CGD: A nova comissão parlamentar de inquérito poderá ter acesso aos SMS?
A direita anunciou a criação de uma nova comissão de inquérito à nomeação de Domingues. Será que os deputados podem chegar a conhecer o conteúdo dos SMS? Há um acórdão de 1994 que dá algumas pistas.
A esquerda alegou que a correspondência trocada por SMS entre Centeno e Domingues não estava dentro da atual comissão parlamentar de inquérito (CPI). Mas PCP, BE e PS foram mais longe: pedir os SMS seria ilegal e violaria a Constituição. Esta sexta-feira o PSD e o CDS anunciaram a criação de uma nova CPI para averiguar o período desde as negociações até à demissão do gestor.
Assim, os deputados podem obrigar Mário Centeno e António Domingues a entregar as mensagens que trocaram por telemóvel e que Lobo Xavier garante que comprometem o Governo? Mesmo que não queiram (e caso não as tenham apagado), segundo um acórdão de 1994 do Tribunal Constitucional, os seus telemóveis podem vir a ser confiscados, mas o tema divide especialistas.
Excluído o argumento do âmbito da comissão — eliminado pela criação de uma nova –, o argumento contra reside na Constituição e na lei portuguesa não permitirem o acesso aos SMS. Os líderes parlamentares do PCP, BE e PS já o tinham dito, mas Carlos César voltou a referir esse impedimento de forma indireta esta quinta-feira: “Os partidos que prezam a democracia devem respeitar: a Constituição da República Portuguesa, a lei e o Regimento da Assembleia da República“.
Dado que a CPI aceitou receber os emails do ex-presidente da CGD, ainda que os tenha recusado depois, existe o argumento de que o que interessa é o conteúdo e não o meio. É essa a opinião de Tiago Duarte, constitucionalista da PMLJ: “A partir do momento em que se entendeu que esta temática das condições para o convite aos administradores da CGD fazia parte do objeto da CPI, então não me parece que se consiga fazer uma distinção entre alguns meios de comunicação sobre esse tema estarem dentro do objeto e outros meios de comunicação sobre esse tema estarem fora do objeto da comissão”, afirma ao ECO.
Ou seja, a comissão podia pedir os SMS para avaliar se o conteúdo é ou não relevante. No entanto, é necessário que Mário Centeno e o António Domingues aceitem enviar. Caso não queiram, os deputados da eventual nova CPI podem obrigar o ministro das Finanças e o ex-gestor da Caixa Geral de Depósitos a enviar essas correspondências?
A pergunta tem uma resposta complexa que envolve o regime jurídico das comissões parlamentares de inquérito, o Código Penal e a Constituição portuguesa. Os argumentos são vários e a resposta não é consensual, mesmo existindo um acórdão do TC sobre o tema. Primeiro, é preciso assinalar que a Constituição protege as comunicações privadas. “Os SMS trocados entre o Ministro das Finanças e o ex-presidente da CGD estão, à partida, protegidos pelo âmbito desta norma”, explica, ao ECO, Nuno Piçarra, professor de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, referindo o nº1 do artigo 34º – “O domicílio e o sigilo de correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”.
A CPI é uma ‘autoridade pública’ nesta aceção, mas não tem por missão aplicar a lei penal [monopólio dos tribunais] – embora possa investigar factos que indiciam um crime e recolher os correspondentes meios de prova.
O mesmo direito é reforçado pelo Código de Processo Penal, no artigo 189º, refere João Medeiros, sócio da PLMJ, ao ECO. “Sendo a reserva das comunicações de um cidadão uma garantia constitucional, bem se compreende que só em presença de circunstâncias excecionais essa confidencialidade possa ser violada. Quando me refiro a comunicações, refiro-me não só a conversações telefónicas, mas também no tocante a correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática“, explicita. Ou seja, incluem-se os SMS.
Até aqui os especialistas contactados pelo ECO estão de acordo. O problema está na aceção dos poderes judiciais da CPI e em que circunstâncias excecionais podem levar à obrigação de entrega do conteúdo dos SMS. O artigo 13º do regime jurídico das CPI refere que “as comissões parlamentares de inquérito gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados”, o que dá lugar a interpretações diferentes.
“A CPI é uma ‘autoridade pública’ nesta aceção, mas não tem por missão aplicar a lei penal [monopólio dos tribunais] – embora possa investigar factos que indiciam um crime e recolher os correspondentes meios de prova (…) para fins de controlo parlamentar e de apuramento de responsabilidades políticas”, explica Nuno Piçarra.
CPI tem poder equiparado ao Ministério Público
Para João Medeiros existem vários impedimentos nesse pedido da CPI. Primeiro, o sócio da PLMJ argumenta que “por ser algo de muito excecional, a lei apenas confia que seja um juiz o garante da verificação da efetiva excecionalidade”. Além disso, “para que se possa usar um meio de intrusão nas comunicações tem de se estar no domínio da investigação de um crime“. O drama adensa-se: “E não basta a investigação de um crime qualquer. Tem de ser um dos chamados crimes de catálogo, ou seja, um dos crimes previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal“.
