Polémica da Caixa: Feitiço virou-se contra o feiticeiro, dizem os juízes do Constitucional
Afinal, a alteração ao Estatuto do Gestor Público que os ex-administradores da Caixa invocam ter tido como objetivo dispensar a entrega das declarações ao TC ainda reforçou essa obrigatoriedade.
Os juízes do Tribunal Constitucional analisaram a alteração do Estatuto do Gestor Público à lupa. Mas não encontraram “qualquer razão” para supor que o objetivo do Governo fosse dispensar a administração da Caixa Geral de Depósitos da entrega das declarações de rendimentos e património. Mais: a modificação feita pelo atual Executivo até contribui para reforçar a conclusão de que as declarações são devidas.
Ironia das ironias: António Domingues e a sua equipa invocaram como prova — de que o Governo os queria dispensar da entrega das declarações de rendimentos e património — a alteração introduzida ao Estatuto do Gestor Público. Mário Centeno, ministro das Finanças, está a ser acusado de ter permitido que fosse o escritório de advogados que trabalhava com António Domingues a desenhar aquela alteração à lei. Mas esta modificação teve, afinal, precisamente o resultado oposto, concluíram os juízes. Não só não serve esse propósito, como não se vislumbra como poderia ter servido e como ainda reforça a conclusão de que a entrega é obrigatória.
A análise resulta da leitura do acórdão do Tribunal Constitucional, publicado esta sexta-feira, que decide pela obrigatoriedade da entrega e determina que os gestores voltem a ser notificados para cumprir aquela obrigação legal.
Mas vamos por partes. Primeiro, importa compreender os argumentos invocados pelos oito gestores (entre os quais o próprio António Domingues) que confrontaram o Tribunal Constitucional.
Quais são os argumentos dos gestores?
Os gestores frisam que a obrigação de declarar rendimentos e património ao Tribunal Constitucional constitui uma restrição de “direitos, liberdades e garantias”, nomeadamente no que diz respeito à “reserva da intimidade da vida privada e familiar”. E notam que isso pode abrir a porta à utilização abusiva ou contrária à dignidade humana de informações relativas às pessoas e famílias.
Por isso, defendem, essa limitação dos “direitos, liberdades e garantias” só deve ser imposta quando haja uma norma legal que o obrigue “de forma precisa e inequívoca”.
Ora, é a partir daqui que toda a argumentação é construída: para os gestores, não há nenhuma norma precisa e inequívoca sobre o assunto. Até porque, defendem, a expressão “gestor público” que consta da Lei nº 4/83 — que estabelece o regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos e equiparados — não se aplica aos gestores da Caixa porque estes “não são passíveis de qualificação como gestores públicos”.
"[Os gestores da Caixa] não são passíveis de qualificação como gestores públicos.”
Os administradores da Caixa argumentam que o conceito de gestor público é “tecnico-jurídico” e que é definido pelo Estatuto do Gestor Público (EGP). Ora, com a alteração que o Governo de António Costa introduziu ao EGP, os membros dos órgãos de administração da CGD deixaram de estar sujeitos a este Estatuto.
Do mesmo modo, a obrigação também não decorre do facto de serem “titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado” porque a CGD, argumentam, não é uma empresa participada pelo Estado, mas antes uma empresa pública.
Para corroborar todo o raciocínio, defendem que a alteração introduzida pelo Governo ao EGP “visou afastar a aplicação, aos membros dos órgãos de gestão das empresas públicas que sejam entidades públicas significativas, de qualquer estatuição dependente do preenchimento da factispécie conceptual do gestor público”. Traduzindo: teve como objetivo excecionar os gestores da Caixa da aplicação de tudo o que implica o Estatuto do Gestor Público. Se a leitura não for esta, defendem os gestores, estará a permitir “entrar pela janela aquilo a que se pretendeu fechar a porta”, avisam.
De caminho, aproveitam e rebatem desde já os argumentos que poderiam ser invocados para alegar uma inconstitucionalidade daquela alteração ao EGP. Segundo os gestores, esses argumentos poderiam ser o facto de esta disposição ter caráter individual, violar o princípio da igualdade e violar a reserva que é atribuída à Assembleia da República para definir as bases gerais das empresas públicas. Mas “nenhum deles teria cabimento”, lê-se no acórdão.
