Imunidade de jurisdição dos Estados: crise ou humanização?
Até que ponto os órgãos jurisdicionais do Estado (tribunais internos) podem, de forma direta, contribuir como atores para a formação de uma nova norma internacional?
A imunidade de jurisdição e de execução do Estado estrangeiro é daqueles princípios internacionais a que poucos prestam atenção e só ganha protagonismo quando é contestado. Os tribunais portugueses têm-no aplicado com alguma regularidade, quase sempre com decisão adequada e sensata (pelo menos, no plano do STJ). Mas, em que consiste?
Por um lado, em aplicação do brocardo par in parem non habet imperium, agora descrito como princípio da igualdade soberana dos Estados (art. 2, n.º 1, da Carta das Nações Unidas), os tribunais internos não podem, em regra, julgar um Estado estrangeiro. A regra, logo a início, talvez suscite alguma estranheza. Mas o que diríamos se o Estado português, por mera aplicação de um critério de jurisdição territorial, pudesse responder perante os tribunais de qualquer outro Estado, nomeadamente, Estados não democráticos?
Em segundo lugar, como qualquer Estado hoje em dia age através muitas formas e, quantas vezes, como “privado” (jus gestionis), só terá direito a imunidade se os atos em causa resultarem, de forma clara, da soberania (jus imperii). Desta forma, com caráter geral, é dominante uma regra restritiva ou relativa da imunidade de jurisdição – e há muitas situações em que o Estado não tem o direito de invocar esta ou de dela beneficiar em juízo num processo em que seja demandado.
Esta razoável placidez perdurou até ter sido confrontada com uma série de ações intentadas contra diferentes Estados por violações graves de direitos humanos ou também por alegado envolvimento no financiamento ou apoio logístico a organizações terroristas. Nestes casos, ou pela gravidade das referidas violações, ou por invocação direta do regime das normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens), defendem alguns que o Estado não pode beneficiar de imunidade (que, aqui, quase se identifica a impunidade, mesmo que impropriamente).
Esta tentativa de erosão da imunidade de jurisdição tem-se desenvolvido em dois planos, internacional e estadual. No primeiro, cabe destacar em 2012 o acórdão do Tribunal Internacional de Justiça no caso das Imunidades Jurisdicionais, que opôs a Alemanha à Itália (com intervenção da Grécia). A queixa foi apresentada pela Alemanha, que considerava ter direito a imunidade de jurisdição perante os tribunais italianos (caso Ferrini), ainda que por crimes de guerra cometidos contra cidadãos e italianos naqueles territórios durante a Segunda Guerra Mundial.
Os factos, em si, não eram contestados pela Alemanha – algo que o TIJ destacou. Ou seja, a Alemanha não colocava em dúvida que, durante a ocupação da Itália pela Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, as forças do Reich tinham praticado ações que violavam as leis da guerra e de humanidade. Ainda assim, dizia a Alemanha e confirmou-o o Tribunal, devia prevalecer a imunidade.
É muito importante deixar claro que não estava em causa um confronto jurídico direto entre este princípio de imunidade e normas imperativas, uma vez que a decisão quanto ao reconhecimento ou não da imunidade surgia como questão processual prévia, e resumia-se em aferir se sim, ou não, o órgão jurisdicional tinha perante si atos jus imperii de um Estado estrangeiro. Ora, rematou o Tribunal, ninguém discutia que atos das forças armadas, durante um conflito armado, tinham, indiscutivelmente, essa natureza. A Itália, por seu turno, não contestava que os atos das forças armadas beneficiavam de imunidade de jurisdição. Mas esta cederia, necessariamente, se estivesse em causa a violação de normas imperativas. Quer dizer, nessas situações, nunca podia o tribunal do Estado ficar impedido de decidir quanto ao fundo.
A decisão do TIJ, rigorosa do ponto de vista jurídico (talvez melhor: jurídico-formal), foi atacada como poucas pela doutrina, e recordo uma autora que a apodou de esclerótica. Só que, como depois se viu, ainda a procissão ia no adro, porque o debate, a contestação, transitaram para o interior dos Estados.
Logo em 2014, o Tribunal Constitucional italiano impôs que, mesmo tratando-se de decisões do TIJ, mesmo estando a Itália formalmente obrigada pela Carta das Nações Unidas e pelo Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, não podia executar essas decisões se, em concreto, contendessem com direitos fundamentais e, em concreto, como o direito de acesso à justiça. Logo, estava a Itália obrigada a desaplicar aqueles instrumentos internacionais.
Mais tarde, em agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal brasileiro foi ainda mais longe no caso do Changri-lá. Estava em causa o pedido de indemnização apresentado por vários descendentes de uma das vítimas do afundamento de um barco pesqueiro brasileiro em 1943 por um submarino alemão – quando os dois países estavam em guerra. Verdadeiramente, o STF nem sequer associou a recusa de imunidade às violações graves de direitos humanos. De forma bastante mais larga e invocando o texto constitucional, declarou que perante quaisquer violações de direitos humanos os tribunais brasileiros estavam impedidos de reconhecer a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro. Inútil é dizer (mas esperemos para o confirmar) que uma solução tão ampla resultaria na morte da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro; e que as consequências no plano político-diplomático – e da aplicação de um princípio de reciprocidade – seriam relevantes, como se viu no caso que a seguir brevemente se expõe.