Nos termos da lei, quando no exercício de funções, as comissões parlamentares de inquérito, têm poderes equiparados ao Ministério Público.
Esse artigo refere os vários “crimes de catálogo” onde a interceção de conversações telefónicas pode ser autorizada, ainda que tenham de haver “razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter”. Tal como João Medeiros referiu ao ECO, a interceção tem de ser autorizada “por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público”.
Presumindo que o âmbito de uma próxima comissão parlamentar de inquérito vise a investigação de um crime, esse problema ficaria ultrapassado. Mas, ainda assim, João Medeiros afirma haver impedimentos. Em causa está que, na sua interpretação, “nos termos da lei, quando no exercício de funções, as comissões parlamentares de inquérito, têm poderes equiparados ao Ministério Público“. Dado que o poder para se decretar um intromissão nas comunicações cabe a um juiz, “também por esta razão não seria admissível à comissão Parlamentar de inquérito ordenar ao cidadão António Domingues que revele o conteúdo das suas mensagens privadas”, considera.
“Juridicamente defensável, mas não consensual”
Entre uma margem e outra está o professor Nuno Piçarra. Apesar de achar que está longe de ser consensual, admite que existindo indício de crime é “juridicamente defensável” que uma CPI “possa pedir ao tribunal competente, a título de coadjuvação, que imponha a transmissão de SMS trocados entre pessoas como as em causa no caso concreto, sem violação do artigo 34.º da Constituição”. Ou seja, existiria a possibilidade de ultrapassar o obstáculo referido por João Medeiros quanto à necessidade do despacho do juiz.
Mas há um aspeto fundamental que pode comprometer o processo. “O pedido de coadjuvação da CPI deve ‘passar o teste da proporcionalidade’, isto é, o crime terá de se revestir de gravidade e o interesse público no conhecimento da verdade deve preponderar, justificando a restrição/ingerência no ‘segredo da correspondência’. A aplicação desse teste cabe evidentemente ao tribunal”, esclarece, ao ECO, Nuno Piçarra. Ou seja, as SMS terão de ser consideradas indispensáveis ao sucesso do inquérito parlamentar.
“O próprio Tribunal Constitucional já o declarou com muita clareza no Acórdão n.º 195/94, de 1 de Março“, recorda o professor da Faculdade de Direito. O próprio relembra esse acórdão num texto, publicado no site da Faculdade de Direito, sobre a comissão parlamentar de inquérito “À relação do Estado com a comunicação social e, nomeadamente, à atuação do Governo na compra da TVI”. Em causa estava uma questão também de constitucionalidade sobre o acesso aos resumos das escutas telefónicas do processo “Face Oculta”, enquanto este decorria nos tribunais. Eis o trecho do acórdão relevante que dá esse poder às CPI, ainda que os tribunais possam, em casos excecionais, desrespeitar esse dever de coadjuvação:
"[As CPI podem] requerer aos tribunais o fornecimento de documentos ou de outros meios de prova que estejam em poder destes e que elas considerem necessários para levar a cabo um determinado inquérito parlamentar, recaindo sobre os tribunais, em princípio, o dever de facultar aqueles elementos. Só em casos excecionais é que os tribunais poderão desrespeitar aquele dever de coadjuvação. Isso apenas poderá suceder quando o envio de tais documentos e outros meios de prova puser em causa o núcleo essencial das funções constitucionais do tribunal, ou quando a disponibilização dos mesmos implicar a violação de direitos fundamentais das pessoas por ele visadas.”
Ainda assim, quanto ao caso concreto da atual CPI, Nuno Piçarra realça um aspeto: “Porém, não estando a priori identificado o tipo de crime que poderiam indiciar os SMS trocados entre o Ministro das Finanças e o ex-presidente da CGD, parece-me de concluir que a imposição a ambos da obrigação de transmitirem tais SMS à CPI, ainda que através da coadjuvação do tribunal penal competente (porventura o Tribunal da Relação de Lisboa), violaria, desde logo, o artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição“. Ou seja, teria de ser bastante explícito o indício de crime.
Se os emails foram, o que impede os SMS de serem avaliados?
Tiago Duarte admite, logo à partida, que este tem sido um tema de difícil consenso. O também sócio da PLMJ argumenta que “o que interessa é o tema em causa e não se esse tema foi tratado por email ou SMS”. “Não parece que haja diferença substancial entre comunicações enviadas por SMS ou comunicações enviadas por email porque me parece que o modo de comunicação não é relevante“, analisa.
O modo de comunicação não é relevante.
E, se o que é relevante é o conteúdo da comunicação, Tiago Duarte defende que “é através do conteúdo da comunicação que se pode perceber qual o tipo de comunicação que está em causa e se ela é uma comunicação oficial ou pessoal“. “Se a CPI entende que não tem competência para solicitar um envio de correspondência, então essa limitação tanto a limitava para pedir os documentos que fossem cartas como emails como SMS”, argumenta o constitucionalista, referindo-se aos documentos que António Domingues teve de entregar à atual CPI, mas que a sua admissão e publicitação foi rejeitada esta terça-feira.
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