O que respondem os juízes?
Primeiro, fazem questão de notar que não tiveram em conta o que diz o Orçamento do Estado para 2017 sobre a matéria. Lembra-se quando o BE se juntou ao PSD e ao CDS para incluir uma norma no OE2017, que tornasse clara a obrigação da entrega das declarações de rendimento e património por parte dos gestores da Caixa? Os juízes ignoraram essa disposição porque ela só entrou em vigor depois da administração liderada por António Domingues ter abandonado as suas funções.
Ou seja, mesmo que o BE e a direita não tivessem incluído aquela norma no Orçamento, os gestores estariam sempre obrigados a apresentar as declarações.
"[A alteração ao EGP] não só não altera o conceito de gestor público (…) como na verdade pressupõe esse conceito: é justamente por serem gestores públicos (…) que os destinatários do n.º 2 têm de ser denotados por características ou predicados que os distinguem dentro da classe geral dos gestores públicos.”
Mas e a alteração ao EGP não exclui os gestores dessa obrigação? Não, concluem os juízes. Antes pelo contrário: “Tal argumento confunde o conceito de gestor público com o âmbito de aplicação do EGP”, explica o acórdão. Aquela alteração ao EGP “não só não altera o conceito de gestor público (…) como na verdade pressupõe esse conceito: é justamente por serem gestores públicos (…) que os destinatários do n.º 2 têm de ser denotados por características ou predicados que os distinguem dentro da classe geral dos gestores públicos”, frisam os juízes.
"Os notificados são gestores públicos nos termos do Estatuto do Gestor Público em vigor.”
E explicam que a alteração feita pelo Governo de António Costa significa “simplesmente o seguinte: há uma espécie de gestor público — diferenciada por características específicas dentro do género gestor público — a que não se aplica o EGP”. Ou seja, “os notificados são gestores públicos nos termos do EGP em vigor. Mas gestores públicos que o legislador de 2016 quis colocar fora do alcance do EGP”, conclui o acórdão.
"É irrelevante, para o efeitos de transparência da Lei nº 4/83, se aos indivíduos em questão se aplica ou não o Estatuto do Gestor Público.”
Mas modificar o âmbito de aplicação deste Estatuto é irrelevante para o caso: “É irrelevante, para o efeitos de transparência da Lei nº 4/83, se aos indivíduos em questão se aplica ou não o EGP”, diz o acórdão. Os juízes lembram que o objetivo daquela lei é amplo já que “a obrigação de declarar o património, as atividades e funções privadas e os interesses particulares dos titulares de cargos públicos deriva da vontade de moralizar e melhorar a transparência da vida pública.” Por isso, a lei foi modelada em função “do levantamento dos casos em que os interesses privados podem afetar a atuação dos homens públicos.”
Os juízes defendem ainda que mesmo que o Governo tivesse tentado modificar o conceito de gestor público, “não se vê facilmente como semelhante conceito seria logicamente possível”. Isto porque ele teria de ser suficientemente abstrato para abranger todos os gestores públicos, mas ao mesmo tempo “não tão abstrato e extenso” que nele pudessem caber os gestores da Caixa.
"Acresce não haver qualquer razão para supor que o Decreto-Lei n.º 39/2016 procurou modificar este estado de coisas [isentar a gestão da Caixa da entrega de declarações].”
A isto acresce o facto de os juízes não terem encontrado “qualquer razão para supor” que o Governo quisesse mesmo eliminar a obrigação da entrega de declarações. “O que importa destacar (…) é que a finalidade da exceção à aplicação do EGP nada tem que ver com a sujeição dos administradores em questão aos deveres impostos pela Lei n.º 4/83”, decidem os juízes. E ainda sublinham que “manifestamente”, a alteração ao EGP foi “animada por outros desígnios”.
E o Ministério Público concorda com os juízes?
Sim. O acórdão do Palácio Ratton revela que o caso foi colocado perante o Ministério Público e dá conta do parecer do Procurador-geral Adjunto: “pronunciou-se no sentido de que os notificados devem ser considerados como gestores públicos.” Para o Ministério Público, a exceção atribuída pelo decreto-lei de Costa aos gestores da Caixa só vale para a aplicação dos Estatutos e não para a aplicação do regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos.
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