Em janeiro de 2021, o Tribunal Central do Distrito de Seoul decidiu a favor de várias “mulheres de conforto”, que tinham interposto em 2016 uma ação civil contra o Estados japonês, exigindo reparação por, durante a Segunda Guerra Mundial, terem sido capturadas pelas forças armadas daquele país e forçadas a serem escravas sexuais.
O Japão não compareceu a juízo, tendo invocado de forma veemente o seu direito a imunidade de jurisdição. E apresentou um protesto formal bastante virulento à Coreia do Sul na sequência daquela decisão judicial. As relações entre os dois países atingiram, por isso, um nível de degradação sem precedentes, e o Japão adotou, como retaliação, medidas restritivas à importação de bens da Coreia do Sul. Apenas, em abril de 2021, numa ação interposta exatamente com o mesmo objeto e pedido por outras mulheres de conforto contra o Estado japonês, o mesmo Tribunal Central do Distrito de Seoul (mas outra secção) decidiu em sentido oposto, reconhecendo imunidade de jurisdição ao Estado japonês. Em junho, outro tribunal, agora em recurso, recusou notificar o Estado japonês para identificação dos bens e haveres que poderiam garantir o pagamento devido da indemnização decidida em janeiro. Estas “contradições” tiveram o efeito caótico que se pode antever.
Repete-se: ninguém de boa-fé contesta que o Japão Imperial adotou este padrão de violação brutal dos direitos de até 200.000 mulheres de diferentes nacionalidades, na sua maioria coreanas. E não me refiro, por dignidade, a algumas tentativas muito recentes de branqueamento destas ações. Há, de facto, situações em que a apresentação de argumentos só valoriza a tese que se critica. Por isso, siga-se adiante, deixando claro que a sustentação da imunidade de jurisdição neste caso, ou a sua refutação, não pode pôr em causa a violação sistemática e grosseira das vítimas.
Uma das bases normativas que tem servido para a defesa desta exceção ao princípio da imunidade de jurisdição é o art. 12 da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens, ratificada por Portugal em 2006. Nos termos do preceito, “salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo relacionado com uma indemnização pecuniária, em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um ato ou omissão alegadamente atribuído ao Estado, se esse ato ou omissão ocorreu, no todo ou em parte, no território desse outro Estado e se o autor do ato ou omissão se encontrava nesse território no momento da prática do ato ou omissão”. Dir-se-á, esta exceção encaixa como uma luva nos diferentes casos que acima se apresentaram.
Há, porém, várias objeções sólidas que não é possível deixar de lado.
Em primeiro lugar, a Convenção foi concluída há mais de quinze anos, e ainda está longe de conseguir as escassas trinta ratificações exigidas para entrar em vigor. É por isso em rigor mais do que discutível que se invoque o texto para a solução de um caso concreto. Na verdade, e em acrescento, não existe prática dos Estados que permita, com razoabilidade, defender que, no que àquele artigo 12 se refere, estamos já perante uma norma consuetudinária (sendo esta, por conseguinte, a fonte formal em causa, e não o texto da convenção). Em terceiro lugar, é sólida a tese que defende que, mesmo que a solução do art. 12 fosse direito, ainda assim excluiria os atos ou omissões das forças armadas e durante um conflito armado. É ver-se, por exemplo, como de entre os Estados que já ratificaram a Convenção das Nações Unidas, todos os de maior peso juntaram declarações interpretativas no sentido que enunciei. Finalmente, no caso das Imunidades Jurisdicionais, a Itália argumentou perante o TIJ invocando quase ipsis verbis o art. 12. Mas a resposta do Tribunal, bem fundamentada, arredou a sua aplicação ao caso concreto.
É bom de notar que, em todos os casos que referi, estavam em causa atos de elementos das forças armadas de um Estado (Alemanha ou Japão), durante um conflito armado. Ninguém contestou a gravidade brutal dos atos praticados e a sua censurabilidade, mas ainda é cedo para, em consciência, defender que o princípio da imunidade de jurisdição deve ser arredado. Porém, isso não significa que as coisas estejam como sempre. A multiplicação de casos desta natureza vai criando uma nova prática, embora se possa lamentar um certo casuísmo e unilateralismo judiciários, por vezes mal argumentado embora sempre bem-intencionado. De todo o modo, não chegará o gato às filhoses através da (errada) ideia de que está em confronto uma norma apenas consuetudinária com uma norma imperativa. Mas, isso sim, através do desenvolvimento de uma nova norma consuetudinária que estabeleça a chamada exceção de violações graves de direitos humanos.
Simplesmente, esse será um processo longo. Mas fica a questão, ela própria estimulante: até que ponto os órgãos jurisdicionais do Estado (aqueles que no direito internacional se designam como os tribunais internos) podem, de forma direta, contribuir como atores para a formação de uma nova norma internacional? No tópico das imunidades de jurisdição do Estado estrangeiro, é mais ou menos certo que a resposta será positiva. Pois que foram esses mesmos tribunais estaduais que, ao longo de muitíssimos anos, foram desenvolvendo este regime jurídico-internacional e, mais ainda, o foram fazendo evoluir. Porque haveria esta fase mais recente de ser diferente?
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