprir as metas, o rácio de veículos para cada posto de abastecimento de 17,5 é muito inferior aos postos abastecimento fósseis de hoje em dia, com um rácio de 2200 veículos por posto.
Qual será a quantidade de veículos elétricos e a hidrogénio necessária para conseguir atingir as metas do PNEC?
Para este cálculo, tracei um cenário em que as vendas de automóveis são tais que se atinge a composição do parque automóvel da Figura 5 em 2030 (37,8 % elétricos e 1,3% a hidrogénio).
As Figuras 8 e 9 representam os mesmos gráficos das Figuras 6 e 7, respetivamente, mas alterados para este novo cenário. A Figura 8 mostra que seria necessário banir a venda de novos veículos a combustão já em 2027.
Para além disso, o ritmo de vendas de carros teria de aumentar 6.5% ao ano, chegando aos 478 mil veículos sustentáveis vendidos em 2030, quase o dobro das vendas máximas históricas de 2018.
Evidentemente, para se manter o número total de veículos de 2018, desde 2022 até 2030 teriam de ser abatidos quase 3.4 milhões de veículos a combustão, ou seja, praticamente metade do parque automóvel atual. Em 2030, isto corresponderia a um ritmo de abate 4,5 vezes superior a observado em 2018.
Com apenas o PNEC e a ENH2, torna-se claro que Portugal corre seriamente o risco de não conseguir cumprir as metas de descarbonização do sector dos transportes a que se comprometeu para 2030. Não só não existe hoje capacidade de produção de carros elétricos necessária, como não existem incentivos suficientes à compra de veículos sustentáveis e ao abate dos veículos movidos a combustíveis fósseis.
O esforço de descarbonização necessário terá de ser muito superior ao planeado, como por exemplo nas seguintes vertentes:
- Expansão da capacidade dos transportes públicos, muito acima da planeada (falarei deste assunto noutro artigo);
- Renovação drástica do parque automóvel como nunca antes visto;
- Produção de quantidades de hidrogénio muito superiores ao planeado na ENH2, permitindo incorporar mais combustíveis sintéticos na gasolina / gasóleo de modo a descarbonizar os veículos a combustão indiretamente.
Em suma, seria importante reformular o PNEC 2030, idealmente implementando uma metodologia de “baixo para cima” (bottom-up). Ou seja, averiguar em concreto que medidas são necessárias para cumprir as metas, avaliar a sua exequibilidade e verificar se a sua contribuição para a descarbonização é suficiente. Além disso seria importante identificar o custo de cada medida por tonelada de CO2 evitada, de forma a priorizar as medidas mais custo-eficientes.
A ENH2 também devia ser revista, pois contrariamente a megalómana, é na realidade insuficiente. Seria fundamental que esta tivesse em conta as reais necessidades de hidrogénio para o setor dos transportes.
Notas
[1] Consumo de energia neste contexto refere-se a energia útil que é consumida pelo veículo na sua locomoção, isto é, a energia contida no combustível consumido descontando as perdas no veículo. Por exemplo, se um veículo gastar 1000 MWh de gasolina, a energia útil seria 230 MW, assumido rendimento de 23 % para veículos de combustão interna.
(A opinião do autor não reflete a visão da sua entidade empregadora)
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Portugal arrisca-se a não cumprir as metas de descarbonização dos transportes
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